segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

A FORÇA DA ONOMÁSTICA

Segundo uma crendice de longa data, a nominação do espírito do Mal deve ser evitada para não atrair sua presença. Isso explica a extensa sinonímia existente em torno do demônio, na cultura popular. No livro Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, há cerca de uma centena de eufemismos de origem supersticiosa, referente ao demônio. Vejamos alguma delas: o Austero; o Severo-mor; o Morcegão; o Dos-fins; o Sempre-sério;   o Pau-da-mentira; o Pai-do-Mal; o Tendeiro; o Que-não-ri; o Cujo; o Cão; o Capeta; o Capiroto; o Cramulhão; o Arrenegado; o Maligno; o Tinhoso, o Bode-preto; o Das-trevas; o De-preto... e por aí vai.

Minha mãe, nascida e criada no sertão de Minas, aparentada a tal escritor, descendente também dos Guimarães, assim como Rosa, acreditava nessa crendice.

Ela tinha pavor de certa doença maligna, da qual nunca mencionava o nome. Sempre dizia: “aquela doença”. Rezava todas as noites, pedindo ao bom Deus que ninguém de sua família a contraísse. Ao final de sua vida, já no CTI, com diagnóstico de falência múltipla de órgãos, chamou o médico responsável e lhe disse: –  Doutor, seja franco. Diga-me a verdade. Eu tenho “aquela doença? – E ele respondeu:  – Fique tranquila, dona Tunica. A senhora tem tudo, menos aquela doença. – Ah! Que bom! –  Respirou aliviada. Naquele mesmo dia ela partiu para uma viagem sem volta, feliz da vida por não estar com câncer.

Engana-se quem pensa que tal crendice só acontece nos rincões do país e nas classes mais populares. Há poucos dias, em conversa com um grande intelectual capixaba, percebi que ele nunca citava os nomes dos desafetos. Sempre se referia a eles lançando mão de epítetos caricaturais, de modo que eu percebia perfeitamente de quem se tratava. A crendice sertaneja não ficaria bem em uma pessoa de grande projeção social e de “suma doutoração”, como diria Guimarães Rosa. Não contive a curiosidade. Perguntei-lhe por que nunca mencionava os nomes daquelas pessoas. Usou a mesma argumentação sertaneja: – Para não atrair o Mal (aqui representado por pessoas indesejáveis).

Deixemos de lado os sertanejos de ontem, os citadinos de hoje e passemos à Grécia antiga. Um dos diálogos de Platão, intitulado Crátilo, aborda a questão da justeza dos nomes. Nessa obra, Sócrates é inquirido por Crátilo e Hermógenes. Eles questionam se os nomes das pessoas e das coisas são “convencionais” (um sistema de símbolos arbitrários) ou “naturais” (relação intrínseca dos nomes com o que é nominado). Em outras palavras, Crátilo e Hermógenes discutem se o os nomes guardam relação com a coisa representada. Segundo Platão, em alguns casos os nomes refletem a natureza das coisas; em outros, trata-se apenas de uma convenção. A seu ver, a coordenação entre os elementos da linguagem e a essência das coisas não pode ser alcançada, mas apenas idealizada como uma possibilidade.

Mal sabia minha avó paterna, sertaneja de pouca instrução, que, quatrocentos anos antes de Cristo, alguns filósofos discutiam os mesmos questionamentos que a afligiam. A seu ver, cada pessoa já nascia com um nome predestinado. A cada neto que nascia ela tentava impingir um nome. Na maioria das vezes era contrariada pelos pais das crianças.

Quando nasci, ela procurou minha mãe, com a ladainha de sempre: “cada criança já nasce com um nome”. No entanto frisou que seria inútil dizer o nome a mim destinado. Ninguém lhe dava ouvidos.

Minha família tinha por hábito, por devoção ou por falta de imaginação colocar sempre no recém-nascido o nome do santo do dia. Não sei se o calendário dos santos se encontrava em algum almanaque ou na tradicional “Folhinha Mariana”. Nasci no dia de Nossa Senhora do Carmo. Portanto meu nome deveria ser Maria do Carmo.

–  Essa criança nasceu para ter o nome do avô: Josino – afirmou minha avó categoricamente. Como, no meu caso, se tratava de uma menina, trocou-se o “o” pela “a”. Surpreendentemente, minha mãe fez uma concessão, para agradar à sogra.

Nunca gostei dessa escolha, mas tampouco gostaria de me chamar Maria “de alguma coisa” ou Maria “de algum lugar”. A criança não pode escolher seu próprio nome, mas o adulto pode adotar o pseudônimo que lhe aprouver. Por isso, nem Josina, nem Maria: simplesmente Jô, com mucho gusto.

Há um ensaio-crítico de Ana Maria Machado, ex presidente da Academia Brasileira de Letras, intitulado “O recado do nome” sobre a antroponímia roseana na obra Grande sertão:veredas. Entre outros, ela demonstra, por exemplo, o espírito bélico de Zé Bebelo, que vivia para o prazer de guerrear; demonstra também a ambiguidade de Diadorim (di=dois), conotando a dubiedade de um personagem enigmático, nebuloso, indefinível... que é, ao mesmo tempo, anjo e demônio; donzela e jagunço. A terminação “im”, muito comum no sertão de Minas, acentua a indefinição sexual do personagem, cuja beleza andrógena provoca certo fascínio. Para o protagonista, Riobaldo, o autor reservou o que se chama de polinomásia, ou seja, multiplicidade de nomes. Ele não tem nome fixo. Seu apelativo varia de acordo com cada etapa de sua vida. Na juventude, dá aulas a um fazendeiro e é, portanto, conhecido como professor. Ao se tornar jagunço, passou a ser chamado de Cerzidor, graças à rapidez do tiro. Mais tarde, considerando-se sua destreza no manejo de armas de fogo, passou a chamar-se Tatarana (lagarta de fogo). Ao se tornar chefe do bando, foi batizado de Urutu-branco (cobra-voadora), devido à valentia e à capacidade de liderança.

No conto “Desenredo”, do mesmo autor, há uma personagem que tem três  nomes: Livíria, Rivília e Irvília. Trata-se de uma mulher que “pisa em três estribos”: tem um marido e dois amantes. Um dia o marido dá um flagrante, mata um deles e posteriormente morre de tifo. O terceiro resolve se casar com ela. Acontece o mesmo com ele. Pisava ela num quarto estribo. Ganhou um quarto nome: Vilíria. Diferentemente de Riobaldo, sua mudança de nome é quase imperceptível. Ela se dá sub-repticiamente, em sintonia com a personalidade volúvel da nomeada.

Na Literatura, uma infinidade de nomes próprios sugere o caráter dos personagens.  Às vezes o próprio título da obra leva o nome do protagonista e traça seu perfil psicológico, como em Cândido, de Voltaire, em Inocência, de Visconde de Taunay... Poderíamos citar uma infinidade de exemplos, mas toda crônica carece de ponto final. Le voilà.

Jô Drumond

18 de janeiro de 2021