terça-feira, 13 de outubro de 2020

SÚPLICA ESCULPIDA

 


Essa interessante imagem, recebida pela Internet, poderia servir de ícone para o ano de 2020. Ela pode nos remeter a um pedido de socorro de Gaia (Mãe-Terra) e de seus viventes, que enfrentam dois grandes problemas mundiais na atual conjuntura: pandemia e incêndios florestais. O mundo se encontra devastado por queimadas de toda sorte e pelo flagelo do vírus corona. Desconheço a autoria do escultor do tronco falido, assim como a do fotógrafo. Ambos estão de parabéns. Essa imagem realmente “vale mais que mil palavras”*. Sua alta densidade sígnica suscita uma inesgotável polissemia que se desdobra infinitamente.

No primeiro plano, vê-se nitidamente um corpo feminino esculpido num tronco morto. As raízes se abrem formando uma cauda de vestimenta feminina, em verde musgo. É como se a mulher estivesse brotando do solo, seminua, braços erguidos aos céus, cabeça jogada para trás, num gesto de súplica, pedindo socorro. Os dois galhos correspondentes aos braços têm bifurcações que se multiplicam indefinidamente nas extremidades, ou seja, o pedido de proteção não é apenas para si. É para bilhões de braços erguidos aos céus, implorando clemência.

Em segundo plano, há uma floresta seca, sem nitidez, em tons sombrios. A antropomorfização do tronco, em corpo feminino, contrasta com as formas aleatórias das árvores secas, ao fundo; a suavidade das linhas femininas contrasta com a aspereza do entorno; a claridade do primeiro plano contrasta com o cinza esfumado do segundo, zona de indefinição, com a profusão de elementos. O obscurecimento da imagem pode transmitir tristeza e inquietação diante do indefinido e do inexplicável.

O tronco/corpo esculpido pode corresponder à dobra deleuziana, ou seja, à transição entre dois polos, onde se dá a tensão da fricção dos opostos. Ele pode simbolizar também a efemeridade da vida, período transitório entre brotamento e fenecimento / nascimento e morte.

Vejamos alguns dados estatísticos do que nos aflige no mundo de hoje. Desde o início da pandemia, há dez meses na China e há sete meses no Brasil, computam-se cerca de trinta e sete milhões de casos da doença, com mais de um milhão de mortes. No Brasil, pouco mais de cinco milhões de casos com cerca de cento e cinquenta mil mortes.

Quanto aos incêndios deste ano, no Brasil, o número triplicou em relação ao mesmo período de 2019. Em outras partes do mundo, como Austrália, Ártico Siberiano, Estados Unidos, entre outros, os incêndios florestais deste ano foram os maiores de todos os tempos, segundo dados compilados pelas organizações especializadas.


Alguns estudos em desenvolvimento têm relacionado, ainda sem comprovação, possíveis casos graves de covid-19 com a poluição do ar causada pelos incêndios. Isso porque, em reservas indígenas, próximas aos incêndios florestais, a infecção pandêmica tem sido mais de 150% maior que no restante do país. Considera-se que, em todo o mundo, os incêndios sejam os maiores das duas últimas décadas, sendo que os da Amazônia, do Pantanal e do cerrado brasileiro são considerados sem precedentes. Isso é preocupante, pois sabe-se que o dióxido de carbono e outros gases liberados nas queimadas tornam a terra mais quente (efeito estufa) e as florestas mais secas, o que engendra mais e mais incêndios, num ciclo de retroalimentação.

O mundo parou em 2020 devido a um vírus até então desconhecido e letal. Ao relacionar essa imagem à atual circunstância, podemos detectar ícones que transmitem a inconclusa dialética barroca de tese / antítese, na qual não pode haver síntese para que se mantenha a tensão das dubiedades: vida/morte, início/fim, alto/baixo, primavera/inverno, terra/céu, reino animal/vegetal… Tal tensão pode gerar ambiguidade, dúvida, imprecisão, imprevisão, incerteza, inconstância, indefinição, insegurança, instabilidade, medo, morte, ofuscamento, transformação…

Na história da humanidade, há períodos em que prevalece a racionalidade, a exatidão, e  há períodos em que prevalece o gosto pela imprecisão. Em época de paz e tranquilidade, há uma preferência pela estética clássica centralizada, harmoniosa, equilibrada, com cores suaves… ; em tempos conflituosos, a preferência preponderante recai justamente sobre a estética contrária: a barroca.

O mundo contemporâneo, apesar de ser detentor de instrumentos de alta precisão e de avançada tecnologia, entrega-se ao prazer da imprecisão. Talvez, justamente a sensação de insegurança, gerada pela dubiedade, interligada ao prazer estético tenha atraído meu olhar para essa floresta de símbolos.

NOTA: *“Uma imagem vale mais que mil palavras”: assertiva de antanho que se popularizou e que é muito utilizada em campanhas publicitárias. Considera-se que a comunicação imagética é mais apelativa, mais explicativa e, portanto, mais entendível que a comunicação verbal. Essa frase, muito comum hoje em dia, foi um legado de Confúcio, filósofo chinês que viveu entre 552 e 479 a.C.

Jô Drumond –  outubro de 2020


RETORNO DOS LEITORES – CRÔNICA “SÚPLICA ESCULPIDA”


CHICO BRANT – BELO HORIZONTE - MG

Seu texto, Jô, é primoroso. Só mesmo uma sensibilidade aguda e fina pode expressar o momento de tantos males que afligem toda a humanidade. Claro que deve haver uma explicação para o atual pandemônio mundial. Mas por ora a palavra é da sensibilidade, como você expressou.

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LOLA – VITÓRIA - ES

Boa noite, Jô.

Estou encantada com o seu texto.

Exatamente o que temos vivido nesse ano de 2020.

A imagem choca o nosso olhar e mexe com os nossos sentimentos.

Sem a natureza viva, nada seremos!

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MARIA HELENA ARNIZAUT – VITÓRIA - ES

Excelente reflexão sobre essa imagem tão forte, Jô! Neste momento delicado que estamos atravessando, até a figura esculpida deve estar suplicando pela volta da "estética clássica centralizada, harmoniosa, equilibrada, com cores suaves…", como você disse.

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MARIA DA PENHA – MATHILDE - ES

Jô, que seus textos são bem articulados e bem escritos, não há dúvida. Mas há que se falar de sua aguçada percepção, percepção apuradíssima, na análise da imagem que te encantou, com razão. Sempre bem informada, você faz um paralelo entre conhecimentos filosóficos, estéticos, sociais, históricos... Você é fora de série, Jô. A gente frui a beleza do texto, se informa e aprende. Parabéns, amiga.

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NEUSA SERRANO – FAZENDA DOS LAGOS - ES

Enquanto a natureza suplica por socorro, a ganância sem limites do homem destrói a vida do planeta!!! 🦥🐿🕊🦜🦩🐂🐆🐅🦍🐗🦅🐢🐒🦉🐺🌳🌴🌵🌹🌸🔥🔥😞😔😞😩

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TETÊ – VITÓRIA - ES

A imagem é potente e nos faz refletir bastante!!!

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NONA – VITÓRIA - ES

Muito tocante, súplica da natureza, fiz um comentário no jornal acontecendoonline, mas não foi publicado!😍😍👍🌱🌿🍃🎋

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MARIA JOSÉ NUNES – PATOS DE MINAS - ES

Li e reli. A deusa das palavras. Parabéns!

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MARIA LÚCIA – VITÓRIA - ES

É verdade. “ Uma imagem vale mais que mil palavras “. Lindíssima. Beijos 😘

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MARLISE CORRADI – VITÓRIA - ES

Incrível! A natureza gritando!

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CLEONICE – CAMPO GRANDE - MS

Tão bela comparação me mostra a sensibilidade de sua alma que juntamente com seu contínuo esforço culminaram em tamanha sabedoria e capacidade de expressão, capazes de alcançar nossos sentimentos e chamar a atenção para existências imensamente preciosas que temos na natureza. Fiquei emocionada. Não contive o choro.  Muito obrigada. Beijos.

..................................................................................................................................................... MARIA BEATRIZ NADER – VITÓRIA - ES

Muito triste, mas muito bonito. Realmente, a mãe terra pede socorro em forma de mulher que clama aos céus o conforto para si e para todos e todas filhas que estão secando ao fundo da imagem e do planeta. Está na hora de fazermos alguma coisa...mas, o que poderemos fazer? somos mulheres neste mundo de homens machistas, misóginos, classistas e racistas. O planeta está se consumindo e nós com ele ... ou ela.

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ADRIANA  - VITÓRIA - ES

Excelente texto, Jô!

Vc conseguiu unir todas as artes com seu texto lindo e tristemente real!!!! Parabéns !!! 👏🏼👏🏼🌻🌻🥰🥰

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MARIA DA CONSOLAÇÃO – PATOS DE MINAS - MG

Mais um belo texto da minha atual escritora predileta!!! Parabéns,Tia Jô!!!

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ANDRÉIA MICHELUCCI – VITÓRIA - ES

Muito legal! Realmente a imagem transmite uma profusão de elementos que dão margem a diversas interpretações.  Gostei da análise da “floresta de símbolos” interligando os dois flagelos da humanidade em 2020. Texto muito coerente e muito atual.

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VÂNIA – BELO HORIZONTE - MG

Impressionante, mesmo! Que análise mais detalhada, essa sua; uma descrição belíssima! Muito obrigada por compartilhar. 😘

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ANA ROSÁRIA CAIXETA – UBERABA - MG

Perfeita a imagem, de arrepiar! Muito bom o texto, acho que diz tudo!!! Obrigada querida! Beijos

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JAÇANAN – VITÓRIA -ES

Você definiu muito bem essa imagem e o que ela significa nesse ano 2020! Muita sensibilidade de sua parte. Um abraço.

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ÍTALO CAMPOS – VITÓRIA - ES

Texto denso, cheio de referência. Tenho que continuar lendo com a cabeça mais fresca.

Mas desde já, parabéns!

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DARCÍLIA MOYSÉS – VITÓRIA - ES

Chère Jô, sua análise está -- hélas -- tristemente muito, muito bem feita! Coesão e coerência em perfeita simbiose... Parabéns ! 🌻🌻🌻🌻🌻🌻

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DULCE – PATOS DE MINAS

Parabéns Jô. Vc expressou, em seu texto, a realidade que estamos vivendo. Incertezas, dúvidas, medo, confusão etc..... A imagem relata tudo. Quem a esculpiu definiu nitidamente a humanidade do século XXI – PATOS DE MINAS - MG

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ZEZÉ  - RIBEIRÃO DO CRISTO - ES

Perfeito seu texto. Nos transmite, exatamente, sua sensação

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ZEZÉ GUIMARÃES  - PATOS DE MINAS - MG

Muito interessante, instrutivo e reflexivo.

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