quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

SIMBOLOGIA DO NATAL E IMPRECISÕES HISTÓRICAS

* Jô Drumond

O ser humano não é apenas um animal racional. Ele é, antes de tudo, um animal simbólico. Segundo o filósofo Ernst Cassirer, “o homem vive num universo simbólico constituído por uma rede de diversos fios que se tecem de maneira inextricável, como a linguagem, o mito, a arte e a religião. O homem não pode encarar a realidade de um modo imediato, não pode conhecê-la diretamente sem a intervenção deste universo simbólico.” Cassirer parte do princípio de que todos os animais possuem um sistema receptor (por meio do qual recebem estímulos externos) e um sistema efetor (por meio do qual reagem aos mesmos). No ser humano, entre esses dois sistemas há um intermediário; o sistema simbólico. Assim sendo, o termo “racional” não é suficiente para abarcar a amplitude da cultura humana. A racionalidade é apenas um dos traços do homo sapiens.
Todos os ritos de passagem são repletos de simbolismo. Os festejos de fim de ano trazem sempre mensagens de confraternização, de solidariedade, de paz, de harmonia, de amor e, sobretudo, de esperança num porvir auspicioso. Essa energia positiva envolve diferentes credos e raças, nos quatro cantos do mundo. A festividade do Natal traz, em seu bojo, uma enorme gama de mensagens positivas para toda a humanidade.
Cercado de mitos e de imprecisões históricas, esse evento ainda suscita controvérsias entre pesquisadores e historiadores. Segundo o grande intelectual Dr. José Augusto de Carvalho, devido a um erro no calendário romano-cristão, Jesus não teria nascido no ano I da era cristã, mas 4 ou 5 anos antes (a Santa Sé confirmou recentemente esse engano do calendário). Ele não teria tampouco nascido no dia 25 de dezembro (data que não consta na Bíblia), mas possivelmente em março, pois registra-se que era do signo de peixes. O estudioso afirma também que o dia 25 de dezembro foi fixado pela Igreja para celebrar o nascimento de Cristo, no ano 525, com o intuito de cristianizar as festas pagãs que se realizavam naquela época entre 22 e 25 de dezembro, em homenagem ao deus solar Mitra. Outra informação interessante é que os Reis Magos não eram reis, nem magos (mágicos). “Mago” era o nome que se dava aos sacerdotes da religião persa tidos por sábios e possuidores de dons divinos. Na verdade, os reis magos correspondem a uma bela metáfora mitológica. Representam simbolicamente as três raças humanas: Gaspar, da raça amarela, representa a Ásia, Melquior, da raça branca, representa a Europa, e Baltazar, da raça negra, representa a África. O 4º continente (Oceania) só foi descoberto bem depois, no século XVI.
As simbologias, as mitologias e as incertezas históricas não abalam o fervor dos fiéis. Eles continuam cultuando seus santos e cultivando seus sonhos, na esperança de melhores dias, no ensejo da troca de calendários. A cada novo ano, cada um segue sua via crucis em busca do “pássaro azul da felicidade”.  A cada ano, os “melhores votos” se renovam per omnia saecula saeculorum.

FELIZ NATAL PARA TODOS

Jô Drumond
Dezembro de 2014

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)

terça-feira, 26 de novembro de 2013

A DOMÉSTICA PETULANTE

Jõ Drumond
Minha amiga Vicentina procurava por uma doméstica para serviços gerais, em sua residência. Publicou um anúncio no jornal e agendou algumas entrevistas. Uma das candidatas foi assaz impertinente. Com ares arrogantes, de “nariz em pé”, antes de saber quais seriam as tarefas diárias foi logo expondo suas exigências:
─ Veja bem minha senhora! Eu só trabalho oito horas por dia, nem meio minuto a mais, com uma hora de repouso para a sesta. Não faço serão, nem mesmo remunerado. Não trabalho aos sábados, domingos, feriados, nem em dias santos. Na manhã de segunda feira, não lavo vasilhas sujas, usadas no final de semana. Não me peça para cuidar de crianças; não é minha praia. Não gosto tampouco de lavar, nem de passar. Isso é serviço extra, para lavanderia. Posso me encarregar da cozinha e da casa, mas preciso de uma faxineira uma vez por semana para a limpeza pesada.
Impressionada com a petulância da candidata, Vicentina aguardou pacientemente o final da explanação, e com seu habitual bom humor lhe perguntou:
─ Minha filha, você sabe tocar piano?
─ Não, não sei!
─ Então você não poderá trabalhar em minha casa. Doméstica, aqui, tem que saber tocar piano.

Desconcertada, sem saber o que dizer, como se diz na roça “com cara de tacho”, a exigente candidata foi logo se dirigindo à porta de saída, sem nem mesmo se despedir.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

POMPA NA PRAÇA DA LIBERDADE

  *Jô Drumond

No dia 31 de março de 2011, ao descer pelo elevador do edifício Niemeyer, para uma caminhada matinal na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, fui surpreendida por estranha movimentação. Viam-se mais soldados, plantados por toda parte, do que árvores. Havia cordões de isolamento, radiopatrulhas, ambulâncias e arranjos florais ladeando um longo tapete vermelho. Para fugir do aparato cerimonial, desci a Avenida João Pinheiro. Na altura do arquivo público, vinte lustrosos cavalos com montarias cobertas de cetim vermelho contendo aplicações em branco, preso às rédeas, aguardavam juntamente com pomposos dragões da Infantaria. Estes exibiam belas indumentárias e penachos na cabeça. Parecia evento festivo, mas tratava-se das exéquias do ex-vice-Presidente da República  José de Alencar, que se despediu do mundo dos vivos com honrarias de Chefe de Estado. Desci até a livraria Horizonte, no térreo do Edifico Solar, antiga residência da atual Presidente de República, Dilma Roussef. No interior da livraria, um cliente, irritado com o caótico trânsito devido ao forte esquema de segurança, começou a vociferar.
─ Vocês viram o caos desta cidade hoje? Pra que tanta segurança se o homenageado já está morto? Vocês acham que ele merecia todo esse aparato? Qual nada! O que fez pelo Brasil? Nada! Foi simplesmente um ex-Presidente que frequentava mais o hospital do que o Palácio do Planalto. Todos dizem que era um homem de valor pelo fato de ser muito “humano”. Todo mundo é humano: meus pais, meus irmãos, eu, vocês..., todos somos humanos, não é verdade? Vocês se lembram da última cerimônia fúnebre ocorrida no Palácio da Liberdade, há quase trinta anos? Pois bem, no dia do enterro de Tancredo Neves, houve um grande tumulto, com um saldo de cerca de trinta mortos pisoteados e muitos feridos.
Percebendo a surpresa geral, visto que nenhum dos presentes se lembrava de tumulto algum divulgado pela mídia da época, ele continuou ainda mais enfático.
─ Vocês não estão acreditando? Eu era tenente da polícia militar, na época, e trabalhei durante o evento. Posso lhes assegurar que até hoje há muitos cadeirantes e mutilados, que se feriram gravemente durante o tumulto daquele dia. Não sei a razão pela qual o fato não veio a público, mas aconteceu diante de meus olhos.
Sandice ou verdade? Na dúvida, dei ouvidos moucos ao discurso do desconhecido, comprei os livros que me interessavam e deixei o exaltado ex-tenente com sua pequena plateia formada pelos clientes da livraria.
De volta ao Edifício Niemeyer, fui barrada por três guardas. Ninguém podia se aproximar do Palácio. Tive que convencê-los de que meu destino era o Edifício ao lado do Palácio, não a cerimônia, que, aliás, não me interessava absolutamente.
Do nono andar, pus-me a observar a turba enxameada que se apinhava nas cercanias e a refletir sobre a razão pela qual tanta gente se dá o trabalho de sair de casa e de se deslocar para um evento desse tipo. Evidentemente não seria pelo falecido nem por sua família, visto não ter com eles nenhum vínculo de amizade nem de familiaridade. Seria compreensível, se se tratasse de algum ator televisivo, cuja presença cotidiana nos lares cria laços de familiaridade; de um compositor de música popular, que tocasse diretamente o coração dos ouvintes, de um grande artista de cinema ou de político com aura de celebridade, mas o homenageado não se encaixava em nenhuma dessas opções. Teria razão o enraivecido cidadão da livraria Horizonte? A dispendiosa pompa fúnebre feita com dinheiro público e o grande transtorno causado no trânsito da capital se justificariam?

  *Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

OROZIMBO, O GUARDIÃO PRESTIMOSO

Por: Jô Drumond
Quando vou a Belo Horizonte, hospedo-me ao lado do Palácio da Liberdade, com direito ao desfrute das sinuosidades arquitetônicas de Niemeyer, no edifício que leva seu nome. Plantado num local privilegiado das alterosas, o edifício de acentuada leveza e rara beleza foi construído pelo famoso arquiteto logo após o complexo arquitetônico da Pampulha. Suas arrojadas linhas modernas contrastam fortemente com o estilo eclético dos antigos edifícios do entorno, que dão ares parisienses à Praça da Liberdade. Imponente, repleto de curvas e contracurvas, belo em todos os ângulos, o edifício não tem fachada definida. Sua presença é constante nos manuais internacionais de arquitetura moderna. As vidraças, de parede inteira, são protegidas por marquises estreitas e próximas umas das outras, de modo a impedir o acesso direto do sol, e a proporcionar claridade e ventilação adequadas a todos os apartamentos.
Foi dentro dessa obra de arte que Tancredo Neves, falecido entre a eleição e a posse à presidência da República, havia plantado seu domicílio. Foi também dentro dessa mesma obra que minha irmã Francisca, minha anfitriã habitual, amarrou seu viver.
Há mais de duas décadas, transferi meu domicílio de Belo Horizonte para Vitória (ES), cidade linda e acolhedora, onde fui muito bem recebida. Desde então continuo frequentando as alterosas para rever parentes e amigos.
Até pouco tempo, sempre que eu me aproximava da entrada do edifício Niemeyer, um porteiro ancião, arqueado pelo peso da idade, tão logo me avistava pela porta envidraçada, levantava-se com solicitude, ajudava-me a carregar a bagagem e fazia questão absoluta de abrir a porta do elevador e de apertar o botão do andar ao qual eu me dirigia. Alegre e prestativo, mantinha um dedinho de prosa com todos os que chegavam ou saiam. Nunca me esquecerei de seu nome, nada usual: Orozimbo. Perguntei-lhe um dia por que não se aposentava. Disse-me que já era aposentado havia tempos, mas que só pararia de trabalhar depois de morto. O vai e vem da portaria era sua energia vital. Não abria mão daquele posto para ninguém, a não ser que fosse demitido. Esse risco não existia.  Todos os moradores tinham por ele grande apreço e afeição. Além da indubitável competência e solicitude no trabalho, ocupava o posto de guardião da entrada, desde a inauguração do prédio, em meados do século XX. Era como se ele fizesse parte integrante do patrimônio do edifício Niemeyer.
Responsável por numerosa prole, trabalhava inicialmente doze horas por dia, das seis da noite às seis da manhã, a fim de avolumar o vencimento, no final do mês. Depois de idoso, passou a trabalhar no turno da tarde, das 14h00 às 22h00. Sacolejava num lotação por cerca de sessenta minutos em direção ao bairro Palmares.
Certo dia, chegando a minha hospedagem habitual, um novo porteiro me recebeu. Não abriu a porta do elevador, não apertou o botão, nem se ofereceu para aliviar o peso da bagagem. Aliás, nem se deu o trabalho de se levantar. Apenas apertou um botão, diante de si, para meu acesso ao hall de entrada. Tomei o elevador, apreensiva pelo mau presságio. O que teria acontecido com o Sr. Orozimbo?
Lamentavelmente, aconteceu o inevitável. Fiquei pesarosa como se tivesse perdido alguém da família. Dei-me conta de que não sabia quase nada sobre ele. Lastimei a perda, assim como o fato de não lhe ter dado a devida atenção. A má notícia suscitou questionamentos existenciais e revisão de valores. Para que tanta correria?  Para chegar aonde? Mais cedo ou mais tarde, os ponteiros de cada um param no quadrante da existência, sem delongas. Consternada, e com a consciência um tanto pesada pela omissão, quis saber mais sobre aquela figura que, de certa forma, fez parte de minha história de vida. Obtive seu número de telefone e disquei. Uma voz feminina respondeu. Identifiquei-me, indaguei a respeito de seu passamento... conversa vai, conversa vem, acabei me inteirando de seus passatempos favoritos e das minúcias do cotidiano. Adorava ser chamado de vovô por todas as crianças do bairro. Plantava cana para ter a satisfação de distribuí-la à criançada da rua. Aproveitava caixas de fósforos vazias para fazer carrinhos, e usava palhas de milho para fazer bonequinhas. Não aprendeu a ler, mas fez questão de que seus sete filhos frequentassem a escola. Estes, em idade escolar, usavam tamancos e pastas de madeira, feitos artesanalmente pelas hábeis mãos de Orozimbo (medida de economia, considerando-se o parco salário de porteiro). Depois de velho, ocupava seus momentos ociosos fazendo móveis em miniatura para as crianças, assim como peneiras e balaios de bambu para os adultos.
A casa onde sua família ainda reside foi erguida em adobe, por suas próprias mãos, aos domingos, únicos dias de folga. Sempre gostou de cultivar o pomar e a horta, de tocar violão e de aquietar o espírito tragando um cheiroso pito de palha. Não era religioso. Fez do trabalho sua oração. Segundo sua filha, ele se pôs a chorar, tão logo foi informado, pouco antes de morrer, aos oitenta anos, que não tinha condições físicas de continuar trabalhando. Corroído pelo câncer, teve que abandonar a carcaça e partir para outra dimensão. Deve estar hoje lá no alto, fazendo brinquedinhos para legiões de querubins.
Pessoas simples, como Sr. Orozimbo, às vezes tecem uma rica história de vida, que pode passar despercebida pelos que o cercam, todos muito apressados, correndo inutilmente atrás dos ponteiros dos relógios.

 *Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)

domingo, 3 de novembro de 2013

O CAMINHO SE FAZ AO CAMINHAR

Por: Jô Drummond

(Texto feito no dia de finados, em homenagem aos vivos)

(Texto inspirado na imagem de Luiz Clementino,
publicada no livro de fotos Pelos Sertões, pg.132)
Parado no meio da estrada e da vida, sem alegria nem tristeza, o matuto cinquentão não sabe se vai ou se fica. Já percorreu muito chão e ainda há a percorrer. Chapéu e pito de palha, olhar perdido a vaguear na lerdeza do tempo, põe-se a matutar. Qualquer lugar é bom pra morrer, mas desde que se chega ao mundo há um tempo a percorrer, sem astúcia de atalhos. Voltar já não pode; o passado já passou. Ficar não lhe apraz; não há o que fazer. Só lhe resta seguir adiante, mas seguir para onde? A estrada não leva a parte alguma. Da vida que leva, só levará os andrajos para ocultar a carcaça. Dessarte, o melhor é seguir em frente, caminhar, caminhar e caminhar... até aonde a vista não alcança; o importante não é chegar; é prosseguir a andança sem desassossego; é vaguear pelas vírgulas da estrada sem parar nos pontos de interrogação e sem cisma de ponto final;

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O SEMINARISTA APAIXONADO

Um seminarista foi passar férias com seus familiares, em Floriano, no interior do Piauí. Ao Folhear um álbum de família, encantou-se com a foto de uma adolescente lindíssima. Disseram-lhe que se tratava da rainha dos estudantes, moça prendada e recatada, afilhada de seus pais.
*Jô Drumond

Desde então, aquela imagem não lhe saía do pensamento. Entrava ano, saía ano, em todas as férias escolares ele ia a Floriano, pegava o álbum e contemplava aquele protótipo da beleza feminina. A quase obsessão pela retratada pôs em cheque sua vocação sacerdotal. Mesmo sem conhecê-la pessoalmente, passou a se inteirar de sua vida. Soube que ela havia ido estudar em Teresina. 

Na capital, certamente estaria rodeada de admiradores. Começou a sentir ciúmes e a encarar o seminário como empecilho. Já não tinha mais certeza da vocação pelo sacerdócio. Passou a amadurecer a ideia de timonear sua própria vida. Nas férias seguintes, soube que ela havia prestado vestibular no Rio de janeiro. 

Aquela notícia ribombou como petardo em seus ouvidos. Rio era por demais distante! Sentia-se prestes a perder para sempre aquela que, a seu ver, era sua predestinada. Abandonou o seminário e voltou a Floriano para comunicar sua decisão à família. Afanou a foto da moça bonita do álbum e seguiu para o Rio, com o intuito de conhecê-la ao vivo e em cores. Num ensolarado domingo, ele aterrissou na casa de tio Jeremias, irmão de seu pai, onde ela estava provisoriamente hospedada. Alegou que tentaria ganhar a vida no Sudeste e pediu acolhida por uns tempos, até se estabelecer definitivamente. Antes mesmo de se instalar, percorreu os cômodos da casa em vão, na esperança de vê-la. Não ousou perguntar nada aos tios. Talvez ela tivesse se mudado, ou voltado para o Piauí. O melhor seria aguardar até que o assunto viesse à baila. Na manhã seguinte, estava ele tomando seu desjejum, quando ela surgiu linda, faces rosadas, tez quase translúcida... uma verdadeira fada. 

O sobressalto foi recíproco. Ela se assustou com aquela figura por demais sinistra, saída de alguma revista em quadrinhos ou de algum filme de gângster. Tio Jeremias apressou-se em fazer as apresentações. Ela, com uma pasta na mão, saudou-o apressadamente e dirigiu-se à porta da rua, sem tomar seu desjejum, dizendo-se atrasada. Meio desapontado, ele ficou no aguardo de outra oportunidade. Nos dias subsequentes, percebeu que ela sempre se esquivava, talvez por timidez ─ pensava ele ─ talvez por repulsa. Olhou-se no espelho. Sua aparência não era das mais agradáveis. Barba por fazer, cabelos crescidos, calça boca de sino, certamente já fora de moda, cinturão largo, possivelmente também démodé. Todas as tentativas de aproximação falharam. Ela não demonstrava nenhum interesse por sua pessoa. Ao contrário, evitava-o nitidamente.
Pensou no seminário e na insensatez do que havia feito. Abominou sua ingenuidade e seu nefelibatismo, como diria seu professor de literatura. Sentiu-se fora da realidade circundante. A vida fora do seminário não era bem o que imaginava, mormente em cidade grande.

Observou-se longamente no espelho. Um sujeito mal-ajambrado como ele jamais poderia despertar interesse em quem quer que fosse. Dirigiu-se a uma barbearia e solicitou serviço completo: barba, bigode e cabelo. Ao primeiro encontro após o desbaste capilar, percebeu a surpresa da donzela. Pela primeira vez ela o observou e o olhou nos olhos. Aproveitando o ensejo, ele lhe solicitou ajuda.
─ Em que posso ajudá-lo?
─ Passei longos anos no seminário. Estou completamente desatualizado, deslocado...como se diz, um peixe fora dágua. Desconheço as vestimentas e os calçados da moda, assim como os hábitos da juventude carioca. Você me ajudaria a escolher algumas roupas?
─ Sim, claro que sim! Após um “banho de loja”, posso lhe apresentar alguns amigos. Quando cheguei ao Rio, eu me senti também meio deslocada.
─ Bola dentro, Miguelito! ─ pensou ele ─ o gelo já foi quebrado! O estratagema funcionou.

No dia seguinte, Miguel e Angélica foram a um shopping center. Ele deixou que ela escolhesse todo seu novo guarda-roupa e acessórios: meias, cintos, carteira, calçados, óculos de sol, boné de praia...
A cada dia, maiores afinidades entre ambos, trocas de olhares, sorrisos, passeios à beira-mar, visitas ao Corcovado, ao Pão de Açúcar, ao Gabinete Real Português, à Biblioteca Nacional, aos museus... Angélica acabou se esquecendo de apresentar seus amigos ao novo amigo. Ele, por sua vez, não queria conhecer ninguém. Ao contrário, preferia que ficassem a sós para desfrutar a maciez daquela voz, a doçura daquele sorriso, as flagrâncias emanadas dos longos cabelos... Miguel, totalmente envolvido pelo charme e pela meiguice de Angélica, acabou fazendo com que sua predestinada o seguisse vida afora.

Conheci-os cerca de quarenta anos depois, no desjejum do hotel Rio Parnaíba, em Floriano, no ensejo do aniversário de cem anos de Tia Joaninha, irmã de minha sogra. Ao saber que eu era aprendiz de escritora, Angélica apressou-se em me contar, em poucos minutos, sua história de amor, na esperança de que um dia eu a colocasse no papel. 

Já se passou algum tempo e, evidentemente, devo ter-me esquecido de detalhes importantes, mas aí está o arcabouço do que me foi relatado. Parabéns a ambos pela bela família que constituíram, pelo companheirismo e pela eterna alegria de viver.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)



quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER AO LONGO DOS SÉCULOS

Jô Drumond
Desde priscas eras, em tempos belicosos, os invasores dizimavam os homens, vendiam as crianças e estupravam as mulheres. Estas, muitas vezes, eram distribuídas entre os beligerantes como espólio. Ao longo dos séculos, o costume perdurou como incentivo ao alistamento e como indenização de guerra. Ficava bem menos oneroso aos exércitos permitir que soldados e mercenários estuprassem ilimitadamente e escolhessem as mais belas cativas como escravas sexuais do que pagar-lhes pelo trabalho. Na conquista das Américas, as nativas não ficaram imunes. Apesar da oposição da Igreja, os conquistadores mantiveram essa tradição. Em países muçulmanos, os estupros em massa ainda funcionam como arma para a redução da população inimiga, pois ninguém gostaria de se casar com uma moça violentada.

Percebe-se que o processo civilizatório caminha a passos lerdos, ao longo dos séculos. A submissão das mulheres sempre existiu, sobretudo no Oriente. Culturas falocratas primam por agressões contra o sexo feminino. Na vida familiar, além de ser encarregada dos filhos e das tarefas domésticas, a mulher se presta a “saco de pancadas”, para descarrego das pressões masculinas. Seu corpo muitas vezes é utilizado pelo marido, sem consentimento, para outro tipo de descarrego. Na rua o desrespeito é ainda mais grave. As estatísticas mostram uma altíssima incidência de estupros em países do Oriente, mesmo em tempos de paz. É como se o “bicho-homem” ficasse sempre à espreita de uma fêmea para se lançar sobre seu cangote e dela se servir a seu bel-prazer. Há culturas nas quais a mulher que sofre abuso sexual se torna motivo de desonra para a família, sendo, por conseguinte, expulsa de casa ou morta pela própria família.

E a honra da família do estuprador? Possivelmente permanece incólume, pois o delito recai sempre sobre a “tentação”, provável resquício do mito da maçã, no paraíso de Adão.

Em pleno século XXI, ao abrir a revista Isto é de 17 de julho de 2013 (ano 37 – Nº 2278), o leitor depara com um artigo deveras chocante, intitulado “Estupros como arma de guerra”. Ao abordar as recentes manifestações no Egito, geradas pelo conflito político-religioso que culminou com o golpe militar e a queda de Mursi, a jornalista Ana Paula Padrão focaliza a violência sexual: “No momento em que se forma uma roda de homens em torno de uma mulher, o destino dela está traçado, e nada pode impedir a humilhação e a violência do sexo não consentido”.

Segundo consta, no Cairo, entre 28 de junho e 03 de julho deste ano, 180 mulheres foram atacadas na rua. Cenas chocantes não são mostradas em jornais televisivos, mas em redes sociais, por internautas que registram os fatos em câmeras de telefones celulares. Dados estatísticos impressionantes foram levantados pela jornalista: No Cairo, onde cerca de 80 ou 90% da população é muçulmana, 98% das turistas sofrem algum tipo de abuso sexual; 83% das egípcias relatam já ter passado por algum episódio de violência sexual. Segundo ela, o mais alarmante, é que 62% dos egípcios admitem molestar as mulheres e, ao mesmo tempo, as acusam de se vestir de maneira provocativa, ou seja, sem o véu islâmico. O objetivo do véu é ocultar aquilo que poderia ser considerado sexualmente atraente para os homens (cabelos, orelhas, garganta ou a própria face). O khimar é uma espécie de lenço para a cabeça. O nigab cobre toda a face, deixando uma pequena fresta para os olhos. Alguns entrevistados tiveram a audácia de admitir que participam dos protestos políticos de rua com o intuito de apalpar as mulheres e de tentar violentá-las.

Sabe-se que ainda hoje, em certas culturas na África, na Península Ibérica e em zonas da Ásia, se adota a mutilação genital feminina, que consiste em amputar o clitóris e até mesmo os lábios vaginais, para evitar que algum dia elas possam fruir as benesses de uma relação sexual. O prazer é reservado aos homens. O corpo da mulher é utilizado para a procriação, sempre sob a tutela masculina a quem deve absoluta submissão.

Durante as recentes manifestações públicas no Cairo, houve também agressões em que as vítimas tiveram a genitália cortada a navalhadas. Na opinião de Ana Paula, não se trata de simples abuso sexual, mas da tentativa de abafar a cidadania da mulher, de fazer calar sua voz, de impedir que ela se manifeste.

O jornal capixaba ES Hoje, de 02 de agosto de 2013, traz como manchete de primeira página, em letras garrafais: “Violência sexual é caso de urgência e emergência”. Na página 5, anuncia-se que a Presidente Dilma Rousseff não atendeu às críticas das Igrejas e sancionou, sem nenhum veto, o projeto que estabelece garantias à mulher vítima de violência sexual, incluindo a oferta da pílula de emergência (ou do dia seguinte), para evitar a gravidez em caso de estupro, assim como informação sobre os direitos ao aborto em caso de gravidez. A lei prevê a redução do número de mortes maternas por abortos clandestinos, assim como tratamento psicológico às vítimas.

A meu ver, grupos que labutam a favor dos direitos humanos e da proteção aos mais fracos terão muita luta pela frente, não apenas no Egito. Os jornais diários aqui e mundo afora mostram claramente que a violência dentro e fora do âmbito familiar não se restringe à mulher, mas abarca também crianças e idosos.

A lei do mais forte, uma espécie de atavismo bestial do ser humano, insiste em continuar vigorando. Apesar da revolução industrial, da revolução tecnológica e de todos os avanços nas diversas áreas do conhecimento humano, há quem insista em manter primitivos traços de selvageria que denigrem a raça humana.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)

terça-feira, 17 de setembro de 2013

MARIA JOÃO

“Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade.”
Carlos Drummond de Andrade

Jô Drumond
Nas terras da fazenda Morro Feio, juntamente com Anatildes, percorri de carro alguns quilômetros, num milharal a sumir de vista, à procura de espigas granadas para o almoço. Plantios feitos em diferentes épocas vicejavam na irregular magnitude da lavoura. Em cada eito, o milharal tinha diferente porte. Procurávamos espigas com cabelos escuros e ressecados. As louras e ruivas, de cabelos brilhantes e sedosos, ainda eram muito tenras para o consumo. Num determinado ponto, quebrava-se a homogeneidade do cultivo, por uma sucessão de estacas, como se vê nos tomatais. Aproximamo-nos para verificar do que se tratava. Era um extenso pepinal, cujas ramas verdolengas, estacadas, exibiam belas flores amarelas e pepinos de dimensões variadas.
Avistamos um camponês, encarregado do eito. Paramos o carro e nos aproximamos, para perguntar onde encontraríamos espigas de milho ao ponto. O ancião, de cerca de 70 ou 80 anos, com a pele toda enrugada e tostada pelo sol, usava roupas largas e sujas de terra, botina marrom e chapéu de abas. Veio todo solícito, pronto para um dedo de prosa, como bom mineiro. Um sorriso contido estampava-se em seu rosto, na tentativa de demonstrar contentamento sem revelar as falhas dentárias.  Era um senhor magro e de baixa estatura, com voz esganiçada. Ao ouvi-lo, pensei que se tratasse de uma mulher, mas reparei que, sob a camiseta, não se viam proeminências de seios femininos. Fiquei em dúvida se o chamava de senhor ou senhora. Na dúvida, preferi evitar qualquer constrangimento, mas Anatildes foi logo perguntando:
─ Como o senhor se chama?
─ Maria, mas aqui na lavoura sou João.
Era patente que a aparência franzina não condizia com o necessário vigor para o pesado trabalho de capina. Aquela mulher aparentava ser minha avó, mas era mais jovem que eu. Percebendo minha surpresa, ao saber sua idade, alegou:
─ Tá me achando véia, né? É por causa do cigarro e das pingaiadas.
  Demorei alguns segundos para entender que “pingaiada” se referia a excesso de pinga. Tive pena daquele fiapo de gente, pela condição sub-humana de vida: trabalho árduo, má remuneração, alcoolismo, subnutrição e, certamente, más acomodações. No entanto, uma coisa me intrigou. Dona Maria (ou Seu João) parecia-me alegre, feliz e de bem com a vida.

Lembrei-me de outra Maria, minha ex-colega de faculdade. Oriunda de uma família de alto poder aquisitivo, podia se dar o luxo de ter tudo que quisesse, mas encontrava-se sempre depressiva. Nos finais de semana, às vezes dirigia-se a praias mais populares ou vagava por bairros periféricos, para tentar descobrir como e por que os pobres eram felizes. Parava em botecos sujos e mal frequentados, escolhia uma mesa próxima a um grupo que ria a não mais poder, por qualquer motivo fútil. Observava-os longamente, na esperança de aprender a ser feliz, sem atentar para o fato de que a felicidade depende mais do que se tem na cabeça do que no bolso. Não sei se minha ex-colega conseguiu encontrar a alegria de viver. Quem sabe, algum dia, eu possa apresentar Maria alegre à Maria triste? Talvez, com alguns dedos de prosa, “esta” consiga descobrir “naquela” a magia do bem-viver.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O CANTO DA SERIEMA

* Jô Drumond

Nas décadas finais do segundo milênio, nas férias e feriados, eu frequentava Guimarânia (terra dos Guimarães), local escolhido por meus pais para viver seus últimos anos e para curtir a paz eterna. Trata-se de uma pacata cidadezinha interiorana, incrustrada na cratera de um vulcão há muito extinto, no Alto Paranaíba (MG). Até os dias atuais, de qualquer ponto da cidade, avista-se a vegetação que delimita o início e o fim de cada rua. O que sempre me atraia nessa cidade era a segurança de ir e vir, diferentemente dos grandes centros urbanos. Minha mãe jamais trancava a porta de entrada. Alegava que, se alguém da família passasse pela cidade, poderia entrar e dormir, sem acordar os demais. Devido à facilidade de acesso, sua casa era pouso frequente de jovens (netos, sobrinhos, primos, amigos) vindos de grandes noitadas das diversas cidades da região: Coromandel, Abadia dos Dourados, Carmo do Paranaíba, Patrocínio, Lagoa Formosa, Patos de Minas, entre outras. Alguns deles preferiam pernoitar em Guimarânia e saborear, ao amanhecer, o delicioso pão de queijo quentinho, de Dona Tunica, acompanhado de forte café antirressaca. A cada final de semana ela tinha novas surpresas. Ao se levantar, às vezes encontrava todos os quartos ocupados, assim como sofás e tudo que pudesse se oferecer como leito aos jovens passantes vindos de bailes, de festas de casamento ou de aniversário. A janela do quarto do casal, que dava para a rua, vivia escancarada, mesmo nas frias noites de inverno. Ela alegava gostar de casa arejada. Não havia grades, nem muro. Bastava subir num friso constante na parede externa e se firmar no parapeito para  ver o interior da alcova. No entanto isso jamais acontecia. Tampouco nenhum estranho jamais entrara sem ser convidado. Nunca nada foi roubado, nem sequer uma flor. Minhas filhas, quando crianças, oriundas da capital, se regozijavam com a liberdade de brincar na rua sem a vigilância dos adultos.
Nos dias de hoje, a cidade continua a mesma em termos arquitetônicos. Para os forasteiros, aparentemente nada mudou, mas, para os habitantes, a quietude de antes não existe mais. Há poucos dias, em abril de 2013, vi, no noticiário televisivo, filmagens de um confronto entre policiais e bandidos, num assalto à única agência bancária da cidade. O tiroteio, com fuzis e metralhadoras em pleno logradouro público, resultou na morte de um cliente do bar, situado ao lado da agência bancária, assim como em ferimentos à bala no proprietário do bar.
Por coincidência, na mesma semana, tive que enfrentar mil quilômetros, para as exéquias de meu irmão Zezé, em Patos de Minas. Aproveitei o ensejo para matar as saudades de Guimarânia.  Percebi então que a população local anda assustada com a onda de crimes cometidos, na grande maioria, por forasteiros, que surgem do nada e desaparecem deixando rastros de violência.
Hospedei-me na casa de minha irmã e madrinha Anatildes, moradora local há mais de 50 anos. Demonstrei interesse em visitar sua fazenda, situada a dez km da cidade, onde eu gostava de passar as férias escolares, desde a infância. Tenho muita nostalgia das temporadas no cerrado do Brasil central: banhos de rio, passeios a cavalo, caneca de leite ao pé da vaca, o pingue-pongue diário, o pomar repleto de mangas, nas férias de verão, e salpicado de goiabas, laranjas e mexericas, nas férias de inverno... Sugeri, em vão, que restaurasse o lindo e centenário casarão, para que pudéssemos voltar a usufruir daquele recanto. Ela alegou que atualmente a região está muito visada por malfeitores. Nem mesmo os pobres colonos, que pouco têm a oferecer aos larápios, querem residir na zona rural, devido à da onda de violência. Durante o trajeto, relatou-me casos estarrecedores ocorridos nos últimos dias, após o assalto ao banco.
Dentro da cidade, bandidos encapuzados invadiram uma casa. Enquanto dois deles seguravam uma senhora, um terceiro, com uma garrafa de álcool, ateava fogo em seu filho de 12 anos. A mãe, apavorada e impotente, assistiu à cena e ouviu os gritos de pavor da criança.
Houve também um assalto, numa fazenda próxima a Morro Feio, onde moram apenas um rapaz e seu pai, já idoso. Segundo ela, os dois moradores estavam acabando o labor diário na feitura do tradicional queijo de Minas. O filho, ao pegar um balde dágua para lavar o piso da casinha de queijos deparou com três homens encapuzados e armados (provavelmente os mesmos que atearam fogo ao menino). Sua primeira reação, ao ver as armas apontadas contra si, foi de jogar a água do balde sobre os bandidos. Imediatamente, como resposta, recebeu três tiros à queima-roupa. Estendido no chão, foi chutado diversas vezes, à espera de alguma reação. O corpo permanecia inerte. Com a certeza do serviço concluído, um dos malfeitores perguntou ao chefe o que faria com o velho. Recebeu como resposta que o deixasse em paz, pois o pobre diabo mal se equilibrava sobre as próprias pernas. Em seguida, os três abandonaram o recinto e entraram na sede da fazenda para escolher o butim daquela empreitada. Nisso, o filho, que se havia fingido de morto, disse ao pai que se escondesse sob as palhas do paiol. O rapaz, mesmo perdendo muito sangue, conseguiu se arrastar até uma casa de colonos, próxima ao local, para pedir socorro. Os vizinhos levaram-no a um hospital e acionaram a polícia, enquanto o pai permanecia sob monturos de palha que lhe pinicavam todo o corpo.
Numa outra fazenda próxima, três idosos foram cruelmente judiados por larápios, pelo fato de não disporem de nada de grande valia para lhes oferecer.
Os relatos foram interrompidos ao chegarmos à sede da fazenda. Encontramos a casa arrombada. Nada fora roubado porque, como prevenção, só restam ali antigos móveis, por demais pesados. Desolada, constatei que jamais poderei passar férias na fazenda Morro Feio. Como dormir em paz, sem proteção policial, sem aparato eletrônico de segurança, sem cercas elétricas ou armas?
Na volta à cidade, consternada pelo que vi e ouvi, tive subitamente a alegria de presenciar algo lindo de se ver e de se ouvir: o canto de três seriemas que se postavam ao lado da estrada de terra. Paramos o carro e desligamos o motor para melhor apreciar. Alternadamente, como se estivessem se comunicando, elas cantavam diferentemente umas das outras. Talvez fosse o ritual de sedução para o acasalamento. Eu não me lembrava mais do melancólico canto da seriema. Aquela melodiosa cadência, associada ao suave roçagar da brisa seca do planalto central e o cheiro de mato verde arrebataram-me.
  Fechei os olhos e viajei no tempo. Transportei-me à época em que catava gabirobas, apanhava mangabas e jatobás no campo; em que conhecia as vacas pelos nomes e brincava com seus bezerrinhos; em que cavalgava no lombo de Baim, em que apreciava os banhos de rio, com direito a saltos em poços fundos e deslizamentos corredeiras abaixo. Mantinha-me atenta aos cacarejos de galinhas poedeiras. Ao primeiro alarde, enveredava mato adentro à procura de novas ninhadas, guiada pelo som alvissareiro que soava aos meus ouvidos como se a ave estivesse anunciando: “botei, botei, botei um ovo!!! botei, botei, botei, um ovo!!! Eu tinha que ser ágil para encontrar o ninho antes do término da cacarejança.
Minhas filhas, criadas em grandes centros urbanos, não usufruíram da magia do universo campestre. Meus descendentes, filhos da era digital, navegarão por universos não menos interessantes. As mudanças, salutares ou não, se fazem necessárias em sintonia com o momento e com as circunstâncias. O importante é desfrutar da magia do viver.  Os alemães usam o termo Zeitgeist, e os franceses a locução air du temps, para expressar o modus vivendi em determinado tempo e espaço. Ainda não se encontrou, em português, uma tradução ideal, que abarque todo o significado de tal expressão. A tradução mais usual é “espírito do tempo”. Tal “espírito” abrange os novos ares espaciotemporais da civilização, nos quais se incluem as concepções estéticas, políticas, sociais, morais, filosóficas, econômicas e científicas, entre outras. Os conceitos, seja  estéticos, seja morais ou religiosos, vão mudando com o passar do tempo. Por
  conseguinte, algo relevante numa determinada época torna-se irrelevante em outras, e vice-versa.
Voltando às reminiscências iniciais: Guimarânia, a cidadezinha interiorana gravada em minha memória, continua ocupando o mesmo espaço geográfico, mas o Zeitgeist  a distingue totalmente do que foi em décadas passadas e do que será em décadas futuras. Todavia o canto da seriema continua o mesmo.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)


segunda-feira, 19 de agosto de 2013

CANTORIA DE REIS

*Jô Drumond

Todo início de janeiro há apresentações de folias de Reis, na zona rural do Alto Paranaíba. Os foliões vão de fazenda em fazenda, angariando prendas para a festa do dia seis. Certo dia, no percurso entre uma e outra fazenda, eles encostaram o mastro da bandeira numa árvore e se distanciaram, em respeito ao santo, para beber uma cachacinha. Ao voltarem, perceberam que um boi havia mascado a bandeira. Já meio ébrios, desnorteados, não sabiam o que fazer. Não podiam voltar ao povoado sem bandeira, muito menos sem prendas. Sugestões desencontradas de cada um não apontavam para consenso algum. Zé Mané, mais despachado, disse aos demais:
─ Deixem comigo. Vou resolver essa pendenga!
Ao se aproximarem da fazenda seguinte, ele desandou uma inusitada cantoria, em ritmo de folia: Oh senhor dono da casa / veja só o que aconteceu (bis) / dê esmola pra esse pau / a bandeira o boi comeu (bis).
O fazendeiro achou graça, convidou-os para um “cafezim quentim”, ouviu o causo do mastro desbandeirado, gostou da iniciativa do caboclo, e acabou dando um bom adjutório para a feitura de várias bandeiras.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Roda de Bar

 Na cidade de Santa Teresa (ES), numa mesa de bar, uma alegre roda de amigos bebericava para espantar as tristezas. Depois de algumas biritas, a conversa se animava proporcionalmente ao aumento do teor etílico no sangue. Alguns deles, que caçavam por diletantismo nos finais de semana, começaram a trocar ideias sobre os locais de caça abundante na região, sobre os últimos butins, sobre os melhores cães de caça e sobre suas aventuras reais ou fictícias mata adentro.
Um deles, muito falante, conhecido como Zé da Onça pelo fato de ter enfrentado uma delas, segundo ele, sozinho e desarmado, disse:
─ Minha gente! Cá pra nós, vou lhes dizer uma coisa. Prestem atenção! Não há nenhum lugar melhor para se caçar do que a reserva florestal daqui de Santa Teresa.
─ Tá louco, homem! ─ Exclamou um deles ─ É proibido caçar na reserva! É crime inafiançável! Você pode ser preso!
─ Eu sei. Tô cansado de saber! Mas a reserva é grande, e a fiscalização é precária. Nunca vi um fiscal do Ibama  por lá.
Um senhor reservado, novato no grupo, que até então não se tinha manifestado, lhe perguntou.
─ Como o senhor se chama?
─ Eu não me chamo nunca! Meus amigos me chamam por Zé da Onça.
─ Seu Zé, o senhor caça sempre, dentro da reserva?
─ Claro que sim!
─ O senhor sabe com quem está falando?
─ Não. É a primeira vez que o vejo por essas bandas.
*Jô Drumond
(Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)
─ Eu me chamo João Pedro. Sou chefe da fiscalização do Ibama.
Mais que depressa Zé da Onça lhe fez a mesma pergunta, já com a resposta engatilhada.
─  Muito prazer! E o senhor? Sabe com quem está falando? Com o maior mentiroso da região!
Todos caíram na gargalhada. Ficou o dito pelo não dito e mudaram o rumo da prosa.

O fato virou caso anedótico na cidade, mas surtiu dois efeitos, para a tranquilidade dos animais silvestres: Amedrontado, Zé da Onça nunca mais caçou na reserva; alertado, o fiscal passou a atuar com muito mais rigor junto à sua equipe.




segunda-feira, 5 de agosto de 2013

PÉROLAS AOS PORCOS

Jô Drumond

Grande apreciador de vinhos raros, o francês François de la Cancoillote, colecionava milhares de litros de vinho em sua extensa adega, no subsolo do palacete onde residia. Algumas garrafas, alvo da cobiça de enólogos, eram verdadeiras preciosidades. 

Durante a ocupação nazista, na segunda Grande Guerra, na iminência de ter sua residência invadida e tomada por soldados alemães, ele providenciou a inundação da adega. Todas as garrafas garimpadas durante décadas em vinícolas e no comércio especializado ficaram submersas. Não permitiria que os tradicionais beberrões de cerveja profanassem suas raridades de estimação, guardadas com tanto desvelo. Se quisessem beber, que tomassem água, de preferência envenenada. Seu vinho não se prestaria ao desfrute de soldados incapazes de degustá-los. Não daria pérolas aos porcos.

A temida previsão aconteceu. O palacete foi confiscado. Sua família, habituada à amplidão dos cômodos, ao requinte da decoração e à mesa farta, teve que se aboletar juntamente com famílias desconhecidas, em exíguos espaços, e que se alimentar com parca ração nauseabunda. Os belicosos ocupantes da mansão não deram atenção à inundação do porão. Tinham questões mais importantes a tratar.

Ao final da guerra, a família Cancoillote recuperou seu palacete e, juntamente com ele, sua dignidade. Todos os cômodos encontravam-se em estado lastimável. Enquanto mulher e filhos vistoriavam os estragos e lamentavam a imundície, François desceu mais que depressa ao subsolo. Seu tesouro continuava resguardado sob milhares de litros cúbicos de água. O escoamento foi providenciado. As rolhas pareciam intactas. François abriu uma garrafa e teve a hedonística sensação de degustar o néctar dos deuses. Que ideia magnífica, a minha ─ pensou ele ─ nada melhor do que água para manter a temperatura e conservar o vinho. Após o momento de euforia, uma desolação. Todas as garrafas haviam perdido os rótulos. Como identificar a safra e a procedência de cada uma? Pas possible! Jamais conseguiria comercializar seu produto, se o quisesse. Pas de problème! O destino do precioso líquido já estava definido. 

Regaria os repastos dos Cancoillotte,  enquanto vida tivessem. Como bom francês, François não concebia refeição sem vinho. Pouco a pouco, de taça em taça, foi dilapidando seu tesouro. A cada garrafa aberta, a renovada alegria de estar em seus domínios, cercado pela família, e o regozijo de se sentir, de certa forma, vingado dos indesejáveis intrusos.

                                                                                                      

*Jô Drumond
(Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

terça-feira, 16 de julho de 2013

A VISITA DO PAPA E A MIGRAÇÃO RELIGIOSA

Jô Drumond
A vinda do sumo pontífice em julho de 2013 ao Brasil deverá redespertar a fé nos católicos relapsos e incrementar princípios religiosos na promissora juventude engajada nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB). Ultimamente houve um significativo aumento de CEBs e, por conseguinte, uma efetiva prestação de serviços comunitários junto à população carente. Espera-se muito do recém-ungido Francisco, que se autodenomina “O papa do fim do mundo”. Ele se mostra mais aberto que seus antecessores em face de assuntos polêmicos. Para arrebanhar ovelhas desgarradas, terá que agir com muita diplomacia na abordagem de temas delicados tais como pedofilia dentro do clero, celibato clerical, ordenação feminina, união homo afetiva, contracepção, entre outros.
Segundo o IBGE, entre 2000 e 2010, dois milhões e meio de jovens dissidentes da igreja católica, migraram para igrejas evangélicas ou deixaram de ter religião. Segundo pesquisa de mobilidade religiosa feita pelo Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris), e publicada pela revista Veja (ano 39 nº 27), nas últimas décadas, a Igreja Católica brasileira vem perdendo milhões de fieis. A grande migração do catolicismo para o protestantismo é assaz intrigante.  Segundo consta, as igrejas pentecostais e neopentecostais cujo objetivo é o de encontrar a felicidade aqui e agora foram incrementadas pelos novos líderes evangélicos com técnicas de autoajuda. Conforme estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas, em poucos anos, milhões de brasileiros aderiram a essas correntes evangélicas, que representam hoje o grupo que mais cresce no Brasil.
Papa Francisco
Para cada ramificação há um diferente perfil de pastor. Nas diversas correntes, o tempo de preparo do pastor está inversamente proporcional ao volume de ovelhas arrebanhadas. Isso é deveras preocupante. A título de comparação, na Igreja Católica, a formação de um padre inclui, pelo menos, dois diplomas de graduação: um em teologia e outro na área de ciências humanas, num processo demorado, de cerca de 10 anos.
Dados extraídos da matéria intitulada “Os novos pastores” mostram que entre os evangélicos históricos, originários da reforma seiscentista, (Igreja luterana, presbiteriana, metodista e batista) a formação de um pastor dura, no mínimo, cerca de 5 anos. Além da graduação em teologia, o aspirante passa por um estágio preparatório de um ano, sob a supervisão de um ministro. Há, nessas igrejas, grande incidência de pastores com Mestrado e Doutorado.
 Nas correntes pentecostais, surgidas no século passado (Assembleia de Deus, Congregação Cristã no Brasil e Deus é Amor), a formação dura cerca de 3 ou 4 anos; os pastores têm curso de teologia, mas não necessariamente de nível superior.
Já nas correntes que mais crescem atualmente, as neopentecostais, surgidas em 1970  (Universal do Reino de Deus, Renascer em Cristo, Internacional da Graça de Deus e Sara Nossa Terra), a formação dura de 6 meses a 2 anos. Ela pode ser feita por meio de cursos práticos, ministrados na própria igreja, voltados para a mídia eletrônica. Esses cursos dão primazia à oratória, a técnicas de apresentação em rádio e televisão, ao gerenciamento financeiro de templos, à liderança e até mesmo à etiqueta. O grande crescimento do rebanho exige rapidez na formação dos pastores e ocasiona um sério problema. Há igrejas que se veem na contingência de agilizar o processo e, por conseguinte, de reduzir o tempo na preparação de novos líderes.
Segundo consta, atualmente, certos fatores, como o sucesso da doutrina, as facilidades de comunicação com os fiéis e a eficiência na gestão das igrejas favorecem tais migrações.   O discurso atual de muitas igrejas é mais voltado para o pragmatismo, para o racionalismo e para a pró-atividade do fiel, do que para o sobrenatural. Isso talvez explique a evasão daqueles que optam por algo mais em sintonia com os novos tempos. Destarte, conclui-se que, postulações retrógradas, quaisquer que sejam, prognosticam o esvaziamento progressivo dos templos. Com o engajamento social do novo papado, espera-se que novos ares mudem o rumo dessas estatísticas.

Jô Drumond
(Josina Nunes Drumond)

Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)