domingo, 7 de julho de 2019

RETRATO DE FAMÍLIA

Seu Joaquim e Dona Joaninha se conheceram em um arrasta-pé de arraial, daqueles em que as desavenças são resolvidas no fio da peixeira. Engraçaram-se um pelo outro e resolveram juntar os trapos sem tardança, sem festança e sem comilanças nupciais, por falta de grana. A finada mãe de Joaninha sempre repetia: “Quem ama com fé casado é”. Então, casar pra quê?

Alugaram uma casinha pequenina, mal-ajambrada, do tipo “tomara que caia”, desde que não caia na cabeça de ninguém. Em tempos bicudos, o aluguel era pago com arrecadação de honorários de “bicos” variados. O casal era “pau pra toda obra”. Os tempos foram ficando difíceis com a chegada dos rebentos.

Com filho no bucho ou na barra da saia, Joaninha não podia mais trabalhar fora. Carregava na cabeça trouxas de sujeiras alheias para lavar, passar, às vezes engomar. Com o aumento da criação, levada pelas circunstâncias, saía às ruas com o pimpolho caçula em um braço e de mãos dadas com o penúltimo. Os demais seguiam-na, como rabo de saia. Para garantir o leite das crianças, sua cabeça altiva equilibrava a trouxa como uma coroa infalível.
Seu Joaquim rebolava sem dançar, para o sustento da família crescente; biscates aqui, ali, acolá. Chegou a pensar na contracepção, mas os preceitos religiosos de ambos não permitiam tamanho disparate. Filhos teriam quantos Deus quisesse. Parecia que Ele queria povoar a Terra a partir daquele exíguo cafofo. Era uma cria por ano.

Certo dia, meio desacorçoada, Joaninha perguntou a seu companheiro.
-Oh home! Cê acha que se Deus fosse muié, Ele haveria de querê passá por tanta prenhez e por tanto vir ao mundo, com dor, sem anestesia?
- Sei lá, muié. Dizem que Ele sabe o que faiz, que Ele inté escreve reto em linha curva.
- Será? Então pede a Ele pra, pelo menos, ajudá no “de comê” das criança. Num guento mais vê meus menino chorá de fome.

O pai, muito fervoroso, passou a rezar toda noite, pedindo um futuro promissor. Mas, com o tempo, foi também desacorçoando. Um dia, ele disse à Joaninha que tinha ouvido no rádio uma canção que dizia: “deve ser que eu rezo baixo, pois meu Deus não ouve não”. A partir desse dia passou a rezar em voz alta e com redobrada fé, em vão.
Foram levando a vida na labuta, com pouca “fartança” e muita “faltança”. Faltava-lhes feijão, arroz, remédio... faltava tanta coisa! Até mesmo misericórdia. Mas não faltava fé. Isso nunca! De jeito maneira!

Certo dia, o casal deixou os sete filhos com um tio e fez uma viagem há muito esperada. Foi a Aparecida, no interior de São Paulo, pagar uma promessa pela cura de um filho que nascera com sopro no coração. Os dois tomaram um ônibus lotado de peregrinos, que anualmente faziam uma visitinha à padroeira do Brasil, no dia 12 de outubro, na Basílica Nossa Senhora da Conceição Aparecida.

Lá foram eles, cheios de expectativas, em tardia lua de mel. Ficaram encantados com a grandiosidade da Basílica, com o mundaréu de gente enxameando por todos os lados, com milhares de suvenires vendidos nas barracas próximas à Basílica e com tudo mais em terras estranhas, nunca dantes pisadas por aqueles pés imantados ao torrão natal.

Na volta, após uma curva em ribanceira, fecharam os olhos para o mundo e deixaram sete órfãos ao Deus dará. Dará o quê? Como? Quando? Seu Joaquim, em vida, sempre afirmava de pés juntos : “Ele tarda, mas não farta!”

O que fazer com aquela numerosa orfandade? O jeito era distribuir a filharada, entre parentes, amigos e vizinhos. Os caçulinhas, de poucos meses de vida, formavam um casal de gêmeos. O menino teve melhor sorte. Foi adotado, graças à intervenção do pároco, por um casal com bons recursos financeiros. Foi levado não se sabe para onde. Os pais adotivos fizeram questão de não deixar traços, com temor de perder a criança que havia iluminado sua vida. O bebê era tratado como um reizinho, com direito a todos os paparicos do mundo. Formou-se em medicina e, nas horas vagas, clinicava como voluntário em ambulatórios de periferia. Ele tinha ciência da própria adoção e da morte dos pais. Porém nunca havia sido mencionada a existência de irmãos. Essa omissão indiciava sua inexistência. Com certeza ele teria sido informado pelos pais adotivos, caso existissem.

Sua benevolência na área da saúde lhe proporcionou, certo dia, uma grande surpresa. Durante o atendimento em um desses ambulatórios, recebeu uma paciente com nome e sobrenome deveras inusitados. Ela se chamava Manoela Jeaquinto Trás dos Montes. Pensou que a recepcionista tivesse confundido o nome da paciente com o do médico. Chamou a atendente e solicitou documentos da paciente. Não era nenhuma Maria da Silva, facilmente encontrável em listas de INSS. Estupefato, ele não podia acreditar em tamanha coincidência.

- Minha senhora, disse à paciente. Veja que coincidência! Eu me chamo Manoel Jeaquinto Trás dos Montes. Não é incrível?

A paciente desandou a chorar. Não havia nada que estancasse o chororô. Depois de água com açúcar e muitos abanos para refrescar o clima, ela finalmente conseguiu balbuciar:

- Manoelzinho, meu irmão gêmeo desaparecido. É você mesmo?

- Não sei. Só sei que fui adotado, após a morte de meus pais.

- Em acidente rodoviário, voltando de uma peregrinação a Aparecida - acrescentou ela.

- Exatamente! Confere! Meus Deus! Venha cá, minha irmã.

Abraçaram-se e choraram juntos.

- Diga-me, minha “quase” xará, somos únicos ou temos outros irmãos?

Manoela tirou da carteira uma foto encardida pelo tempo, que carregava consigo havia mais de trinta anos. Por sorte, dias antes do acidente, um fotógrafo lambe-lambe havia passado oferecendo seus préstimos. A família desencaixotou suas melhores indumentárias, engalanou-se, e postou, juntamente com um tio que lá estava, para o registro fotográfico. Como pano de fundo, lançaram mão de duas colchas coloridas, tecidas no tear,  com o intuito de cobrir a pobreza do casebre.

Manoela  postou a foto diante dos olhos incrédulos do irmão e lhe disse: