quinta-feira, 28 de abril de 2016

ATOLEIRO

Jô Drumond

No meu recanto da mata, situado no  Viveiro do Silêncio, ao entardecer de um chuvoso domingo, propício à malemolência, eu lia um bom livro de Joël Dicker, intitulado La vérité sur l’affaire Harry Quebert , ouvindo o ruído da chuva no telhado e o cicios da Mata Atlântica. Enquanto isso, meu marido tirava uma soneca sob um espesso edredom. Aquela noite seria propícia para assistir a um bom filme, no sítio, enrolado num aconchegante cobertor

Surpreendi-me com um chamado pelo walk talkie. Como o serviço de telefonia rural não é muito confiável na região, propusemos esse meio de comunicação aos sitiantes vizinhos, para situações emergenciais ou corriqueiras. Para tal usam-se codinomes: Leão da Montanha, Urso Pardo, Águia Ligeira e Jacaré do Brejo.  Um dos vizinhos (Leão da Montanha), já com a lareira acesa, nos convidava (Águia Ligeira) para uma soirée de queijos e vinhos, em sua mansão, no alto da serra. Evidentemente, o convite foi aceito de bom grado.

Acordei meu marido e, em poucos minutos, estávamos enfrentando a borrasca e uma estrada barrenta, em busca dos prazeres da mesa e de um bom bate-papo com amigos. No meio do caminho, uma árvore caída bloqueava totalmente a passagem. Tínhamos que voltar de ré, numa estrada muito estreita, com espaço para um só veículo, tendo de um lado um barranco e de outro, um lago. A visibilidade, na boca da noite, tornava-se quase nula devido ao temporal. O carro entrou num atoleiro, de onde se recusava a sair, apesar de inúmeras tentativas. Estávamos literalmente “no mato e sem cachorro”, como se diz na roça. Não havia como pedir ajuda. Celular ali, nem pensar! Sempre fora de área. O walk talkie havia ficado em casa. Meu marido me disse para aguardar no carro enquanto ele buscaria ajuda, antes que o breu da noite abocanhasse as réstias de luz no cimo das árvores. Meu pobre herói, saiu a pé, no barro, sob chuva gelada, sem proteção alguma e sem lanterna, sem enxergar onde pisava.

Que situação! E pensar que poucos minutos antes, ele estava a sonhar no embalo da chuva, sob um aconchegante edredom, ao abrigo das intempéries e de cobras peçonhentas. Desliguei o carro e apaguei os faróis para poupar bateria. Enquanto esperava, não havia nada a fazer. Tentei pensar em coisas alegres.  Lembrei-me da piadinha do carro atolado:

Um amigo cruzou com outro, cujo carro estava atolado.

̶  O que houve, perguntou o primeiro?
̶  Meu carro atolou-se, respondeu o segundo.
̶ Não é assim que se diz. O certo é “meu carro se atolou”
̶  Nada disso, você está errado. O certo é “meu carro atolou-se”.
̶  Não meu amigo! Na escola, sempre fui melhor que você em gramática.

O entrevero da colocação pronominal parecia não ter fim. Um passante aparentemente bêbado foi chamado para dar termo à discussão.
.̶  Os dois podem estar certos, disse o terceiro. Se o carro tiver as rodas dianteiras atoladas, ele se atolou; se tiver as traseiras, atolou-se.
̶ As quatro rodas estão atoladas, responderam os querelantes.
̶  Então, meus senhores, ele se atolou-se.

Devia ser noite de lua nova. Não enxergava um palmo diante de meu nariz. Fiquei atenta aos ruídos do entorno.  Depois de algum tempo, comecei a cismar. E se acontecer algum incidente com meu marido no caminho? E se ele não voltar? Se, por exemplo, escorregar, quebrar uma perna e ficar impossibilitado de pedir socorro? Tomei uma resolução: se ele demorasse mais de quarenta minutos, teria que procurá-lo. Que transtorno! Trocar o aconchego do veículo pela caminhada no barro, em noite escura, sob chuva fria, e, o que seria pior, sozinha!  Melhor nem pensar nisso, mas seria inevitável.

Após trinta minutos de espera, avistei uma luzinha tremeluzente vindo em minha direção. Era o Leão da Montanha, a pé, segurando numa das mãos um lampião a gás, e na outra, um guarda-chuva. Pouco depois um carro se aproximou, por trás, trazendo três ajudantes. Como não havia cordas, eles empurravam enquanto eu acelerava. O “desatolamento” foi mais fácil que o previsto. Melhor seria voltar pra casa. A árvore caída poderia ser serrada na manhã seguinte, caso a chuva desse trégua.

O inesperado pode nos pregar uma peça a qualquer momento. Caso pudesse ser previsto, perderia a graça. Deixaria de ser imprevisto. Adeus noitada de queijos e vinhos!

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGE

quinta-feira, 14 de abril de 2016

O VELHO CHICO

 Visita à nascente do rio São Francisco, na Serra da Canastra (MG))
Jô Drumond


Tímidos olhos d’água abrem-se silenciosos no alto da Canastra. Filetes finos, cristalinos, vão se unindo na nascente, avolumam-se nas vertentes. Impetuosas torrentes irrompem em cascatas, rompem o silêncio das matas. O rio bosqueja enleios, traça meandros, volteios, glissa entre ribanceiras serpenteando ribeiras e segue sua sina como eixo do sertão, levando muitas histórias de hoje, de ontem, de outrora e dos dias que virão.




segunda-feira, 4 de abril de 2016

INJÚRIAS LÍQUIDAS

*Jô Drumond 

João de Moura Brochado era uma figura singular, quase mítica. Loquaz, empenhava-se na utilização dos recursos e regras da retórica em terra de semianalfabetos. Elegante, envergava impecáveis ternos em terra de descamisados. Fino e cortês, exercitava a etiqueta no rude sertão mineiro. De comportamento bizarro, vivia em dissintonia com seu tempo e espaço.

Vista parcial da cidade de Coromandel, MG
Essa figura paradoxal e controversa exerceu o magistério durante algum tempo, na década de 1930, na escola rural do Serradão, próxima à fazenda de meu bisavô Manoel Caixeta, de onde minha mãe, ainda criança, saía quotidianamente a cavalo para aprender, com ele, cartilha e tabuada. Mais tarde, veio a ser um respeitado Mestre na pequena cidade de Coromandel (MG), também chamada naquela época de Rua, pelo fato de ter uma única via de tráfego. Foi aí que vivenciou o ocaso de sua vida, sem perder a postura nem a eloquência.

Sua verborragia ficou famosa em toda a redondeza. Dizem que, certo dia, as esfomeadas galinhas de um vizinho invadiram sua horta, estragando grande parte das verduras. Com aristocrática postura e magistral entonação, dirigiu-se ao proprietário das aves em tom reclamante: “Não é tanto pelo valor intrínseco do vegetal danificado, mas pela petulância dos bípedes que transpuseram as muralhas de meu domínio”.

Naquela época, a cidade de Coromandel ainda não era calçada. Apesar do pó vermelho, em tempos de seca, e da lama barrenta, em tempos chuvosos, De Moura envergava com frequência um impecável terno de linho branco, na única e poeirenta rua da “Rua”. Num pluvioso dia de verão, durante suas habituais andanças, apareceu todo enlameado. Questionado sobre o incidente, respondeu: “São as injúrias líquidas lançadas pelas rodas borrachinosas de um veículo em movimento”.

De outra feita, viu-se na obrigação de atravessar um rio sem ponte. A travessia era feita por um velho canoeiro que carregava sempre consigo um cachorrinho de estimação. Dirigiu-se ao ancião com sua linguagem peculiar:

- Bom dia, meu senhor. Quanto me cobra em pecúlio para trasladar-me de uma margem à outra?

Sem entender a pergunta, e, inferindo que o passageiro se referia a seu fiel companheiro, respondeu:

- O sô pode entrá, que meu cachorrim num morde não.

Toda a prolixidade de João de Moura, no entanto, foi insuficiente para justificar seu hilariante sobrenome diante da derrisão alheia. Era-lhe inútil frisar que o vocábulo “Brochado” estava diretamente relacionado às Letras e, por conseguinte, à sua profissão; que correspondia ao particípio do verbo brochar, no sentido de prover ou fechar com brocha (fecho). Exemplificava, dizendo que as estantes da biblioteca estavam repletas de brochuras, ou seja, de livros encadernados pelo sistema de brochagem. Malgrado a explanação etimológica, os entreolhares maliciosos provocados pela vocalização de seu sobrenome indiciavam que a acepção de impotência sexual prevalecia nas mentes profanas.

João de Moura Brochado já se foi, há tempos, para dimensões desconhecidas dos viventes onde, quem sabe, pode estar exercitando sua “prosoposéia”. Contudo, sua figura folclórica perdura em uma infinidade de “causos” a seu respeito. A saudade do grande Mestre e a nostalgia dos tempos idos permanecem ainda nos anciões coromandelenses; as bizarrias do acrônico e atópico letrado persistirão, de geração em geração, na memória popular.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)

sábado, 2 de abril de 2016

O CONTADOR DE CAUSOS

*Jô Drumond

De minha infância, na fazenda Capão Chato, só tenho boas lembranças, exceto as dos casos de assombração que me assombraram vida afora. Na década de cincoenta, ainda não havia eletrificação rural; por conseguinte, nem luz, nem televisão. À noite, sem nada a fazer, o passatempo preferido dos adultos era o de se reunir em volta de uma lamparina ou lampião, para contar causos do sertão. 

Cada um se comprazia em contar as mais escabrosas histórias, para assombrar a meninada, o que, muitas vezes, acabava por afugentar o sono. No inverno, improvisava-se calefação: uma lata de 50 litros, repleta de brasas. Em volta dela, as crianças ouviam os relatos comendo pipoca. O negror daquelas noites era povoado de fantasmas, alguns deles tão poderosos, que, às vezes, até hoje ainda tentam destelhar minha memória, embora sejam imediatamente rechaçados.

Era usual a organização de reuniões para audição de literatura oral, principalmente nos finais de semana. Xibiu, um famoso contador de causos, era sempre convidado pelos fazendeiros dos arredores, para contar suas lorotas. Tratava-se de um pequeno ancião de fala mansa. Sua pele era tão escura que brilhava feito diamante negro. Naquela região, os pequenos diamantes eram chamados de xibius. Daí, a origem de seu apelido. As famílias fazendeiras da circunvizinhança reuniam-se sob um mesmo teto para ouvi-lo. Formava-se uma pequena plateia que, muitas vezes, atravessava horas sem perceber o fluir do tempo, presa ao fio narrativo.

Esse contador de histórias tinha o dom da eloquência. Associava intuitivamente o volume, a entonação da voz e a mímica à narrativa, de modo a causar comoção. Despertava, na audiência, os mais diversos e contraditórios sentimentos: alegria, tristeza, ira, paixão, enternecimento, medo, coragem, suspense, terror... Nessas noitadas do sertão, o deleite, tanto dos ouvintes quanto do contador, era recíproco. Xibiu, sem eira nem beira, sentia-se poderoso ao ter diante de si uma plateia seleta, manipulada a seu bel prazer. O público, já predisposto, extasiava-se com facilidade, ao sabor das aventuras e dos mistérios. Nas soirées literárias, o “senhor da palavra” tinha seus momentos de glória em sua vida severina. Aplicava-se na arte de encantar e de conduzir os ouvintes a universos nunca dantes vislumbrados.

Xibiu nunca frequentou sala de aula, nem sala de projeções. Nunca teve acessos a livros, nem ao saber convencional, mas carregava muita sabedoria nos bolsos da vida. Apesar de jamais ter se deslocado do sertão, era o guia perfeito para grandes viagens míticas. Em sua única e eterna viagem, levou consigo muitos causos inéditos, que devem estar fazendo a alegria dos querubins ou serafins.

Como dizia o poeta Fernando Pessoa, “o mito é o nada que é tudo”. O mito é, muitas vezes, mais forte que a realidade. Ele se torna real a partir do momento em que há um natural contrato fiduciário entre o contador de histórias e o ouvinte, ou entre o escritor e o leitor, assim como entre o cineasta e o espectador. A fidúcia transforma a ficção em realidade. 
Ao nos embrenharmos nas aventuras rocambolescas de uma película cinematográfica ou na leitura de um bom livro, deixamos de lado a faina do cotidiano, fugimos do tempo cronológico e entramos no tempo mítico. Podemos alçar voos, conhecer novos mundos, viver outras vidas. O cinema, o teatro, a literatura, enfim, a arte em geral tem essa capacidade arrebatadora de subverter a noção espaço-temporal, de nos adentrar no antitempo.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)