terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

PARENTESCO ATÍPICO

Numa determinada agência bancária no interior do Ceará, havia um cliente pretensamente acima de qualquer suspeição, porém bastante suspeito. Tratava-se de um Monsenhor, sério, honesto e de moral ilibada.

Um belo dia, chegou à cidade o inspetor Juarez, vindo do Sul do país para averiguar a situação do banco. Encontrou uma dívida enorme em nome de uma cooperativa criada pela paróquia e administrada extraoficialmente por um Monsenhor. Segundo o gerente, o religioso se recusava a pagá-la, alegando ser a dívida oriunda da cooperativa. Feita a auditoria, averiguou-se que se tratava de uma cooperativa fantasma. A relação entre banco e cliente andava cada vez mais tensa. De um lado, acirramento da cobrança; de outro, recusa peremptória.

Certo dia, a autoridade religiosa foi convidada a comparecer à agência bancária. Dirigiu-se à gerência, onde se encontravam o gerente e o inspetor. A conversa começou dentro da normalidade, mas, à medida que avançava, os ânimos se alteravam assim como o tom das vozes, cada vez mais audíveis por todo o ambiente. O entrevero foi causado evidentemente pela inadimplência e pela recusa sistemática do religioso em quitar a dívida. O desacordo cada vez mais tenso entre os interlocutores, e o consequente aumento do nível de intensidade em decibéis fizeram com que funcionários e clientes parassem para assistir à discussão. O Monsenhor, vendo-se obrigado a pagar o que devia, comunicou ao inspetor, em voz alta, que ele seria excomungado da Igreja Católica. Muito à vontade, em tom de deboche, o inspetor lhe respondeu, no mesmo tom, que, por sua vez, ele já excomungara o Monsenhor havia muito tempo. Ninguém conseguiu conter o riso. O religioso saiu acabrunhado e envergonhado devido à presença, no recinto, de muitos frequentadores da igreja.

Como havia muitos “abacaxis a descascar”, Juarez acabou alongando a inspeção naquela agência bancária. Casualmente, conheceu uma linda e meiga garota, chamada Juliana. Pediu a autorização dos pais da donzela para iniciar o namoro e, alguns meses depois, pediu solenemente sua mão em casamento. A cerimônia religiosa deveria ser realizada na catedral da cidade, onde o Monsenhor atuava.

Após a enrascada no banco, os fuxicos se multiplicaram assustadoramente. Não se falava em outra coisa, na pequena cidade. Isso complicou a vida dos noivos, cuja cerimônia religiosa foi sistematicamente recusada por todos os padres da cidade, em sinal de apoio ao colega ofendido. A cada dia procuravam um padre diferente. A resposta era sempre negativa. Apelaram então para o Bispo. Conseguiram, por meio dele, a autorização para o matrimônio na capital do Estado, longe de tudo e de todos.

Esse foi o primeiro empecilho a ser transposto pelo noivo. O segundo era de ordem familiar. Franciele, a mãe da noiva, gostava do pretendente, mas tinha certas restrições. Primeiramente pela grande diferença de idade. Juarez era viúvo, pai de seis filhos. Em segundo lugar, porque se tratava um desconhecido, vindo sabe-se lá de onde. Além do mais, pretendia levar a futura esposa para bem longe dali. Lamentava ter tido tanto esmero na educação da menina, para entregá-la em mãos desconhecidas, e, além disso, perdê-la de vista. Juliana era primogênita, criada com muito rigor, em internato de freiras, muito bem preparada para o papel de esposa.

Um dia, a futura sogra chamou o noivo em particular e lhe disse:

─ Veja bem! Eu queria ver minha filha formada e gostaria que ela continuasse a viver aqui junto à família. Você quer levá-la para bem longe, antes da formatura. Apesar de meu contragosto, esse casamento “é de gosto” para Juliana. Caso eu não o aceite, vou ter que ouvir a ladainha já esperada, por parte dela, pelo resto da vida. Façamos o seguinte: eu permito que você leve minha filha, mas com uma condição. Levará também uma de suas irmãs. Não gostaria que ela ficasse sozinha, sem alguém da família para lhe dar apoio.

Estando ambos de acordo, a mãe passou então à fase da preparação do enxoval. No dia da partida, Juliana foi surpreendida por um revólver calibre 38 dentro da mala. Questionada a respeito, a mãe lhe disse simplesmente:

─ É só pra caso de precisão, minha filha.

Juliana nunca precisou usá-lo. Ao chegarem ao destino, ela e a irmã Luciana foram muito bem recebidas pelos filhos de Juarez. Prova disso é que seu filho primogênito acabou se casando com Luciana. Anos mais tarde, um irmão de Juliana foi visitá-la e acabou se engraçando pela filha caçula de Juarez. O visitante conseguiu trabalho no Sul e acabou constituindo família por lá. Mais um casamento entre as duas famílias. O parentesco às vezes se embaralhava para as pessoas de fora. Os colegas e amigos faziam brincadeiras para decifrar a confusa parentela. Quando criança, o filho único de Juarez /Juliana teve dificuldade em entender que um de seus irmãos era também seu tio. O casal viveu em perfeita harmonia até que a morte de Juarez os separou, vinte e um anos depois.

Como diz o provérbio francês, “tout est bien qui finit bien”. A união das duas famílias ficou mais que consagrada, com os três desponsórios. Quanto ao Monsenhor, após o “famoso” episódio na agência bancária, ficou tão vexado junto aos fiéis, que solicitou transferência para outra cidade. Nunca mais foi visto pelos paroquianos.