sexta-feira, 1 de novembro de 2019

A MULHER NA ÉPOCA DA GUILHOTINA


Pergunta-se por que há mais homens que mulheres nas Letras, na Filosofia e nos demais ramos do conhecimento. A resposta é muito simples. Desde a Antiguidade até o século passado, a mulher não tinha acesso ao ensino formal.  Literatura e Filosofia eram atividades reservadas aos homens. Evidentemente há exceções, pois as famílias abastadas tinham o privilégio de inserir suas filhas no mundo das Letras, por meio de tutores. Algumas delas chegaram a ter certa notoriedade.

No período da Revolução Francesa, no século XVIII, muitas mulheres se insurgiram contra a desigualdade dos sexos. Aquelas que clamavam por seus direitos políticos de cidadãs pagaram um alto preço. Algumas foram poupadas da guilhotina, mas foram parar no manicômio pelo resto da vida, simplesmente por lutarem pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, o que era considerado loucura ou histeria.

Naquele período de terror, entre 350 e  400 mulheres foram guilhotinadas. A mais célebre entre elas, que lutou contra a injustiça, a violência e a desigualdade dos sexos, perdeu literalmente a cabeça em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade, segundo o lema da Revolução Francesa. Trata-se de Olympe de Gouges, pseudônimo de Marie Gouze (1748 – 1793). Uma de suas frases mais célebres é a seguinte: “Se a mulher tem o direito de subir ao cadafalso, deve ter também o direito de subir à tribuna.”

Sua prisão se deveu à autoria da peça de teatro, As três urnas, que demandava a realização de um plebiscito para escolher uma das três formas de governo: República Indivisível, Governo Federalista ou Monarquia Constitucional. Suas peças de teatro eram representadas na Comédie Française, teatro conservador apoiado pelo rei.

O que foi alegado pela acusação seria hoje motivo de chacotas: foi acusada de “querer agir
como homem e de esquecer as virtudes próprias a seu sexo”. Por tão pouco foi guilhotinada no dia sete de novembro de 1793. Por por ironia ou zombaria, quis o destino lhe pregar uma peça. De Gouges, que clamava contra a pena de morte, justamente ela, que havia combatido a decisão da subida da rainha ao cadafalso, subiu tragicamente ao mesmo local 18 dias depois de Maria Antonieta. Sua cabeça rolou, mas seus ideais libertários não foram guilhotinados. Pelo contrário, engendraram manifestações que recrudesceram o movimento feminista mundo afora.
Em resposta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789 ), na qual os direitos da mulher eram excluídos, ela escreveu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (1791).

Considerando que a mulher e o homem deveriam ter igualdade de direitos, ela expõe o esquecimento do projeto revolucionário de incluir as mulheres na Declaração Universal de Direitos. Pretendia que seu texto fosse votado e aprovado na Assembleia Nacional. No entanto, ele foi ignorado pelos políticos. Só ganhou visibilidade mais de um século depois, a partir de 1896, ao ser publicado por Benoîte Groult.

O texto de De Gouges seguiu o mesmo modelo do texto revolucionário, mantendo os dezessete artigos, porém todos eles com modificações, de modo a incluir o sexo feminino. Por exemplo:

Artigo  1: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos...”
                 “A mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos...”

Artigo  2: “O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e 
                  imprescritíveis do homem...”
                “O  fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e
                  imprescritíveis da mulher e do homem...”

Artigo 3: “O princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação...”
                “O princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação,      
                  que nada mais  é que a reunião da mulher e do homem...”

Artigo 4: “...exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que
                 asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. 
                 Estes limites apenas podem ser determinados pela Lei.”
               “...o exercício dos direitos naturais da mulher só tem limites na tirania perpétua
                que o homem exerce sobre ela. Esses limites devem ser reformados pelas leis
                da natureza e da razão.”

Como na Declaração original, os dezessete Artigos são precedidos de um preâmbulo, com as devidas interferências. Vejamos, por exemplo, o último parágrafo do preâmbulo, com as devidas modificações:

    “Por conseguinte, a ASSEMBLEIA NACIONAL reconhece e declara, na presença e sob        os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do Homem e do Cidadão.”

“Por conseguinte, o sexo superior tanto em beleza quanto em coragem, nos sofrimentos maternos, reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do Ser supremo, os seguintes direitos da mulher e da cidadã.”


No final, diferentemente da Declaração original, os dezessete Artigos são seguidos de um epílogo de cerca de quatro páginas, conclamando as mulheres a acordarem com o toque do alarme da razão: “Mulheres! Mulheres! Quando deixareis de ser cegas?”

De Gouges reivindicava direitos que até hoje criam polêmicas, tais como o “direito à própria pessoa”, incluindo a autonomia de decisão sobre a gravidez; relações amorosas livres; direito dos filhos, independentemente de que pais provenham, ou seja, dentro e fora do casamento; dissolubilidade do matrimônio, entre outros.

Escreveu também Contrato social, propondo casamento com igualdade de condições para os parceiros. Uma de suas peças de teatro, intitulada A escravidão dos negros, que condenava a injustiça da escravidão e que acusava abusos do antigo e do novo regime, causou grande polêmica.

Para exemplificar sua veemência em prol da causa feminina, encerro estas breves considerações, com um excerto de uma carta de Olympe de Gouges à rainha Maria Antonieta, esposa do rei Luís XVI:

“A senhora nunca será incriminada por trabalhar na restauração dos costumes, por dar ao seu sexo toda a consistência da qual ele é susceptível. Infelizmente, para o novo regime, essa obra não é o trabalho de um dia. Essa revolução só acontecerá quando todas as mulheres tiverem consciência de seus destinos deploráveis e dos direitos que elas perderam na sociedade. Apoie, minha senhora, tão bela causa! Defenda esse sexo infeliz, e em breve a senhora terá a seu favor a metade do reino e pelo menos a terça parte da outra.” (In Rovere, p. 254)

Referência:
ROVERE, Maxime. Arqveofeminismo: mulheres filósofas e filósofos feministas séculos XVII-XVIII. São Paulo: n-1 edições, 2019. 271 p.