*Jô Drumond
Oriunda de família extremamente
religiosa, fui batizada, catequizada e crismada. Repetia como papagaio o que me
havia sido ensinado pelas freiras, durante a catequese. “Quem é Deus? Deus é um
espírito perfeitíssimo e eterno, criador e redentor do Céu e da Terra”. Na
minha ingenuidade, repetia aquilo de cor, sem saber o que era “espírito”, o que
era “redentor” e muito menos quem era “Deus”. A distinção entre Céu e Terra era
simples. Sabia que o céu era azul; e a terra, marrom; que o primeiro ficava
sobre minha cabeça; e a segunda, sob meus pés.
Minha primeira Comunhão, aos 7 anos |
Quando criança, eu me ajoelhava
semanalmente num confessionário, em vista da comunhão dominical. Toda boa
menina tinha que mostrar sua pureza no ato da comunhão. Lembro-me que, como não
tinha pecados, fiz uma lista de eventuais deslizes, considerados por mim faltas
graves, como, por exemplo: eu me esqueci de rezar antes de dormir;
ataquei a despensa sem pedir permissão à mamãe (a despensa de minha casa era
repleta de guloseimas); falei palavras feias; desejei mal ao próximo; tive maus
pensamentos... Recitava a mesma listinha todos os sábados,
diante de um confessor que nada dizia. Apenas passava a penitência, que pouco
variava: rezar um Pai Nosso e duas ou três vezes a Ave Maria. Um belo dia ele
me perguntou que mal eu havia desejado ao próximo. - Desejei que minha
coleguinha tropeçasse e caísse - respondi. A penitência não mudou.
Pensei que fosse me perguntar também quais eram os maus pensamentos. Certamente
ele não se animou. Seria pura perda de tempo inquirir os pecados de uma
garotinha de sete ou oito anos de idade. Além do mais, a fila tinha que andar.
Na adolescência, fui membro efetivo da
Legião de Maria. Fiz trabalhos legionários em enfermarias de hospitais e em
favelas. Rezava diariamente, antes de dormir, a catenas legionis, cuja
antífona ainda permanece em minha memória: “Quem é essa que avança como a
aurora, formosa como a Lua, brilhante como o Sol, terrível como o exército em
ordem de batalha?” Naquela mesma época, como catequista, continuava repetindo
aos pimpolhos o que havia aprendido no ensino religioso.
Aos 17 anos, todas as normalistas
deveriam comungar durante a missa de formatura. Minha classe era numerosa.
Fomos juntas, cerca de sessenta colegas, à igreja dos padres capuchinhos, em
Patos de Minas, para a confissão. O padre, ao se dar conta da quantidade de
moçoilas, não se animou a atender uma a uma. Disse que faríamos uma confissão
comunitária. Eu nunca havia ouvido tamanho disparate. O que seria confissão
comunitária? Teríamos que dizer publicamente, em voz alta, nossos pecados?
Ele fez uma pequena pregação, solicitou
alguns minutos de silêncio para que pensássemos, nos arrependêssemos
de nossos pecados e pedíssemos perdão, em linha direta com o Todo Poderoso.
Depois de algumas orações, abençoou-nos e nos liberou. Não entendi a razão pela
qual ninguém nunca havia mencionado essa possibilidade de ser perdoada pela
divindade, sem me ajoelhar diante de um confessor. Fiquei revoltada por ter-me
submetido inutilmente ao rito semanal de ir à igreja, durante tantos anos,
desde a primeira comunhão. Enfrentava fila todos os sábados, repetia minha
inútil lista fictícia diante do confessor, pagava penitência em falso alto de
contrição, visto que os pecados eram inventados, para poder comungar durante a
missa dominical, usando mantilha branca, símbolo da pureza.
Diziam no catecismo que, ao recebermos
a hóstia consagrada, na ponta da língua, ela deveria ser colada no céu da boca
até à dissolução completa. Como se tratava do corpo de Jesus, se a
mastigássemos, o sangue escorreria boca abaixo. Eu tinha ao maior cuidado para
que a hóstia nem tocasse os dentes. Não queria aparecer com a boca suja de
sangue, dentro da igreja. Após a “famosa” confissão comunitária, comecei a
duvidar desses disparates. Certo dia, em ato de rebeldia, fiz questão de
mastigar a hóstia. Nada aconteceu.
Aos 18 anos, mudança radical de vida.
Entrei para uma Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, na capital do Estado.
Tive então oportunidade de conhecer jovens de minha idade, leitores de Sartre, Simone
de Beauvoir, Albert Camus, entre outros existencialistas. O universo das Letras
e da Filosofia se descortinava para a crédula provincianinha, que começava a
questionar tudo o que lhe havia sido inculcado até então.
Toda noite, em vez de rezar, eu matutava.
Se matar é pecado capital, como e por que dizimar cidades inteiras em
nome de Deus? Em Sodoma e Gomorra apenas uma parte da população masculina era
pecadora, por que a mortandade geral de velhos, mulheres e crianças? E as
guerras? Se “Deus é amor”, como justificar as guerras santas, feitas em Seu
nome, desde tempos idos? Sabe-se que a religião foi a causa da maioria das
guerras, em todo o mundo. O Islamismo e o Cristianismo, ambos monoteístas, se
envolveram na origem das primeiras guerras “ditas” santas. A Bíblia relata
milhões de mortes em nome de Deus. Só o dilúvio matou vinte milhões, salvo
engano. E as pragas divinas? As sete pragas do Egito foram justas? E as pestes
que assolaram o mundo? Acrescente-se a isso a morticínio das Cruzadas e a da Santa
Inquisição. Se Deus é um “espírito perfeitíssimo”; Ele deve ser justo. Como
explicar tantas injustiças, doenças, catástrofes, acidentes, crueldades e tanta
dor? A resposta já vinha pronta: “é castigo!”. Não, não pode ser! Sendo Ele um
pai bondoso e amoroso, não poderia castigar, mas sim orientar e conduzir seus
filhos, sobretudo protegê-los.
Recai então, sobre nós, a questão do
livre-arbítrio. O Pai, nesse caso, “lava as mãos” e deixa os filhos agirem por
conta própria, vulneráveis aos males do mundo, ou seja, “ao deus-dará”. Isso
seria justo? Sendo onisciente e onipresente, Ele sabe de antemão tudo o que vai
acontecer. Por que então não evita terremotos, furacões, inundações, acidentes,
guerras, pestes, doenças, desastres (sejam eles físicos, morais, materiais,
emocionais), enfim, todos os revezes causadores de sofrimentos?
As pessoas religiosas são naturalmente
fatalistas. Para elas, quando algo de bom ou de ruim acontece, é porque “estava
escrito”. Escrito onde, quando, por quem e por quê? Como poderíamos ser
responsáveis por nossos atos, se houvesse um destino pré-existente já traçado
para cada um? Tudo que fizéssemos recairia na responsabilidade de quem o
traçara? Para quem acredita em destino, o livre-arbítrio cai por terra. Não tem
razão de ser. Desde o nascimento, caberia ao destino definir se o indivíduo
seria crédulo ou incréu.
Nos dias de hoje, sabe-se que ter fé
não é questão opcional. Com a ajuda da ciência, prova-se que o fato de ter fé
não acontece por vontade própria, nem pelos ditames do destino. No início deste
terceiro milênio, pesquisas científicas confirmam que os indivíduos portadores
do gene VMAT2 são intuitivos e mais religiosos. Os que não possuem tal gene são
mais reflexivos, têm raciocínio lógico e dificuldade em acreditar em algo impreciso.
Sabe-se que esse gene “é responsável pela regulação das chamadas monoaminas,
que têm papel importante na construção da realidade e na percepção das
alterações da consciência, situações comuns em experiências místicas.” Ter fé
significa crer prontamente, sem exigir comprovação científica. Os místicos,
diferentemente dos racionais, preferem acreditar a perscrutar. Destarte,
bem-aventurados sejam os portadores do VMAT2, pois crer dói menos que não crer.
Isso nos remete às reflexões de
Nietzsche, contidas em O livro do filósofo: “O fato de acreditar na
verdade é precisamente loucura [...] Ninguém pode, sem um pouco de loucura,
acreditar tão firmemente possuir a verdade: o ceticismo não tardará a chegar
[...] Até o ceticismo contém em si uma fé: a fé na lógica.”
*Jô
Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias
de Letras
(AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)