quinta-feira, 20 de abril de 2017

QUANDO, COMO E ONDE?

Por que nascemos para amar, se vamos morrer?
Por que morrer, se amamos?
Por que falta sentido ao sentido de viver, amar, morrer?
(Carlos Drummond de Andrade)
 
Enquanto não se descobre a fonte da eterna juventude, nós, simples mortais, almejamos vida longa e saudável. Já que a morte é inevitável, que seja mansa, sem dores e sem sofrimentos. Tudo isso foi conseguido pela francesa Dominique Deschamps. Viveu um século gozando de ótima saúde física e mental. Seus filhos se casaram e se multiplicaram. Cada um seguiu sua sina, mundo afora. Apenas ela permaneceu apegada à terra natal, à casa, ao jardim, aos animais de estimação...  Com o tempo, aprendeu a apreciar o silêncio, parceiro constante da solidão. Dia após dia, clarões de lembranças adentravam-se pelas janelas da rotina. Gostava do cantinho escolhido para aguardar o fim.  Não era luxuoso, nem grandioso, mas aconchegante e repleto de reminiscências. Bastava fechar os olhos e viajar no tempo, para reviver a vitalidade e a alegria ali reinantes durante décadas. Filhos, netos, bisnetos correndo, subindo e descendo a escadaria; mesa grande e farta, rodeada de olhos cobiçosos; narizes sensíveis e paladares vorazes, prestes a atacar o repasto cotidiano.

Dominique morava sozinha. Vivia totalmente independente da família. Tinha uma doméstica para as tarefas pesadas, mas era ela própria que pilotava o fogão e os eletrodomésticos. Aos noventa e oito anos, certo dia, estando sozinha, escorregou, desequilibrou-se, e caiu. Não houve nenhuma fratura, mas ela não dispunha força suficiente para se erguer. As vãs tentativas duraram horas, até que, depois de ter se arrastado, conseguiu se apoiar num móvel e se aprumar. No dia seguinte, ao receber a empregada, disse-lhe:

- Isabelle, vou morrer daqui a dois dias.
- Como assim, Madame?
- Estou velha. Não quero mais viver.
- Mas a família precisa ser avisada. Façamos um encontro de despedida. A senhora não pode partir sem dizer adeus aos que a amam.
- Está bem. Então convoque-os.

No final de semana seguinte, a família reunida tentou dissuadi-la do intento. Durante o almoço de domingo, estando à mesa, ela pediu a palavra, agradeceu a presença de todos e explicou o motivo de sua decisão irrevogável.

- Vivo sozinha, nesta casa, desde que vocês se foram. Gosto do cantinho onde ancorei minha solidão. Aqui tenho sossego. Sempre tive boa saúde, mas as restrições da idade são implacáveis. Não gostaria, em hipótese alguma, de ficar dependente de outrem para as necessidades básicas. Enquanto tive autonomia para viver sem ajuda de quem quer que fosse, não pensei na morte. Nesta semana, levei uma queda e tive muita dificuldade para me levantar. Qualquer dia desses, pode me acontecer algo pior. Não quero tropeçar na própria sombra, nem me sustentar em bengalas de decrepitude até que uma enfermidade qualquer me leve daqui. A vida é minha. Tenho o direito de acabar, quando quiser, com a dor de existir. O tempo não tem pressa, mas eu tenho. Prefiro partir antes da chegada do sofrimento. No entanto, gostaria de ficar eternamente rodeada por essa linda família, que tanto amo.

- Mas mamãe, disse Paul, pretendemos fazer uma grande festa, daqui a dois anos, para comemoração do centenário de seu nascimento. Será uma cerimônia inesquecível para todos os descendentes. Depois disso, a escolha é sua, já que, mais cedo ou mais tarde, a partida é inexorável. Não discordo de sua decisão. A meu ver, todos deveríamos ter o direito de escolher como, quando e onde vamos dar o último suspiro. Mas, por favor, não encurte seu caminho. Espere pela festa. Fazemos questão disso.

- Está bem. Já que é importante para vocês...
- Ôba!!!

Todos aplaudiram em sinal de contentamento, fizeram um brinde à sua saúde, e partiram contentes.

Dois anos se arrastaram, morosamente. Dominique se sentia cada dia mais fraca. Dez dias antes da festa, decidiu que, dali em diante, não comeria mais. Tomaria apenas líquidos, para aguardar o encontro do adeus. Informados da estranha decisão, os filhos decidiram mantê-la sempre acompanhada, para que não cometesse nenhum desatino. Não poderia lhes fazer a desfeita de partir antes da hora (como se a festa fosse mais importante que a partida). A celebração, organizada com pompa e entusiasmo, não tinha nuances sombrias de despedida, nem de luto.

Debilitada pela inanição, manteve-se assentada o tempo todo, durante a festa, sem grandes alegrias, nem desassossegos. Seu olhar percorria o amplo salão: os antigos lustres de cristal, os móveis estilo Luís XVI, a imponente escadaria com corrimão dourado, as paredes decoradas com quadros valiosos de Corot, Delacroix, Renoir, Gauguin, preciosidades passadas de geração em geração; provável motivo de desavenças, na hora da partilha. Fitava tudo e todos longamente, como se fosse pela última vez. Parecia querer levar, para o além, as minudências da vida, presas à memória visual.

A decisão de não deixá-la sozinha foi mantida durante a festa. Para surpresa de todos, ao lhe servirem suco de uva, ela exigiu seu champanhe preferido, Veuve Clicquot, chamado afetivamente por ela de “La Grande Dame”. Após tragos e mais tragos, num vislumbre de outrora, Dominique chegou a esboçar alguns passinhos de dança. Aplausos entusiásticos.  Sentia-se radiante, como centro de todas as atenções. Disse que não faria discurso de despedida. No entanto, ao se ver diante de um microfone, e de dezenas de olhares interrogativos, não resistiu.

- Meus queridos! Como lhes disse, há dois anos, se pudesse, eu ficaria eternamente com vocês. No entanto, tenho que respeitar as leis da natureza. Diz o adágio popular que cada um tem sua vez e sua hora. Agora é minha vez de partir. No futuro, estaremos todos em outra dimensão, dentro da grande incógnita, da qual nada sabemos e de onde não poderemos voltar. Por isso, meu último conselho é que vivam a vida em toda sua plenitude. Não desperdicem tempo com inutilidades nem patifarias. Saúde e vida longa a todos vocês. Tim-Tim!

Aplausos e mais aplausos. A festa transcorreu normalmente, mas com visível ansiedade no ar. Ninguém lhe perguntar como nem quando seria a partida. Tratava-se de uma decisão de foro íntimo, pessoal e intransferível.

No dia seguinte, todos se dirigiram à “salle-à-manger”, para o desjejum. Somente a vovozinha continuou em sua alcova. Um sono profundo, de conluio com a eternidade, providenciou seu último desejo. Partira no oco da madrugada, sem sofrimento algum (como desejava), deixando, no aconchego do leito, apenas a carcaça para as devidas exéquias e prováveis prantos.

Jô Drumond