sábado, 31 de agosto de 2019

PROCISSÃO MARÍTIMA



Desde que vim morar na Ilha de Vitória, encantei-me com o visual da procissão marítima, no dia de São Pedro*. Uma miríade de barcos decorados com bandeirinhas, flores, peixes e outros ornamentos multicoloridos enfeitam a baía de Vitória. Um espetáculo lindo de se ver no dia dedicado ao santo protetor dos pescadores. A festa em Vitória é celebrada, em grande estilo, há quase um século. Ela engloba programações gastronômicas, culturais e musicais. O cortejo terrestre é feito logo após a missa das oito da manhã, na paróquia de São Pedro. A procissão vai do templo até à Capitania dos Portos, onde começa a procissão marítima, às dez horas, no Píer dos Pescadores. À frente do cortejo, segue uma embarcação com capacidade para 30 pessoas, entre as quais padres sacristãos e coroinhas devidamente paramentados, levando uma imagem do padroeiro.
A procissão marítima é acompanhada também, em terra, pela população, que se posta na avenida Beira-mar para apreciar o cortejo. As embarcações com decorações mais originais e criativas podem ser premiadas pela Prefeitura da cidade. Isso faz com que a procissão fique mais bonita e colorida. Ela se inicia com grande queima de fogos, que acompanha esporadicamente o percurso, e termina com outra grande queima, na Praça do Papa, onde acontece o ponto alto do evento, junto à Cruz: a Bênção dos Anzóis. Nesse momento, é abençoado o anzol do mais antigo pescador de Vitória.
Como sempre acontece em quase todas as festividades religiosas, o sacro e o profano andam pari passu.  Após a devoção, a diversão. Em terra, feira gastronômica, música e entretenimentos. No mar, diversas embarcações alongam a festividade durante todo o dia.
Ancoramos nossa embarcação em águas mansas, próximo à Ilha do Frade, diante de um visual esplendoroso, com direito a mergulhos, churrasco e pôr do sol. Uma inesquecível jornada familiar de confraternização entre avós, filhos e netos, festejando a vida com boa música, dança e muita alegria.
*São Pedro
Seu nome original era Simão ou Simeão, foi pescador, assim como seu pai Jonas e seu irmão, o apóstolo André. Conheceu Jesus, por intermédio de André, graças a uma indicação de João Batista. Desde o primeiro dia foi nomeado Pedro (kepha = pedra em aramaico) pelo Mestre. Acabou se tornando um dos discípulos mais íntimos. Sua liderança carismática se acentuou, após a morte de Jesus. Em seu primeiro sermão, no dia de Pentecostes, conseguiu fazer com que cerca de três mil pessoas recebessem o batismo. Seu trabalho missionário era itinerante. Acabou preso e encaminhado a Roma, onde fundou e presidiu uma comunidade cristã, motivo pelo qual acabou crucificado, por ordem de Nero. Fato interessante é que foi crucificado de cabeça para baixo, em atenção a um pedido seu. Não se sentia digno de ser crucificado na mesma posição de seu Mestre.

sábado, 17 de agosto de 2019

SANTA CENA

Ao fazer uma caminhada matinal no calçadão da Praia de Camburi, em Vitória, deparei com uma cena santa, digna de apreciação: a “Santa Cena”, como se diz em espanhol, construída em areia, em tamanho natural, rente à calçada, ao abrigo da maré. Não sendo época de ressacas, nem de tempestades, a obra será menos efêmera que o previsto. Jesus e os apóstolos estarão livres das intempéries, mas à mercê do bicho-homem. O artista mantém-se plantado in loco, noite e dia, para proteger sua cria, contra vândalos e bêbados.

Não me contive. Parei para ver os detalhes. Fui imediatamente abordada pelo escultor. Puxei um dedo de prosa e soube o bastante para me decepcionar com a espécie humana. Disse-me que, outro dia, se afastou para se abrigar da chuva, sob uma marquise. Ao voltar, viu seu trabalho parcialmente destruído. Como pode alguém praticar uma ação tão vil? O rapaz passou a morar ao relento, em pleno inverno, para resguardar seu sustento. Em sua atual morada (ou ausência de), Waldemir Pereira tem privilégios extras. Pode assistir ao belo espetáculo da Lua refletida no oceano, pode ter um teto estrelado e pode adormecer ouvindo o rumor das vagas. No entanto suponho que prefira cama macia, o reflexo da Lua emoldurado na parede e o som de uma bela canção.

Todo passante, ao parar para apreciar ou fotografar a obra de arte, é discretamente abordado pelo artista, e acaba deixando-lhe uns trocados. Trata-se de um tipo de mendicância sacro-artística. Metaforicamente, supre-se o físico por vias espirituais. Pede-se pela sobrevivência imediata, por meio de algo simbolicamente perene. Os passantes religiosos sentem-se bem em ajudá-lo. Os que não professam religião alguma fazem-no por amor à Arte ou à Filosofia. Em verdade, somos todos passantes, seja no calçadão seja no tempo, um pouco menos efêmeros que esculturas de areia.

Aparentemente, o artista não quer considerar-se um mendicante qualquer.

A prova disso é seu nome postado, em letras garrafais, em uma tosca placa improvisada. Em frente à obra há outra placa, redigida em inglês. Thank’s for your contribution. Se o adjutório surgir em dólar ou euro, tanto melhor.

Implicitamente, o escultor demonstra ser merecedor deu uma recompensa. Ninguém carrega dinheiro consigo, para caminhar no calçadão ou na areia da praia, a não ser alguns trocados para água de coco ou picolé. No entanto “de grão em grão” o artista mantém seu ganha-pão.

Prometi-lhe que voltaria com a máquina fotográfica e com a ajuda solicitada.

Na manhã seguinte, ele não estava a postos. Deve ter saído rapidamente para alguma necessidade básica. Nesse interim, alguém havia decapitado a figura central da Santa Ceia. Durante a caminhada de hoje, terceiro dia, a cabeça de Cristo estava refeita. Veja fotos.


O fato de refazer continuamente sua obra nos remete à Sísifo, da mitologia grega. Sísifo foi condenado a empurrar, para sempre, uma pedra até o cume de um penhasco. Antes de alcançar o topo, a pedra rolava ladeira abaixo, sistematicamente, invalidando todo o esforço da subida.


O filósofo do absurdo, Albert Camus, lançou mão desse mito para escrever um ensaio, no qual faz uma analogia entre a falta de sentido da sina de Sísifo, e a falta de sentido de nossa existência nesse mundo, a seu ver, ininteligível.

Veremos até quando Waldemir suportará a luta contra malfeitores invisíveis e o fardo do eterno refazer. Diferentemente de Sísifo, ele conclui seu trabalho a cada vez que a restauração se faz necessária. Acompanharei sua sina e darei minha contribuição, por amor à Arte, enquanto sua Santa Ceia estiver ancorada na minha praia.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

SANA INSANITAS

Ao apoiar-se no peitoril de sua janela de estimação, Candinha viu passar, a cavalo, um vulto feminino, franzino. A rapidez não lhe permitiu a identificação. Ela conhecia todos naquele vilarejo. A amazona parecia apressada. - Normalmente, ninguém galopa dentro da cidade, disse a si mesma - a não ser que esteja apertado para ir ao banheiro ou para tirar o pai da forca. Quem será? Por que tanta pressa? Aonde estará indo?
Candinha sabia de tudo que se passava naquele vilarejo. Conhecia as qualidades e os podres de cada morador. Não se conformava de ter deixado passar esse furo de bisbilhotice.
Resolveu fazer sua ronda matinal pelas ruas adjacentes, à procura de novidades. Notou grande atropelo diante da casa de seu Zé da Onça, um respeitado senhor que ficara com essa alcunha por ter enfrentado uma onça a unhas e dentes. Pelo menos era o que diziam. Pois bem, como era de se esperar, a mexeriqueira de marca maior, vislumbrou o que procurava. Notícia quentinha, saindo do forno. A vizinhança se aglomerava à porta de seu Zé. Ele procurava por sua avó, de 92 anos, que desaparecera misteriosamente naquela manhã. A seu ver, a mente de Vó Zita já vacilava entre realidade e devaneios. Às vezes aparentava normalidade, às vezes divagava por mundos utópicos ou incógnitos, o que deixava a família apreensiva. Certo dia, ela disse, em tom de brincadeira, à sua bisneta preferida que fingia ter Alzheimer, por divertimento. Gostava de ver a cara de tacho dos que a cercavam, quando misturava “lé com cré”. A bisneta não acreditou. Pensou que fosse uma maneira de justificar seus lapsos de memória. A idosa morava sozinha, mas  quase sem autonomia, em uma pequena casa de fundos, de modo a ser monitorada o tempo todo pela família. Nunca saía desacompanhada. Porém, naquele dia, evaporou-se como água. Procuraram-na por toda a vizinhança. Nesse interim, Seu Jacó se aproximou, procurando por seu cavalo baio, que também havia desaparecido. Num átimo, Candinha matou a charada. Regozijou-se com a descoberta e empavonou-se, com ares de detetive, para dar a boa nova.
- Vovó Zita, a cavalo? A galope? Não! Não é possível! Você está zombando de nós, Candinha! – disse Zé da Onça.
- Bem,  não posso jurar de pés juntos que era ela, mas ao que tudo indica...
Seu Zé tirou o carro da garagem e percorreu as redondezas. Primeiramente foi à casa de parentes. Não a tendo encontrado, foi ao sítio da família. Ninguém a tinha visto. Percorreu todos os sítios e chácaras da circunvizinhança, em vão.
O dia se foi, e a noite chegou, sem sombra da vovozinha. Onde passará a noite? Estará perdida neste mundão de Deus? Pobre coitada! Enfrentar o frio e o breu da noite, nessa idade!...
Os vizinhos reunidos e solidários puxaram o terço pelo surgimento da desaparecida.  Após a reza, prosearam à espera do sono. Aos poucos, foram se dispersando. Na família, ninguém conseguiu pregar o olho naquela noite. Na manhã seguinte, aproximou-se um cavaleiro, apeou e bateu à porta. Era o mandalete da fazenda do Coité, rapazinho esperto e espevitado, com boas novas. A vovozinha fujona foi parar a trinta quilômetros de distância na fazenda onde nascera. Como conseguiu ir tão longe, sozinha? Como conseguiu encontrar o caminho de suas raízes? – Muitas interrogações no âmbito familiar.  Zé da onça reuniu os filhos e partiram todos em busca daquela que havia batido em retirada, sem sua anuência.
Ao chegarem à fazenda do Coité, foram muito bem recebidos pelos moradores, com cafezinho e pão de queijo. Naquele momento, vó Zita estava fazendo a sesta, em uma chaise-longue, na varanda dos fundos.  Antes de ter contato com a anciã, informaram-se sobre sua chegada e sobre seu comportamento.  Ela realmente chegara sozinha, a cavalo, completamente lúcida e disse que havia resolvido voltar à sua terra natal porque não suportava mais ser vigiada e ao mesmo tempo paparicada, como se fosse criança. Queria voltar a levar a vida de antes, com autonomia para pequenas extravagâncias e com direito de ir e vir.
Ao entrarem na varanda, ela os cumprimentou formalmente, como se nunca os tivesse visto. Ao se identificarem, ela disse com toda naturalidade: ¬ Deve haver um Equívoco. Não os conheço e tampouco conheço a pessoa que estão procurando. Moro aqui desde menina e aqui permanecerei até o último suspiro.
Ao dizer isso deu uma piscadela para a anfitriã, que entendeu a mensagem e atendeu prontamente a seu pedido de socorro.  A dona da casa convidou os visitantes à sala de estar e lhes disse que gostaria imensamente de cuidar, pelo menos por uns tempos, de sua madrinha Zita, com quem ela se dava muito bem e de quem adorava ouvir os causos de outrora.
Todos aquiesceram de bom grado. Partiram contentes e mais leves, sem o fardo de cuidadores da pretensa demente.