domingo, 9 de abril de 2017

TESOURO SOB A PONTE DA PASSAGEM

*Jô Drumond
Ponte velha
Ciente da onda de larápios que se esgueiram pelas sombrias ruas de Vitória, em busca de residências vulneráveis, Estela teve a ideia de esconder as joias da família dentro de sapatos velhos, na véspera da viagem de férias rumo ao litoral nordestino. Caso um arrombador encontrasse a casa deserta, e quisesse surrupiar alguns de seus pertences, certamente vasculharia o quarto do casal e adjacências. Jamais atentaria para sapatos velhos, no cômodo de despejo.

Ao voltar de viagem, encontrou tudo na mais perfeita ordem. Só se lembrou do esconderijo num dia de festa. Não encontrando um de seus colares no devido lugar, dirigiu-se ao despejo. Não havia sapato algum. Procurou por toda a casa, em vão. Após ter revirado os armários, com a ajuda dos filhos, comentou o ocorrido com o marido, tão logo ele chegou do trabalho.

─ Ah! Uns sapatos deixados no cômodo de despejo? Eu os dei a um pedinte que passou com uma carrocinha, recolhendo roupas e objetos usados.

A mulher esbravejou aos quatro ventos, descabelou-se e chorou, desolada pela grande perda. Tratava-se de joias acumuladas ao longo de três gerações. A notícia espalhou-se pela vizinhança. Tal mendigo era visto frequentemente naquela rua, recolhendo doações. Os vizinhos vaticinaram que, de posse das joias, certamente desapareceria do bairro. Qual nada! Poucos dias depois, lá vinha ele, de porta em porta, empurrando sua alquebrada carrocinha de entulhos. Ao tocar a campainha de Estela, foi indagado pelos calçados. Ele os havia deixado em casa, juntamente com as tralhas recolhidas.

─ Vamos imediatamente até sua casa ─ disse-lhe a senhora. Preciso dos sapatos.
          
  ─ Não tenho casa, dona, moro debaixo da ponte da passagem, com a mulher e duas crianças.

Lá foram eles, de carro, para recuperar o pequeno tesouro. No vão da antiga ponte, entre a Av. Fernando Ferrari e a Av. N.S. da Penha, via-se um amontoado de quinquilharias catadas no lixo: papelões, colchões velhos, cobertores ensebados e um fogareiro improvisado sob fumegante panela de barro. Lá estavam também os sapatos, porém vazios. Em tom lacrimoso e convincente, Estela abordou a esposa do mendigo, dizendo-lhe que dentro deles havia joias de pouco valor comercial, mas de inestimável valor afetivo. Disse-lhe também que devido ao apreço pelas joias perdidas, estava disposta a oferecer uma boa uma quantia pelo resgate.

─ A sinhora me discurpa, dona, mas eu num vi nada não! Num tinha nada dentro dos sapato não.

Antes de se afastar, Estela deu a cartada final.

─ É uma pena, minha senhora. Eu poderia até mesmo lhes doar um terreno e ajudar na construção de uma casa, caso recuperasse minhas joias.

A mulher havia escondido o grande achado debaixo de uma pilha de pedras, ao lado do canal, sem dizer nada ao marido. Ainda não sabia o que fazer com o tesouro. Se tentasse vender parte dele, seria presa como ladra. A promessa do terreno e o vislumbre da casa própria provocaram um revertério em sua cabeça. Decidiu mostrar as joias ao marido.

Ponte nova
Juntos, naquela noite, fizeram planos mirabolantes. Assentados sobre pedras e recostados num dos pilares da ponte, velavam o sono dos filhos e apreciavam a lua refletida nas águas do canal. O céu parecia mais brilhante que de costume. Imaginavam noites vindouras, sem vaga-lumes rabiscando a escuridão, sem o piscar de estrelas, mas com lâmpadas elétricas, sob um teto de verdade, camas macias... Não veriam mais o espetáculo das garças riscando de branco as brasas do poente, mas teriam água tratada, chuveiro, instalação sanitária... quiçá um velho televisor descartado numa lixeira qualquer. Ao observar os barcos no espelho d’água, embarcaram no sonho da casa própria e velejaram suas fantasias em direção ao futuro. Vislumbravam, por mínimo que fosse, um barraco que pudesse ser chamado de “lar”. Parecia milagre! O milagre da est(r)ela.

As joias foram devolvidas. Enquanto aguardava a aquisição do terreno, a família sem teto passou a viver às expensas da família adotiva. Inicialmente, Estela fez para eles uma grande compra de víveres e produtos de higiene. A partir de então, frequentemente, o mendigo batia à sua porta com outras solicitações, cada vez mais acintosas. Ela se sentia extorquida, mas sem coragem de recusar ajuda.

Certo dia ele tocou a campainha, aturdido, pedindo outro tipo de amparo. Havia levado uma facada no ombro esquerdo, segundo ele, numa briga. Perdia sangue, mas não queria acionar a polícia, nem o Serviço de Assistência Médica. Ela o acolheu meio a contragosto, limpou o ferimento, preparou-lhe um banho, providenciou roupas limpas, e pediu a um médico da família que se ocupasse do caso, em sigilo. Tal fato a deixou apreensiva. Não conhecia o terreno no qual pisava. Não sabia com que tipo de gente estava se envolvendo e tampouco como sair daquela enrascada. Mesmo doando o terreno, o vínculo com aquela gente não se apagaria facilmente.

Certo dia, demonstrou seu desassossego, em conversa informal com um amigo. Ele tentou serenar suas inquietações, dizendo-lhe que refletiria sobre o assunto. Tentaria encontrar uma solução que não prejudicasse nenhuma das partes. A partir daquele dia, o mendigo desapareceu, como num passe de mágica. Estela passou até mesmo a sentir falta daquele nefasto assédio. Intrigada com o desaparecimento, procurou seu amigo e se inteirou do desfecho do caso.

Acompanhado de quatro policiais fardados e armados, ele tinha ido ao dito local, sob a ponte. Em tom peremptório havia afirmado aos desabrigados que eles não haviam feito nada além da obrigação, ou seja, devolver o que não lhes pertencia. Disse-lhes ainda que a família lesada não tinha obrigação nenhuma para com eles, e que não permitiria a doação de terreno algum, pois o fato de esconder as joias configurava má fé e desonestidade, por parte da esposa. Além de ter escondido o fato do marido, havia mentido à proprietária das joias. Caso voltassem a incomodar a dita família, ele tomaria as providências cabíveis. Concluiu dizendo que não permitiria que o casal continuasse sendo por eles extorquido. Os mendigos não sabiam o que significava “extorquir”, muito menos “providências cabíveis”. Considerando as fisionomias austeras dos fardados, o tom de voz e os gestos imperiosos do “doutor” engravatado, inferiram que coisa boa não devia ser.

Quando a esperança perde fôlego, o caminhar fica mais trôpego. Sem adeus definitivo à Esperança, partiram em busca de outros vãos, sob outras pontes, acreditando poder, no futuro, navegar suas minguadas veleidades. Nos descaminhos da vida, haveriam de encontrar, um dia, sobretudo para as crianças, sendas menos ásperas a trilhar, com vislumbres de atalhos.