domingo, 24 de setembro de 2017

O DIÁLOGO DAS FORMAS EM PARIS

Considerando-se como “diálogo das formas” o contraste entre estilos artísticos de diferentes épocas dentro de um mesmo espaço, percebe-se que a interferência do moderno em contraposição ao antigo pode dar excelente resultado, ou não.
Há quem diga que a beleza não se encontra na obra de arte, mas na visão de quem a observa. Há obras consideradas lindíssimas por alguns, e sem beleza alguma por outros. O gosto estético é pessoal e intransferível. Há quem aprecie a arte acadêmica e também quem a abomine. Acontece o mesmo com a arte moderna.

Seguem abaixo algumas ponderações de cunho pessoal a respeito de alguns  contrastes arquitetônicos parisienses, (des)agradáveis aos meus olhos.

No centro histórico, muitas vezes, o visitante se surpreende com a brusca mudança do estilo arquitetônico. Por exemplo, ao chegar-se ao famoso museu do Louvre, passando pelo pequeno arco do triunfo de Constantino, perfeitamente integrado à paisagem urbana, depara-se com a Pirâmide de Cristal, que hoje se presta como principal entrada do museu.

Trata-se de um choque visual de rara beleza. Na época de sua construção, houve acirrada polêmica e debates acalorados pela televisão. Grande parte da população era radicalmente contra. Apesar da oposição, o projeto foi em frente. Hoje em dia, mesmo aqueles que eram contra apreciam o monumento. A Pirâmide de Cristal tornou-se a terceira obra mais apreciada do museu do Louvre, depois do quadro da Joconda (Monalisa) e da escultura de Vênus de Milo. Realmente, a falsa leveza (de 95 toneladas) do metal, associada à transparência do cristal, em oposição ao entorno, forma um conjunto lindo de se ver.

A PIRÂMIDE DO LOUVRE
Bem pertinho dali, no pátio interno do Palais Royal (Palácio Real), construído para residência do Cardeal Richelieu, em 1633, há uma interferência modernosa, datada de1986, que não me agrada. As 260 colunas de Büren, listradas em preto e branco, com alturas diferenciadas, não foram uma feliz ideia. Essa interferência paisagística causou também grande polêmica e quase foi destruída por diversas vezes, por ordem da prefeitura e da Secretaria de Cultura, mas conseguiu se manter.  A meu ver, um simples jardim no local daria melhor resultado. Como disse anteriormente, essa é uma opinião estritamente pessoal. Certamente há quem goste dessa interferência nos jardins do palácio.

PALAIS ROYAL                                             COLUNAS DO BUREN                 

A Ópera (ou Palácio) Garnier, em estilo eclético, foi construída por Charles Garnier no século XIX. Na década de 60 do século XX, o pintor Marc Chagall foi convidado a substituir os afrescos existentes no teto dessa Ópera. Sua obra pictórica causou escândalo na época, tendo em vista as cores fortes e o estilo do pintor, em total dissintonia com a suntuosidade do palácio. Nesse caso, faço coro com os que se escandalizaram pela discrepância. Sua obra ficaria muito bem em salas modernas, mas não na Garnier. Não discuto a importância, nem o valor do que foi pintado diretamente por ele no teto do teatro, mas, como já disse, o diálogo das formas entre estilos de diferentes épocas nem sempre é louvável. Esta é, a meu ver, uma tentativa que não deu certo. Veja a magnificência do interior da ópera.

Outra interferência moderna que desagrada a muitos pela quebra do estilo arquitetônico da Cidade Luz, no bairro  mais antigo de Paris, o Marais, foi a construção do Centro Cultural Georges Pompidou, conhecido também como Beaubourg. Trata-se de um complexo arquitetônico extremamente arrojado, do final do século XX. Ele é considerado marco do início da pós-modernidade nas artes.  

É um dos principais exemplos de arquitetura higt tech, de inegável importância devido ao inovador projeto de sustentação e também devido às tubulações aparentes. Esse Centro Cultural, apesar de ser um dos locais mais visitados de Paris, não é esteticamente agradável a meus olhos, pelo fato de ter interferido enormemente na paisagem urbana do Marais. Seu porte é desproporcional ao espaço ocupado; sua aparência não coaduna com as construções antigas do entorno. Minha filha, que é arquiteta, caiu de amores por essa geringonça. A seu ver, o Beaubourg é o mais lindo projeto arquitetônico da cidade.

Bem próximo desse centro cultural, há o atual centro comercial Les Halles, que muito me agrada, ocupando parte do grande espaço do antigo mercado de atacadistas de alimentos frescos. Realmente gosto não se explica.

A Ópera Bastille, com modernas curvas vitrificadas, construída na Praça da Bastilha, nem de longe lembra a antiga prisão da Bastilha, situada antigamente na mesma praça. Porém trata-se de uma bela construção que, apesar de não se adequar ao entorno,  é agradável de se admirar.

Uma paisagem urbana moderníssima, linda e de agradável vivência, é o bairro La Défense,  onde a presença do vidro é preponderante na leveza das construções. Arranha-céus brotam do chão, numa floresta de vidro, em contraste com o peso das construções neoclássicas, predominantes na maior parte da cidade. La Défense é a Paris moderna, de aspecto prático e futurista. Esse bairro, iniciado na década de sessenta do século passado, foi inspirado na arquitetura norte-americana. Há turistas que o amam, outros que o odeiam. 

Alguns deles se negam a visitá-lo, o que é uma pena. É um lugar amplo, belo, agradabilíssimo de percorrer, com belas construções em estruturas metálicas. Trata-se de um audacioso projeto de urbanização, que deu certo, visitado anualmente por mais de oito milhões de turistas. Ali moram vinte mil parisienses e ali trabalham duzentas mil pessoas. O Shopping Le Quatre-Temps, ao lado do Arco, é o maior centro comercial da região parisiense.
O Arco (retangular) da Défense, que se vê na foto, faz contraponto ao famoso Arco do Triunfo, construído por Napoleão na Praça da Estrela.

Esse novo arco faz eixo com os principais pontos turísticos parisienses. Partindo da direção contrária, ou seja, do museu do Louvre, estende-se o Jardin des Tuilleries, até a Place de la Concorde, onde há um antigo obelisco egípcio e onde se pode visitar o museu Orangerie,  em cujas paredes Monet pintou suas famosas ninfeias. Na sequência, entra-se na Avenida Champs Élysées, a mais famosa do mundo, com suas construções magnificentes, jardins e palácios. Do lado esquerdo veem-se o Grand-Palais e o Petit-Palais, dois palácios colossais, onde há eventos culturais, assim como exposições artísticas fixas e temporárias. 

Tal avenida termina na Praça da Estrela, na qual 12 ruas se cruzam formando uma estrela, em cujo centro se encontra o famoso Arco de Triunfo, construído por Napoleão Bonaparte. A partir dessa praça, a mesma avenida muda de nome. Passa a se chamar Av. de La Grande Armée e, que vai dar no novo bairro La Défense, exatamente na praça, em que há a réplica moderna do arco. Nas proximidades, há uma torre de vidro, arredondada, em contraponto à Torre Eiffel. A sequência dessa avenida vai até o aeroporto internacional Charles de Gaulle.

Em Paris, há muitas outras construções modernas, como a sala de concertos inaugurada recentemente, La Seine Musicale, ao lado do rio Sena, num bairro afastado, chamado Boulogne-Billancourt, ou como a Philharmonie de Paris, a maior de todas as salas de concertos da cidade, situada no Parque de la Vilette. Tais construções, de grande impacto arquitetônico,  estão fora do Centro Histórico e se integram ao entorno.

Na Cidade Luz, uma das mais cosmopolitas do mundo, o “diálogo das formas” pode impactar positivamente ou negativamente os visitantes, (des)agradando simultaneamente milhões de turistas que ali circulam, sem cessar. A diversidade de nacionalidades, de etnias e de credos pode ser pacífica, ou não, assim como a diversidade estética.

Jô Drumond




Josina Nunes Drumond

Pós doutora em Literatura Comparada, pela UFMG,Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP e Mestre em Estudos Literários, pela UFES. É Pós-graduada (latu sensu) em Arte e Cultura Barroca pela Universidade Federal de Ouro Preto e em Literatura de Língua Portuguesa, pela UFES. Tem três graduações: Letras pela UFMG, Lingua, Literatura e Civilização Francesas, pela Université de Nancy (França) e Artes Plásticas pela UFES.

Autora de vários livros, Jô Drumond tem artigos, contos, crônicas, poemas e ensaios publicados em antologias, jornais, revistas de pós graduação, anais de congressos e na internet.


É tradutora juramentada do Estado do Espírito Santo. Membro da diretoria da Academia ES de Letras e da Academia Feminina de Letras do ES. É membro também do Instituto Histórico e Geográfico do espírito Santo, da Academia Feminina Mineira de Letras, do Conselho Estadual de Cultura e do Comitê da Aliança Francesa de Vitória.

GRILHÕES


Próximo à cidade de Castelo (ES), tive a oportunidade de conhecer a antiga Fazenda Centro, construída por mão de obra escrava, em 1854, cuja senzala abrigava cerca de 600 escravos. O belíssimo casarão, em estilo colonial, com mais de mil metros quadrados, foi tombado pelo Patrimônio Histórico do ES. Além de ter sido uma fazenda muito produtiva e um grande marco para o desenvolvimento econômico da região, foi também palco de manifestações históricas e culturais, transformando-se mais tarde em seminário, e, depois, em noviciado.

Além da indiscutível beleza e imponência do imóvel, o que me atraiu a atenção foram as histórias que o envolvem desde sua construção, e que incitam a imaginação do visitante. Ao percorrer os cômodos dos dois andares, eu imaginava quantas pessoas ali tinham nascido, vivido, amado, sofrido, trabalhado e morrido. Quanta gente havia se debruçado naquelas 79 janelas para respirar o ar puro, para apreciar a paisagem, para vigiar os escravos ou para averiguar ao longe, na estrada de chão batido, se algum convidado se aproximava.

Segundo consta, o primeiro proprietário, latifundiário e escravocrata, diferentemente dos demais de sua categoria, apreciava as artes, em geral.  Destarte, teve uma iniciativa benfazeja. Criou, para seu bel-prazer e para o entretenimento dos visitantes e de todos que ali viviam, um grupo de teatro e uma banda de música, ambos compostos por escravos. Os integrantes da “troupe” e da banda se sentiam importantes pela participação e adquiriam novos aprendizados referentes à sua atuação.

Os demais escravos se vangloriavam de viver na única fazenda da região a possuir tais privilégios. Os visitantes, surpresos e encantados pela performance dos atores e músicos, se esmeravam em sentenças elogiosas. O anfitrião não cabia em si de contente pelo reconhecimento. Muitas festas eram ali organizadas, com o intuito de divulgar a inovação e a grandiosidade desse senhor de escravos que amava e difundia as artes. Poder ele já tinha de sobra.

O que almejava era a glória. Via nas festas um modo de alcançá-la. Os que por ali passavam poderiam divulgar seu grande feito Brasil afora. Ele se sentia mais liberal que os demais escravocratas; os escravos, por sua vez, sentiam menos o peso dos +grilhões. Tal inovação amenizava, de certa forma, o aspecto sombrio da escravidão: restrição da liberdade de ir e vir, desconforto das senzalas, trabalho não remunerado, má alimentação, submissão total aos patrões, punições, torturas, enfim, as péssimas condições de vida.

Considerando as devidas proporções, pode-se fazer um paralelo entre os grilhões da Fazenda Centro e os do Palácio de Versalhes. Ambos os locais serviram de cenário para o grande espetáculo da vida, mas de uma vida cativa, à mercê de dois diferentes tiranos.

Na corte mais cobiçada de todos os tempos, a de Luís XIV (França – século XVII), vivia-se com grande luxo e ostentação. O Palácio de Versalhes era invejado e copiado por outros reinos, devido à sua beleza e magnificência. No entanto esse Palácio nada mais era que uma imperceptível prisão dourada. O Rei Sol fazia questão de manter toda a aristocracia girando a sua volta. Atraiu da província para a corte os grandes e poderosos, com as respectivas famílias, e os manteve sob sua mira, numa vida festiva e luxuosa. Para o entretenimento dessa gente, investiu no mecenato artístico, atraindo para a corte os melhores e mais variados artistas, assim como grandiosos espetáculos de teatro, de dança e de música. Seu falso objetivo de entreter escondia outro menos nobre: o de reduzir o poder dessa classe e de torná-la incapaz de uma nova revolta de aristocratas, como a Fronde,  ocorrida anteriormente (1648/1653), que acarretou muitos dissabores.

Em Versalhes, era impossível sentir-se preso nos artísticos jardins a perder de vista, projetados pelo famoso arquiteto Le Nôtre, nas imensas galerias barrocas decoradas a ouro, nos maravilhosos bailes na Galeria dos Espelhos, nem nos gastronômicos banquetes regados com os melhores vinhos do reino. No entanto, para manter a soberania, o intuito absolutista do rei era justamente o de amordaçar invisivelmente seus súditos pelos sentidos (paladar, audição e visão), pelo luxo, requinte e magnificência das festas e eventos culturais.

Em todo tempo e lugar, em todas as comunidades, há grilhões sociais com grande poder de cerceamento da liberdade, alguns deles quase imperceptíveis: religião, família, casamento, trabalho, escola, hierarquias… Às vezes eles são camuflados. Por exemplo, a união matrimonial, por mais feliz que seja, carrega seu fardo opressor, sobretudo o da fidelidade. Atualmente, há escravos até mesmo das novas tecnologias. Há quem não consiga mais viver sem smartphone, sem internet, sem redes sociais… Desejamos todos que a “Liberdade abra a asas sobre nós”, mas, na realidade, estamos inexoravelmente presos às teias sociais.

Jô Drumond

FESTA DA MÚSICA


Em Paris há um grupo amigos de longa data, que passam as férias de verão sempre juntos, em Saint Tropez. No dia em que chegamos àquela cidade, acompanhados por um casal de amigos parisienses, fomos apresentados a esse grupo, na casa de veraneio um deles. Num varandão que dava para o mar, uma grande roda se formou em torno de uma mesa, para bebericar e jogar conversa fora.  Num dado momento, alguém sugeriu que cada um cantasse ou declamasse algo. Quando chegou minha vez, eu disse que iria cantar o refrão de uma longa canção infantil, que eu havia aprendido quando criança, mas da qual me lembrava apenas algumas estrofes. Comecei então:

Il  était un petit navire

Il était un petit navire

Qui n’avait ja ja jamais navigué

Qui n’avait ja ja jamais navigué

Ohé, ohé !

Ohé ! Matelot !

Num piscar de olhos, todos resgataram, do fundo da memória, essa canção que haviam aprendido também na infância, e cantaram entusiasmados, a plenos pulmões, as dezesseis estrofes. Foi uma espécie de congraçamento muito emocionante! Um deles, comovido, chegou a me agradecer por ter-lhe trazido de volta os bons “tempos que não voltam mais”.

Saint Tropez é cidade de gente grã-fina. No cais ficam ancorados os maiores e mais chiques iates dos magnatas europeus. A diária, dependendo das dimensões da embarcação, custa alguns milhares de euros, ou seja, mais do que a diária de qualquer hotel cinco estrelas. É um universo muito distante do nosso.

Por coincidência, chegamos a essa cidade às vésperas da tradicional Festa da Música. Tal tradição, começada em Toulouse (França), em 1976, acontece anualmente em uma centena de países, no dia 21 de junho, no qual se comemora o solstício de verão do hemisfério norte, quando a duração do dia é a mais longa do ano.

Tivemos a oportunidade de presenciar in loco a movimentação que a festa acarreta. Estávamos de férias em Saint Tropez, como foi dito, com um casal que havia sido convidado para comemorar o Dia da Música, em grande estilo, numa mansão próxima à cidade, incrustada na vertente de uma mata virgem. Pelo fato de sermos amigos dos amigos dos anfitriões, meu marido e eu acabamos sendo convidados para a noitada gastronômica regada a bons vinhos e embalada por boa música.

Durante a festa, à medida que íamos sendo apresentados, muitos se aproximavam para fazerem perguntas sobre o Brasil. Únicos estrangeiros no local, tornamo-nos foco de curiosidade, como se fôssemos espécie exótica da terra do samba, do sol e do futebol. Lá pelas tantas, quando o teor etílico no sangue estava mais alto que os decibéis musicais, conversa vai, conversa vem, acabaram nos perguntando se podíamos fazer uma demonstração de samba.

Sabendo que estaria na França no dia da Festa da Música, eu havia colocado na bagagem, por precaução, CDs com ritmos de nossa terra. Com a alegria e animação características de nosso “patropi”, prontificamo-nos a lhes mostrar o que havíamos aprendido em anos de academias de dança. Fomos vivamente aplaudidos. Ao notar o interesse geral, perguntei se gostariam de aprender o passo básico de samba no pé. Todos se interessaram. Fizeram então uma grande roda em torno de nós dois. 

Começamos lentamente o passo contando 1,2,3, que aos poucos ia se agilizando para alcançar o ritmo do samba. Antes de atingir o gingado, eles perdiam totalmente o ritmo. Recomeçamos lentamente por diversas vezes, em vão. Percebi a inutilidade do esforço. Eu me dei conta de que eles jamais conseguiriam conciliar o passo ao molejo do corpo, em poucos minutos. O passo básico, apesar de aparentemente simples e fácil, corresponde a uma difícil harmonia de movimento dos pés, dos braços e do quadril, sem perder a cadência.

Sugeri então, mostrar-lhes como se dança outro ritmo nosso, o forró, desconhecido por todos. Logo após a apresentação do forró, coloquei um CD de swing, com músicas internacionais, e convidei a todos para a pista de dança. Foi uma soirée inesquecível, na qual demos, prazerosamente, nossa efetiva contribuição para animar a festa, fazendo de certa forma a contrapartida ao gentil convite dos anfitriões.

Sob o slogan “Faites de la musique” (faça música), que tem exatamente a mesma pronúncia de “Fête de la musique” (festa da música), tal festividade encoraja músicos amadores e veteranos a se apresentar voluntariamente, o que permite à população o acesso a diversos tipos de música. Trata-se de um evento eminentemente popular. Um em cada dez franceses dá sua contribuição, tocando ou cantando. 

Nesse dia, em todo o país, muitas ruas são fechadas para a instalação de palcos. As apresentações musicais, todas gratuitas, acontecem por toda parte: logradouros, praças, bares, estádios de esporte e outros espaços. As grandes salas de concertos abrem suas portas gratuitamente. O Ministério da Cultura da França organiza para esse dia cerca de dezoito mil concertos em todo o território. Milhões de espectadores são brindados por milhares de músicos e cantores profissionais e amadores em todos os cantos do hexágono francês.


Jô Drumond

IRMÃS CARMELITAS

 Certo dia, telefonaram-me solicitando o trabalho como professora   num convento da Ordem das Carmelitas, “as servas dos pobres”. Eu deveria ensinar a língua francesa a duas irmãs que iriam para o Mosteiro de Nossa Senhora do Monte Carmelo, fundado no século XI, em Israel, no qual se usa esse idioma para as orações. 

Fiquei curiosa. Eu nunca havia visto uma carmelita, pelo fato de viverem enclausuradas.
Eu teria que me deslocar todos os dias até o convento, e enfrentar o trânsito do centro da cidade, num percurso que duraria, no mínimo, uma hora de ida e outra de volta. Tive que recusar o convite, devido a outros compromissos assumidos anteriormente.

 Dias depois, recebi outro telefonema. Como o tempo urgia, o convento decidira abrir uma exceção. Elas poderiam se deslocar até minha casa, para o aprendizado. Um dos voluntários, que ajudavam a ordem, havia se oferecido para levá-las de carro. Esperaria estacionado à porta, e as levaria de volta, sãs e salvas.
A mais jovem era alegre, sorridente e brincalhona. A outra, séria e compenetrada. Duas personalidades totalmente opostas. Com o tempo, percebi que a convivência entre elas não era de todo pacífica. Frequentemente, a mais idosa policiava e repreendia, com o olhar, as atitudes espontâneas da mais jovem.

Ambas usavam o tradicional e incômodo hábito escuro, mantendo apenas o rosto à vista, vestimenta imprópria para  aquele verão escaldante. Num dia de altas temperaturas, eu usava uma blusa branca em tecido fino, transparente, sobre uma camiseta de alças. Encalorada, pedi licença, tirei a blusa em plena aula e lhes disse que ficassem à vontade para se livrar de tantos panos. Não sei se eu disse alguma besteira. O fato é que elas riram descontraidamente. A mais jovem disse: Ah! Como você é engraçada! Quando eu contar isso para as outras irmãs elas nem vão acreditar!

Ficamos amigas, na medida do possível. Nossos encontros linguísticos eram muito prazerosos. Elas estavam ansiosas para aprender falar e rezar em francês. Elas diziam que eu era um anjo caído do céu, para lhes ensinar a língua que usariam no convento, em Jerusalém.

Aos poucos, a notícia se espalhou pela vizinhança. Nos horários de aula, minha casa parecia ponto turístico. Discretamente, todos queriam ver, mesmo de longe, por instantes, as duas “desenclausuradas”. Os curiosos se mantinham discretos, para não assustá-las. Alguns fingiam estar varrendo a calçada, outros passeando com o cachorro ou lavando o carro. Havia também aqueles que se disfarçavam dentro dos carros, de modo que elas não se sentissem foco das miradas.  

Certo dia elas me disseram que as pessoas, em geral, são extremamente bondosas, gentis e generosas. Prova disso é que no convento, elas vivem da caridade alheia, sem necessidade alguma de pedir algo a quem quer que seja. O padeiro fornece-lhes gratuitamente o “pão de cada dia”; o açougueiro faz-lhes a estocagem semanal de carnes; os feirantes são pródigos em frutas e legumes; o merceeiro também fornece sua cota semanal. Assim sendo, nada lhes falta. Perguntei-lhes se o motorista as conduzia também gratuitamente, até minha casa.  − Claro que sim, disse a mais jovem. Ele é um amor de pessoa! Está com a mãe muito doente e pede sempre que oremos por ela. 

Num piscar de olhos matei a charada de tanta generosidade. Tanto o padeiro, quanto o açougueiro, o verdureiro, o merceeiro e os demais que atendem às necessidades básicas do convento são recompensados por orações. Há uma crença de que a oração de uma Carmelita vale mais que a do cidadão comum, pelo falo de ela estar quase sem contato com o mundo, em estado de graça e, por conseguinte, mais perto do céu. É como se tivesse linha direta com o Criador. Seus pedidos são mais facilmente acatados pela divindade. Essa intermediação é o preço pago por elas aos generosos voluntários, todos eles com graves problemas na família, a serem resolvidos, sobretudo de saúde.

Delicadamente, fiz–lhes ver, com muita cautela, para não decepcioná-las, que o mundo e o ser humano não são tão bons, nem tão generosos quanto parecem. O que se faz em prol do convento é uma simples permuta: provisões em troca de orações.

JÔ Drumond


FESTAS JOANINAS OU JUNINAS?



Quando criança, algo me intrigava nas festas juninas. Por que razão tínhamos que usar indumentária de verão, se a festa acontecia em pleno inverno, ao ar livre? Vestidinho de chita, manguinhas curtas, sem nenhuma proteção nas pernas… que judiação! Deixava de ser prazeroso. “Ir a uma festa junina”, naquela época, em Patos de Minas, era sinônimo “tiritar de frio”.

A resposta é simples. Os vestidos, geralmente, são de chita, por ser um dos tecidos mais baratos, usados por camponeses. O modelito típico feminino de mangas curtas e saia rodada é originário de uma festa campesina, no hemisfério norte, para comemorar o solstício de verão, ou seja, o dia mais longo do ano, que, contrariamente, em nosso hemisfério, coincide com o solstício de inverno.

Outra coisa carecia de explicação para minha cabecinha infantil. Se a festa era em homenagem a São João deveria ser “joanina” e não “junina”. O que eu não sabia, e que muita gente talvez não saiba, é que tal evento com dança, música, folguedos e foguetório, em tempos idos, era uma espécie de culto ao Sol, em agradecimento às boas colheitas. Mais tarde, o cristianismo transformou a festa pagã, que já acontecia nessa data, em festa religiosa, aproveitando o ensejo da data natalícia de São João. O termo original “joanina” foi posteriormente substituído por outro mais abrangente, “junina”, para abarcar outros santos cujas festividades acontecem no mês de junho (São Pedro e Santo Antônio). Como muitas vezes, no Brasil, as festividades se estendem pelo mês de julho, eventualmente ouve-se até mesmo “festa julina”. A flexibilidade linguística nos permite tais adaptações.

Em cada região brasileira, essas festividades têm nuances diferentes, no que se refere aos quitutes, aos aperitivos e à música. Apesar da diversidade, há elementos tradicionais em todas elas: balões, fogos de artifício, mastro enfeitado, fogueira, casamento caipira, entre outros.

Os balões, hoje proibidos no Brasil devido ao risco de incêndio, sobem aos céus para anunciar o início das festividades. A explosão dos fogos de artifício, segundo a tradição, é para acordar São João. O mastro atual, com três bandeirolas na extremidade superior, é uma homenagem aos três santos. A fogueira, símbolo de proteção contra maus espíritos, nocivos à colheita, faz parte das comemorações, desde a Idade Média. O casamento caipira é uma sátira aos casamentos tradicionais.

Outra coisa que me intrigava, na infância, era a marcação da coreografia, feita parcialmente em uma língua incompreensível para mim. O comando mais frequente, “balancê”, era repetido ao término de cada passo. Quando havia outro comando específico para os cavalheiros, as damas permaneciam no passo do balanço. Por que “balancê” em vez de “balançar”? Havia outros comandos ainda mais complicados: “anavan” (en avant = para frente); anarriê (en arrière = para trás); tur (tour = dar a volta); returnê (retournez = retornar); “vizavi” (vis-à-vis = face a face, um diante do outro).

No Brasil, a quadrilha se tornou uma tradição, nas festas de junho. Praticamente nos quatro cantos do país, ela acontece em clubes, praças e escolas (desde as creches até as universidades). O interessante é que, na França, onde se fixou tal tradição, ela inexiste nos dias de hoje. O divertimento popular ao ar livre, herdado por nós, acabou descambando para o can-can. Salvo engano, a única quadrilha popular que resta em terras gaulesas, é numa possessão francesa, a ilha da Córsega.

Surgida na Europa, na Idade Média, a quadrilha, originariamente uma dança campesina, caiu nas graças da nobreza e foi prontamente adotada pela França, tornando-se usual nos grandes palácios, por volta dos séculos XIII e XIV. De lá, expandiu-se para as demais cortes europeias. Foi trazida para o Brasil no século XIX, onde se mesclou a outras tradições culturais. Diferentemente da dança que conhecemos hoje, a quadrilha francesa era uma dança elegante, com diversas modalidades específicas para cada tipo de evento: quadrilha do príncipe imperial, quadrilha de variedades francesas, quadrilha das abelhas, quadrilha dos Incas, quadrilha russa ou americana, e assim por diante. Na França, genericamente, o termo masculino “le quadrille” designa uma dança comum nos grandes salões da aristocracia, durante o Segundo Império ou Restauração. Tratava-se de uma coreografia com um determinado número de participantes, a título de entreato, durante os bailes. Tal dança se caracterizava pela “elegância das vestimentas, harmonia das cores e perfeição do conjunto.”



Jô Drumond

CIDADE INSÓLITA


A concepção de cemitério como cidade de repouso eterno, como se vê nas fotos, é bem mais humanizada e menos dolorosa para aqueles que cultuam os entes queridos que já se foram. Doi muito o fato de imaginar que uma pessoa amada se encontra sob sete palmos de terra, carcomida por vermes. Nessa cidade insólita, tem-se a ilusão de que cada família possui um domicílio fixo na eternidade, o que é menos traumático. Ali não se enterra, após o velório. O pranteado vai se juntar aos seus, numa nova morada, que, apesar de exígua, tem espaço suficiente para manter a família unida. Cada gaveta dos mausoléus corresponde a um quarto da pequena casa (ou capela) onde os antepassados dormem placidamente, aguardando os demais que um dia virão se juntar a eles.

O “Cimetière Marin de Saint François” (Cemitério Marinho de São Francisco), como é chamado, é um dos pontos turísticos da cidade de Bonifácio, no sul da Córsega, visitado anualmente por meio milhão de turistas. Fica no topo de uma falésia, com vista para o mar, voltado para o poente. É um dos mais belos cemitérios do Mediterrâneo. Não se trata de um local triste; parece uma pequena cidade, com ruas e praças bem cuidadas.

Se a morte fosse aceita com naturalidade, não se sofreria com a perda de alguém. Essa é uma questão mal resolvida em quase todas as religiões, e também por quem que não professa religião alguma. Pode haver resignação, mas falta aceitação.

Tive um professor de filosofia que me deu uma explicação plausível. Segundo ele, o “homo sapiens” (com cérebro bem desenvolvido) é simplesmente uma aberração da natureza, pois, tendo as mesmas limitações dos animais irracionais, não deveria ter cognição. É isso que o faz sofrer. Os demais animais vivem por viver, sem reflexões ou filosofices. O ser humano é mais complexo. Tem consciência da efemeridade da vida, da inexorabilidade da morte, do sentido ou da falta do sentido de tudo.

A viagem sem volta à qual estamos todos fadados, rumo à grande incógnita, não tem ponto final; apenas de interrogação.

Jô Drumond