quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

BENDITA TECNOLOGIA

Recentemente, recebi, pelo WhatsApp, um antigo vídeo publicitário, feito na época de inflação galopante, há décadas, anunciando uma liquidação de eletrodomésticos, pagos em duas vezes, sem juros.

Um fogão a gás de 4 bocas, por exemplo, cujo preço varia atualmente entre trezentos e seiscentos reais, era oferecido por sete milhões e quatrocentos mil cruzeiros, em preços promocionais. Vejamos as demais promoções:

Aparelho de som: Cr$3.800.000,00

Televisor preto e branco - 14 polegadas : Cr$14.400.000,00

Geladeira: Cr$9.400.000,00

Forno de micro-ondas: Cr$ 10.800.00,00

Essa publicidade me remeteu a um fato acontecido tempos atrás. No início da década de 70, fui contemplada com uma bolsa de estudos na Universidade de Sorbonne Nouvelle, em Paris, sob os auspícios da Embaixada da França. Teria gratuitamente hospedagem, alimentação e o curso, além de uma quantia mensal chamada de argent de poche, para pequenas despesas. Meu único gasto seria referente às passagens de ida e volta.

Naquela época, não havia cartões de crédito. Nada era automatizado. Um depósito bancário de uma cidade para outra levava muitos dias para ser concretizado, dependendo da distância geográfica.

Quem tinha a oportunidade de ir ao exterior comprava toda sorte de bugigangas para presentear os
amigos. Produtos importados, considerados supérfluos, eram inexistentes no mercado brasileiro. O governo, atento à evasão de divisas, só permitia a saída do país com o máximo de mil dólares por passageiro, o que era muito pouco. Isso abreviava a estada dos brasileiros no exterior.

Pois bem! Para a compra de dólares, eu teria que sacar a quantia correspondente em um banco e transportá-la até uma agência cambial. Fui ao centro de Belo Horizonte, sozinha, para a transação. O atendente do caixa me recebeu, desapareceu por algum tempo e voltou com um pacote enorme, embrulhado em jornal e amarrado com barbante. Eu não tinha noção da quantidade de cédulas correspondente à quantia solicitada. Mal podia carregar o pacote, por demais pesado para minha frágil compleição física. Teria que atravessar o centro da cidade a pé, até a agência. Um medo enorme se apossou de mim. Se alguém me visse sair do banco com aquele enorme pacote, poderia me seguir e me assaltar em algum lugar menos movimentado. A bolsa de estudos e a tão sonhada viagem iriam pelos ares.

Um telefone celular teria sido providencial. Eu poderia ter chamado alguém da família para me acompanhar. Ainda não existiam orelhões. Alguns poucos telefones públicos tinham sido instalados dentro de estabelecimentos comerciais. Para fazer uma chamada, eu teria que encontrar um deles ou me dirigir a alguma agência telefônica, inexistente nas redondezas. Enfim, teria que encarar o desafio, sozinha. Ao botar o pé porta afora, olhei para os lados e segui a passos rápidos. De vez em quando olhava para trás, para verificar se não estava sendo seguida. O medo de ser assaltada pesava mais que o pacote. O trajeto não era longo, mas, naquele momento, parecia infinito.

Feito o câmbio, eu teria que portar a quantia não apenas até minha residência. Teria que portá-la junto a mim, durante toda a viagem. Isso representava um grande transtorno para uma jovem inexperiente, que nunca havia saído de seu Estado Natal, muito menos do país.

Na época, não se cogitava que, num futuro não muito distante, os viajantes poderiam partir apenas com cartões magnéticos e com eles sacar dinheiro ou fazer pagamentos. Em caso de extravio ou furto, seriam bloqueados e substituídos por outros, em tempo recorde. Viva a tecnologia atual!

Na chegada à Europa, uma ex-colega de colégio, estando de férias em casa de parentes, em Grenoble, a 143 km de Genebra, estaria de carro, com seu irmão, me aguardando no aeroporto daquela cidade. Isso havia sido combinado meses antes, por carta, um dos poucos meios de comunicação disponíveis. Eu chegaria na sexta-feira à noite, passaria o sábado e o domingo com seus familiares, e depois seguiria para Paris. Não sei se ela se esqueceu do trato ou se houve algum imprevisto. O fato é que ela não apareceu. Já se fazia noite. Não havia meio de nos comunicarmos. Vi-me sozinha, em um país estranho, sem conhecer vivalma, sem saber o que fazer. Não dispunha de nenhuma indicação de local para me hospedar.

Nos dias de hoje, seria simples. Sacaria da bolsa o smartphone, localizaria os hotéis mais próximos,faria pesquisa de preços e reserva pela internet. Infelizmente, eram outros tempos. Dirigi-me ao guichê de informações e pedi que me indicassem um hotel próximo. Tomei um táxi, sem dizer palavra, a não ser o nome do hotel e o endereço, com cuidado de falar sem sotaque, para que o motorista não percebesse minha estrangeirice. Parti mais que temerosa, extremamente tensa. Não tinha noção da distância, nem da direção do hotel. Senti-me totalmente vulnerável. O chauffeur poderia me levar para qualquer lugar, apoderar-se de meu rico dinheirinho e se mandar. O que faria eu, na rua, com temperatura abaixo de zero, sem dinheiro para pagar hospedagem e sem conhecidos para me acolher? O medo só se dissipou ao avistar a placa do hotel. Respirei aliviada.

Antes do embarque para a Europa, eu havia sido instruída a não sair nunca à rua com todo o dinheiro. Deixá-lo no quarto de hotel seria também arriscado. Foi-me sugerido que recheasse todas as tomadas do quarto, com dólares. Nenhuma camareira se daria o trabalho de procurar dinheiro em local tão pouco plausível. Era esconderijo seguro, mas arriscado a um baita choque elétrico. Na bagagem, eu dispunha de chave de fenda para tal empreitada. Outro estratagema seria fazer falsas bainhas nas calças compridas, e recheá-las de notas verdinhas. Certa vez, sem me lembrar disso, fui para a universidade usando uma calça com tal recheio. Na volta, enfrentei ventaria e tempestade. Ao chegar ao alojamento estudantil, toda ensopada, percebi um peso extra nas bainhas. Atordoada, desalinhavei-as rapidamente, temendo ter perdido as cédulas, mas elas estavam intactas. Antes do embarque eu as havia envolvido por plástico, justamente para evitar algum imprevisto desse tipo.

Muitos contemporâneos nossos sentem saudades dos velhos tempos. Tenho saudades de certas coisas que não existem mais, mas, no que se refere à praticidade, à rapidez e ao conforto proporcionados pelas novas tecnologias, a vida hoje em dia é indiscutivelmente mais fácil e mais aprazível em praticamente todas as circunstâncias.

Pode ser que haja mais poluição, mais violência, e demais inconveniências próprias dos novos tempos, mas não se pode reclamar do conforto que as grandes invenções proporcionaram a todos, desde épocas avoengas, com o advento da energia elétrica, da telefonia, do motor à explosão, das aeronaves...

Com certeza, facilitações inimagináveis, às quais não teremos acesso, ainda estão por vir, na propalada era digital. Em face da atual corrida tecnológica, o que existirá em comum com nosso way of life, dentro de um século? Como será a vida de nossos descendentes?

 Jô Drumond