domingo, 27 de novembro de 2016

RELEMBRANDO O CAOS PAULISTANO

(Crônica publicada em 2010, no livro Tearte, com o título “O sertão é aqui e agora”)

*Jô Drumond

Congestionamento no trânsito 
Três dias atrás, domingo, 14 de maio de 2006, estava eu em Vitória, fazendo as malas, para participar, em São Paulo, do Seminário Internacional João Guimarães Rosa, em comemoração do cinquentenário das obras Grande sertão:veredas e Corpo de baile, organizado pela USP. Pelo jornal televisivo, tomei ciência dos tumultos na capital paulista, gerados pelo corte de mordomias de certos prisioneiros, que, segundo a mídia, comandavam o crime organizado de dentro dos presídios, por meio de telefones celulares. Embarcar ou não; eis a questão! Pelo sim, pelo não, escolhi o sim, na esperança de que se tratasse apenas de casos isolados.

Na expectativa de me encontrar com os maiores especialistas da obra roseana, tomei o avião às seis horas da manhã, com tempo de sobra para dar entrada no hotel e chegar à USP antes das dez, horário da abertura do Seminário. Ao chegar ao aeroporto de Congonhas, soube da lentidão do tráfego. Seria mais prudente ir diretamente para a Universidade e dar entrada no hotel no final da tarde, já que a reserva durava até às dezoito horas. Foi o que fiz. Cheguei ao auditório onde seria a abertura do Seminário, com 45 minutos de antecedência e não havia mais assentos disponíveis, nem mesmo no chão. Dei a volta por traz e consegui bem no fundo, no canto esquerdo do auditório, um exíguo espaço para ficar de pé. A concorrida abertura contou com a presença dos “Miguilins”, grupo de jovens de Cordisburgo (MG), terra de Guimarães Rosa, que são treinados desde tenra idade para serem contadores de histórias, repetindo nos palcos, os causos escritos por GR. Após as apresentações dos jovens, ouvimos os depoimentos de José de Mindlin e de Antônio Cândido, grandes nomes da intelectualidade brasileira, contemporâneos do autor, e que tiveram com ele laços de amizade e de camaradagem intelectual.

Na parte da tarde, havia menos participantes e, por conseguinte, assento para todos. Cerca de 17:00 horas, justamente no momento em que um pesquisador apresentava suas reflexões sobre o estado de violência descrito na obra literária, alguém entrou na sala, subiu ao estrado, e cochichou algo ao dirigente dos trabalhos. Este tomou a palavra e disse: – Senhores e senhoras, o sertão é aqui e agora! Acabo de ser informado que, devido ao caos reinante nas ruas da capital, o Reitor deu “toque de recolher” para toda a Universidade.

Congresso interrompido. Lembrei-me da bagagem que me aguardava na sala ao lado. Não havia táxis nem ônibus em circulação. Desolada e isolada, no Campus Universitário, longe de tudo, sem conhecer ninguém, fiquei desnorteada. As notícias, entre os congressistas, eram desencontradas. Segundo boatos, que se espalhavam rapidamente, bombas haviam sido jogadas contra outras universidades. A Usp estava na mira dos agitadores. Escolas, comércio, bancos, tudo havia sido fechado, naquela tarde, por causa das arruaças. Trabalhadores e estudantes ficaram nas ruas, à procura de condução para voltar para casa.

“Viver é muito perigoso” é um mote repetido diversas vezes ao longo da narrativa de Grande sertão:veredas, uma das mais importantes obras literárias do século XX. Na jagunçagem do sertão brasileiro, retratada pelo escritor Guimarães Rosa, viver era realmente muito perigoso. Se saltarmos de um século para outro, e do sertão para a cidade de São Paulo, uma das maiores megalópoles do mundo, podemos repetir, no início do terceiro milênio, o mesmo mote de Riobaldo, personagem e narrador da obra: “viver é muito perigoso”. O motivo continua o mesmo: a violência, o banditismo e a subversão à ordem estabelecida.

Na capital paulista, nesses últimos três dias, houve, segundo o noticiário, 251 atentados, com cerca de 100 mortos, 51 feridos, 80 ônibus incendiados, bombas e rajadas de metralhadoras em agências bancárias, assim como em estabelecimentos comerciais e escolas. A ação, tanto por parte dos bandidos quando dos policiais, gera medo na população, que teme ambos os contendores. Tudo isso, somado aos engarrafamentos, tornou a vida paulistana caótica. A polícia, fortemente armada, e com medo dos inusitados atentados, atira em qualquer cidadão com atitude suspeita. Nesse clima de pânico, todos são suspeitos até que se prove o contrário.

Em decorrência de inúmeras “blitzes” policiais e da drástica redução da frota de coletivos, provocada por incêndios e depredações, o trânsito não flui. Os pontos de ônibus encontram-se superlotados. Os táxis desapareceram por encantamento. Raramente, quando surge um deles no tumultuado horizonte urbano, já está lotado.

A cidade de São Paulo, em tempos normal, já me mete medo. Nesse final de tarde, comecei a entrar em pânico após ficar plantada por mais de uma hora, com as malas na mão, tentando um táxi. O dia estava escurecendo. Uma livreira da Universidade, da qual eu havia comprado vários volumes, se apiedou de mim, e conseguiu-me uma carona. Entrei mais que depressa num carro onde havia duas congressistas. Gastamos mais de uma hora para sair do Campus, devido à lentidão do trânsito, praticamente parado. Demoramos algumas horas para rodar poucos quilômetros. Nesse pequeno percurso, presenciamos depredações, evacuação de ônibus, violência policial, correrias e tumultos. Uma das congressistas tentava me acalmar dizendo-me que assim que encontrássemos um ponto de táxi, nós duas seguiríamos juntas e que ela me deixaria na porta de meu hotel, próximo à avenida Paulista, pois esse seria também seu percurso. A que estava dirigindo, apavorada, queria voltar para casa o quanto antes. Ela deveria tomar a direção oposta à nossa. Pedimos que parasse, por algum tempo, num cruzamento, para tentarmos um táxi. Aguardamos cerca de meia hora. Não havia táxis.

Avenida Paulista
Raramente aparecia algum, porém lotado. Nossa motorista ligou do celular, para seu marido, e lhe explicou a situação. Percebemos que ele lhe havia sugerido que se dirigisse imediatamente para casa. A congressista que havia prometido me acompanhar até o hotel, ao perceber a conversa dos dois ao telefone, apavorou-se e disse que acabaria de chegar a pé, mesmo que demorasse horas de caminhada, como era previsto. Foi o que fez. Deixou a pasta e os livros no assento traseiro do carro, passou a mão na bolsa, despediu-se rapidamente e foi engolida pela multidão. A outra decidiu tomar o rumo de casa e gentilmente convidou-me para dormir em sua casa, o que recusei. Lembrei-me que minha reserva expirava às dezoito horas e já eram quase dez horas da noite. Pedi-lhe que me deixasse à porta de qualquer hotel que estivesse em seu caminho. No primeiro, por azar ou sorte, havia apenas um quarto livre, de alto luxo e, evidentemente de alto preço. Não me senti no direito de lhe pedir para procurarmos um hotel mais modesto. Paguei uma fortuna, mas tive minha noite de rainha.

Agora são 10:00 horas da manhã. Estou num amplo e confortável quarto de hotel, armada de papel e caneta, registrando os fatos e aguardando notícias mais alentadoras. Todos os canais de televisão, desde ontem, só focalizam o caos paulistano. Por precaução, decidi não ir à Usp nessa manhã. Ao meio dia, no vencimento da diária, sairei de mala e cuia à procura de outro hotel à altura de meu bolso. Não sei como enfrentarei o caos paulistano nos próximos dias de congresso. Riobaldo tem
"O sertão está em toda parte"
razão. Realmente, “viver é muito perigoso”. Nos labirínticos meandros da existência, um minotauro pode estar à nossa espreita. Em qualquer direção, a qualquer momento, ele poderá surgir em nosso caminho. O perigo de viver consiste no próprio fato de existir. Guimarães Rosa tinha razão ao afirmar que “o sertão está em toda parte”.


*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias.
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

A MAGIA DO BELO

 Jô Drumond

Aficionada às artes, sempre gostei de visitar museus, sobretudo aqueles voltados para pintura, escultura e mobiliário antigo. Certa vez, em Bruges (Brugge), na Bélgica, tive a oportunidade de apreciar uma retrospectiva de um dos meus pintores prediletos: Paul Cézanne (1839-1906). Foi sorte rara ver reunida, em um só espaço, grande quantidade de obras do renomado artista. Cézanne, muitas vezes enquadrado entre os pós-impressionistas, abriu novos caminhos para a arte do século XX e trouxe uma nova concepção de percepção da realidade. Em algumas de suas obras, ele prenuncia as pesquisas do Cubismo.

Ao percorrer lentamente as galerias, observando cada quadro, deparei com uma obra que me deixou paralisada. Um frisson percorreu todo meu corpo. Mal pude disfarçar as lágrimas. Para um visitante qualquer, poderia ser a representação de uma floresta. Para mim, era muito mais que uma pintura a óleo. Era o Belo absoluto, arrebatador. celestial.  Mergulhei o olhar naquele suposto arvoredo e deixei-me enveredar por trilhas sinestésicas, tentando prolongar ao máximo possível aquele momento de pura estesia. Era como se a obra tivesse sido especialmente concebida para meu deleite pessoal. Não sei por quanto tempo estive estática diante do quadro. Perdi a noção temporal. Alguém esbarrou em mim. Percebi então que todos se movimentavam. Devia seguir o fluxo dos visitantes. Por duas ou três vezes, fiz a volta completa naquele recinto e parei diante do “meu” Cézanne, para uma última mirada. Tratava-se de uma oportunidade única. Dificilmente poderia postar-me novamente diante daquele original. Nenhuma reprodução surtiria o mesmo efeito; nem mesmo o original, em outras circunstâncias.

Na sequência organizada pela curadoria, o visitante não tinha retorno. Tão logo entrava, já seguia obedientemente em direção à saída.  Antes de abandonar o museu, desobedeci às setas e deslizei discretamente até meu ponto predileto. Ao entrar pela porta de saída, percebi a inquietação do vigilante. A contração dos sobrolhos e o olhar sobranceiro demonstravam seu nervosismo causado por meu inusitado retorno. Antes que a segurança do museu fosse acionada, saí rapidamente e me misturei à multidão. Caso fosse autuada por atitude suspeita, não saberia me justificar nem a mim mesma; muito menos aos guardas, em língua flamenga (neerlandês).

Já estive assim (enlevada, extasiada, arrebatada, maravilhada), por diversas vezes, diante do Belo. É algo inexplicável, um momento epifânico. Isso já me aconteceu diante de uma vitrine, ao observar um carrilhão barroco absolutamente deslumbrante, dourado, repleto de curvas, contracurvas, volutas e arabescos. Aconteceu de outra feita, no teatro Opéra Bastille, em Paris, diante da cena final do ballet,  Le lac du Cygne, numa  coreografia mesclada de projeção de imagens, no qual, o bailarino se transforma em cisne e alça voo. Aconteceu também durante um espetáculo de tango, em Buenos Aires, no qual dois dançarinos, olhos nos olhos, em perfeita sintonia, pareciam estar alhures, longe de tudo e de todos. Senti-me assim durante o filme Retratos da vida, ao som do “Bolero” de Ravel, com a inefável leveza de um único bailarino, num palco postado diante da torre Eiffel. O mesmo me aconteceu ao visualizar a antológica cena final do filme Rapsódia de agosto, na qual, uma velhinha centenária, com um guarda-chuva revirado às avessas, sob uma borrasca, corre contra o vento no meio de um capinzal que se curva em reverência à sua passagem.

Dizem que os artistas, de modo geral, são mais predispostos a isso. Na antiguidade, os gregos consideravam divinos esses momentos. A estesia diante do Belo assim como a comoção diante do Grandioso ou do Insólito indiciavam a presença de uma divindade. Talvez por isso se manteve, através dos tempos, desde tribos primitivas, a tradição de que a arte esteja, de algum modo, ligada ao absoluto, e de que o artista tenha dons que o distinguem dos simples mortais.

Pode ser que haja pessoas com maior ou menor sensibilidade ao Belo. O certo é que momentos mágicos como esses podem ocorrer no dia-a-dia de todos nós, graças a uma obra literária, a uma música, a uma imagem, ou simplesmente à observação das belezas da natureza. Isso faz com que a vida valha a pena ser vivida.

Segundo Hume Hogarth, “A beleza não é uma qualidade das coisas propriamente ditas; existe tão-só na mente que as contempla; e cada mente percebe uma diferente beleza”

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

domingo, 6 de novembro de 2016

O PADRE ATEU

*Jô Drumond


Nunca havia imaginado a possibilidade de existir um padre ateu, avesso a qualquer tipo de religião e, sobretudo, inimigo ferrenho do catolicismo. Tal antagonismo me incitou a obter maiores detalhes sobre a vida e a obra de um pároco aparentemente tão contraditório. Há um ditado popular, segundo o qual “para tudo neste mundo, há uma explicação”. Decidi buscar tal explicação, que muito me surpreendeu. É difícil acreditar que a grande guinada das concepções religiosas do século XVIII, chamado “O século da razão”, tenha sido provocada justamente por um virtuoso padre. Segue uma síntese do que foi pesquisado a respeito desse fato, a quem interessa possa.

Antes do século XVIII havia muito respeito com relação ao cristianismo e aos eclesiásticos. Ao longo desse século, as concepções dos descrentes, céticos e ateus, antes ocultadas e despercebidas, tornaram-se, aos poucos, públicas e notórias. Por isso as concepções filosóficas de Padre Meslier (1678/1733) só emergiram algum tempo após sua morte.

Jean Meslier, vigário durante mais de quarenta anos da igreja de um vilarejo chamado Étrépigny, no norte da França (região de Champagne-Ardennes), teve uma história de vida antagônica. Suas ações eram absolutamente incompatíveis com seus pensamentos.

Certa vez ele recriminou o homem mais poderoso do povoado, Sr. Touilly, por  ter maltratado camponeses. Sentindo-se ofendido, Touilly deu queixa à autoridade competente, o Arcebispo de Reims, que repreendeu veementemente o padre. Este, sentindo-se injustiçado por ter dito a verdade, “botou a boca no trombone”, no sermão do domingo seguinte, diante dos fiéis:

Eis aqui a sorte costumeira dos pobres párocos do interior; os Arcebispos, que são os grandes Senhores, os desprezam  e não os escutam. Recomendemos portanto o Senhor deste lugar. Oremos a Deus para Antoine de Touilly: que Ele o converta e lhe dê a graça de não maltratar o pobre e de não despojar o órfão.

Voici le sort ordinaire des pauvres Curés de Campagne ; les Archevêques, qui sont de grands Seigneurs, les méprisent & ne les écoutent pas. Recommandons donc le Seigneur de ce lieu. Nous prierons Dieu pour Antoine de Touilly ; qu'il le convertisse & lui fasse la grâce de ne point maltraiter le pauvre, & dépouiller l'orphelin.

Estando presente na pregação, Touilly sentiu-se novamente incomodado e voltou a dar queixa ao Arcebispo, que, desta vez, ordenou que o padre se apresentasse pessoalmente diante de si, para as devidas repreensões e ameaças. Desde então, Meslier silenciou e foi mantido, até o fim de seus dias, no mesmo lugarejo, sem nenhuma promoção, sem nenhum benefício. Desgostoso da subordinação clerical, ele poderia ter-se desligado da Igreja, mas não o fez. 

Sabe-se que até meados do século XX, os longos estudos nos seminários não habilitavam os aspirantes a nenhuma função, a não ser o sacerdócio. Com o intuito de evitar a evasão do clero, a Igreja e o Estado tinham um acordo tácito, para que os seminaristas não tivessem diplomas estatais. Assim, não eram habilitados para nenhum trabalho fora do que lhes era proposto. Se Meslier abandonasse a Igreja, perderia a oportunidade de ajudar seus paroquianos, não teria o que fazer, quiçá nem meio de subsistência. Descrente do texto bíblico desde o início, ele se deu conta de que a única maneira de ajudar seu povo seria justamente manter o cargo e distribuir a arrecadação obtida com os mais necessitados.

Meslier se indignava pelo fato de a Igreja proteger os parasitas que oprimiam e exploravam o povo: soldados, eclesiásticos, juristas, e a nobreza. O rei (que para ele não tinha poder divino, como se acreditava na época), em conluio com o clero, dominava toda a tirania. Abaixo o rei! Os homens deveriam viver sem opressões político-religiosas. Há uma frase muito contundente e extremamente revolucionária de Meslier, muito citada por seus estudiosos:

Eu queria, e esse seria o último de meus desejos, eu queria que o último dos reis fosse estrangulado com as tripas do último padre.

Je voudrais, et ce serait le dernier de mes souhaits, je voudrais que le dernier des rois fût étranglé avec les boyaux du dernier prêtre.

O santo homem consagrou seus dias a ajudar o próximo. O desvelo e a dedicação para com os paroquianos o teriam conduzido a uma possível beatificação ou canonização, não fosse a herança deixada intencionalmente a seu rebanho, que reverteu seu status de “bendito” para “maldito”. Ao morrer, além de deixar seus parcos pertences para os pobres, deixou também, registrado em cartório, algo que estarreceu toda a gente: um testamento filosófico manuscrito dedicado a seus paroquianos, contendo trezentos e sessenta e seis páginas, recopiado manualmente duas vezes. Destarte, deixou 3 exemplares para expressar sua última vontade: a de desvelar um segredo que o violentava cotidianamente, guardado a duras penas por mais de quatro décadas. 

Advertiu, por escrito, dois amigos seus, Voiri (vigário de Guignicourt) e Delavaux (vigário de Boulzicourt) que um dos três exemplares tinha sido entregue ao Cartório de Mézières, e mencionou a possibilidade de darem sumiço em tal texto, devido ao “mau hábito (do poder estabelecido) de impedir que as pessoas humildes se instruam e busquem a verdade”. O manuscrito depositado em cartório, embrulhado num grosso papel cinza, à guisa de envelope, foi endereçado ao Sr. Roux, Procurador e Advogado Oficial de Mézières. Do outro lado do pacote, ele deixou a seguinte mensagem:

Eu vi e reconheci os erros, abusos, vaidades, loucuras e maldades dos homens; eu os odiei e os detestei ; eu não ousei dizer durante minha vida, mas direi pelo menos ao morrer e após minha morte; e é para que o saibam, que eu fiz e escrevi o presente Memorial para que ele possa servir de testemunha de verdade a todos os que o verão e que o lerão, se lhes aprouver.

J'ai vu & reconnu les erreurs, les abus, les vanités, les folies & les méchancetés des hommes ; je les ai haïs & détestés, je ne l'ai osé dire pendant ma vie, mais je le dirai au moins en mourant & après ma mort ; & c'est afin qu'on le sache, que je fais & écris le présent Mémoire, afin qu'il puisse servir de témoignage de vérité à tous ceux qui le verrons & qui le liront si bon leur semble.

Ainda jovem, aos 55 anos de idade, Meslier morreu por inanição, de forma lenta, natural e intencional. Seus biógrafos não mencionam “suicídio”, termo muito forte em se tratando de um representante da Igreja. Dizem apenas que, desgostoso da vida, ele passou a recusar os alimentos necessários à sobrevivência; não bebia nem mesmo uma taça de vinho (o que é de se estranhar, em se tratando de um francês).

O conteúdo do manuscrito poderia ter passado despercebido se não tivesse caído nas mãos de quem pudesse se interessar por ele. Não por acaso, os enciclopedistas tomaram conhecimento do texto. Informado da existência do manuscrito, o filósofo iluminista francês Voltaire se interessou por ele e, 33 anos após a morte de Meslier, fez uma publicação expondo, por meio de excertos, os sentimentos, os pensamentos e as convicções do padre ateu e anticlerical. Como Voltaire era deísta, incluiu algumas atenuantes que, de certa forma, amputaram ou desvirtuaram parte importante da mensagem. Depois de Voltaire, outros estudiosos se debruçaram sobre o Testamento de Meslier, e possibilitaram a divulgação de suas reflexões, seus “sentimentos e pensamentos”, como ele próprio havia intitulado. O longo título, bem abrangente, apresenta uma síntese do que está por vir: 

Memorial dos pensamentos e sentimentos de Jean Meslier, cura de Étrépigny e de Balaives, sobre uma parte dos erros e dos abusos da conduta e do governo dos homens, onde se veem demonstrações claras e evidentes da vaidade e da falsidade de todas as divindades e de todas as religiões do mundo, para ser endereçado a seus paroquianos após sua morte, e para lhes servir de testemunho de verdade, para eles e para todos os seus semelhantes.

Mémoire des pensées et des sentiments de Jean Meslier, curé d’Étrépigny et de Balaives, sur une partie d’erreurs et des abus de la conduite et du gouvernement des hommes où l’on voit des démonstrations claires et évidentes de la vanité et de la fausseté de toutes les divinités et de toutes les réligions du monde, pour être adressé à ses paroissiens après sa mort, et pour leur servir de témoignage de vérité, à eux et à tous leurs semblables.

Numa carta inicial, à guisa de prefácio, ele prepara o espírito do leitor para a revelação de sua verdade. A seu ver, todas as religiões são invenções humanas calcadas na mentira, na ilusão e na impostura. Em tom peremptório, incita os fiéis a abandonar a religião.

Justifica o fato de ter abraçado uma profissão diretamente oposta às suas concepções e esclarece que teria dito tudo em vida, se tivesse podido fazê-lo. Afirma ter sempre desprezado aqueles que se aproveitavam da simplicidade e da cegueira do povo, aqueles que recebiam somas consideráveis na compra de preces; os mesmos que engordavam à custa do suor e da labuta do povo. Fala de seu sofrimento, sendo forçado à pregação de piedosas mentiras que tanto detestava. Afirma ter evitado o máximo possível, dentro de suas funções, mencionar os odiados dogmas. Desprezava seu ministério, particularmente a “supersticiosa missa” e as “ridículas administrações de sacramentos”, sobretudo os que exigiam solenidade para atrair a piedade e a boa-fé de todos. 

Quanto remorso ele demonstra ter carregado devido à credulidade dos fieis! Padre Meslier se penitenciava por ter que passar aos paroquianos concepções que não eram suas e que deveriam ser combatidas. Não acreditava no Deus cristão, nem na imortalidade da alma. A seu ver, os Evangelhos eram repletos de baboseiras e contradições; os milagres eram fraudes; a dita “Divina Providência” era perversa; Jesus teria sido apenas um fanático, que dava conselhos contrários à natureza humana, tais como aspirar à pobreza, recusar os prazeres e se resignar aos sofrimentos.

Termina a nota explicativa dizendo que esteve mil vezes a ponto abrir os olhos dos paroquianos, mas um temor superior às suas forças o conteve e o manteve em silêncio até à morte.


Sua filosofia se alastrou mundo afora de maneira extraordinária. Seu texto é considerado fundador do ateísmo e do anticlericalismo militante na França. Meslier pode ser considerado precursor do Iluminismo francês, da Revolução Francesa, da mudança de concepções religiosas, do Socialismo, do Anarquismo e de outras tantas tendências oriundas do Racionalismo.



*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)