domingo, 27 de janeiro de 2019

O MELHOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS

De certa forma, “vivemos no melhor dos mundos possíveis” (Liebniz), graças às ciências e à tecnologia. Podemos comunicar-nos por meio de áudio e vídeo em tempo real nos quatro cantos do mundo. Temos todo o conforto doméstico disponível nos dias de hoje. Muitos outros tipos de conforto surgirão nas próximas décadas. Nossos descendentes não conseguirão imaginar o way of life de seus ancestrais, sem carro, sem estradas de rodagem, sem avião, sem energia elétrica, sem televisão, sem videogames, sem computador, sem celular...

Os jovens nem imaginam que os primeiros computadores eram tão grandes que os usuários trabalhavam dentro deles. O primeiro computador, em 1946, tinha 180 m2 de área construída, pesava 30 toneladas e possuía apenas 200 bits de memória RAM. Thomas Edson criou a primeira a lâmpada em 1879. Karl Benz criou o primeiro automóvel moderno em 1886. Santos Dumont fez o primeiro voo, com decolagem, permanência no ar e pouso, em 1906. Ernst Alexanderson conseguiu a primeira transmissão de TV, muito rudimentar, em 1928.

Vivemos no melhor dos mundos possíveis”, mas basta que um dos segmentos de nossa vida gregária entre em disfunção, para que haja transtorno e até mesmo comoção coletiva. Tomemos como exemplo o recente caso da greve dos caminhoneiros. Inicialmente, tratava-se apenas de uma notícia a mais nos jornais impressos, televisivos e virtuais. A vida continuava seu curso normal. Alguns dias após o início da greve, devido ao desabastecimento de combustíveis, todos nós fomos diretamente afetados. Ônibus, coletivos e táxis foram se escasseando, até a parada completa. O mesmo aconteceu com os carros particulares. Até então, não havia grandes problemas. Quem não podia se dirigir ao trabalho, por falta de condução, aproveitava as férias compulsórias, muito bem-vindas, para ver televisão, ouvir música ou tirar um cochilo no meio da tarde.

No entanto, o bem-estar do feriadão remunerado durou pouco. Nos hospitais, atendimento precário por falta de pessoal. Supermercados e padarias fechados, por falta de atendentes. As escolas fecharam suas portas, assim como quase todo o comércio. Caso uma mercearia ou padaria arriscasse funcionar precariamente, era invadida por uma horda de compradores vorazes, no afã de adquirir tudo que encontrassem pela frente, capazes de ir às últimas consequências pela disputa de algum produto escasso. O temor da permanência da crise despertou nos cidadãos o instinto da disputa pela sobrevivência. Bastou a paralisação de um segmento social para causar colapso, temor e desolação.

Um outro exemplo menos perturbador, mas também com grande poder de transtorno é a falta prolongada de energia elétrica. Inicialmente, pessoas distraídas se veem em situações hílares no dia a dia, pela falta de hábito de viver sem eletricidade. Pude experimentar uma situação deveras cômica. Sem energia, tive que parar o trabalho no computador, porque a bateria havia expirado. Sem poder trabalhar, resolvi ver televisão. Impossível. Enquanto esperava a volta da energia, decidi tomar uma ducha. Água gelada. Deixei o banho para mais tarde. Decidi então ir para a cozinha, preparar alguns quitutes no fogão a gás. Felizmente não dispunha de fogão elétrico. Porém eu havia me esquecido de que o acendimento do fogão era automático. Só funcionava com energia elétrica. Há tempos não tocava em um palito de fósforos, coisa de museu. Pensei em telefonar para a Companhia de Força e Luz, mas os telefones tampouco funcionavam sem energia. Como não havia nada a fazer, resolvi sair para passear no parque com os netos. Fui até à portaria do prédio onde moravam. Elevador parado. Como subir mais de vinte andares? Passeio adiado.

Inicialmente, deparamos apenas com percalços domésticos de pequena grandeza, como esses, mas, caso o desabastecimento persistisse, a situação se agravaria. Todos os alimentos perecíveis que necessitam de resfriamento ou congelamento deveriam ser descartados. As noites sem iluminação pública proporcionariam ambiente propício para toda sorte de malfeitores. Quanto mais tempo sem energia, maiores seriam os problemas a serem enfrentados pela sociedade e pelo poder público.

Em tempos de paz, mais cedo ou mais tarde, tudo se resolve a contento. Entretanto, em períodos bélicos, nós, citadinos, somos presas extremamente fáceis de encurralar e abater. Basta que o inimigo faça o cerco à cidade, corte os meios de comunicação e a energia elétrica e envenene a água. Não mais que isso. Êxito garantido, sem violência, sem sangue e sem bombas. A morte coletiva seria gradual pela escassez de víveres, e natural, por inanição. Vitória simples, fácil e pouco dispendiosa. Viveríamos no pior dos mundos possíveis, um mundo extremamente vulnerável.

Esta frase bastante conhecida, “Vivemos no melhor dos mundos possíveis”, é de um alemão, filósofo, cientista, matemático e diplomata, Gottfrield Leibniz.(1646/1716).

Segundo ele, sendo Deus um ser sumamente bom e onisciente, só poderia colocar os humanos no melhor dos mundos possíveis.

O filósofo iluminista francês, Voltaire (1694/1778) vai de encontro à concepção aristocrata de Leibniz. Em sua obra Candide ou l’optimisme, ele faz uma sátira veemente ao otimismo leibniziano. O nome do protagonista, Cândido, já indica a ingenuidade de um jovem, de déu em déu, à mercê de um mundo perverso. Ao longo dos capítulos, há uma desastrosa sequência de fatos na vida de Cândido, com cenários de guerra, catástrofes naturais, violência política, canibalismo, banditismo e corrupção.

É mister frisar que Voltaire defendia a liberdade de expressão e criticava constantemente a Inquisição, a intolerância, o fanatismo religioso, a escravidão, a superstição... (iluminismo versus obscurantismo). Ele era também contra a concepção leibniziana de que “tudo possui uma razão ou princípio fundamental para acontecer”.

Por meio de seu ingênuo e simpático personagem, Candide, Voltaire tenta demonstrar que, se este fosse o melhor dos mundos, não gostaríamos de conhecer o pior. A seu ver, como não podemos mudar o mundo de forma imediata, que cada um cuide, pelo menos, de seu pequeno jardim. Um de seus lemas era: “Il faut cultiver notre jardin”.

domingo, 20 de janeiro de 2019

O LUXO E O LAXO

Durante minha última temporada na Europa, recebi um inusitado convite de minha amiga parisiense, Monique: visitar sua tia/madrinha, de 96 anos, em um asilo ao sul da França, em Toulouse, a 700 km de Paris. Tomamos um avião em Orly, juntamente com meu marido. Uma boa surpresa nos aguardava em Toulouse. Em vez de reservar hotel, ela havia reservado duas suítes para hóspedes, no próprio asilo onde vive sua tia. Para mim, era um universo totalmente desconhecido. Estava ansiosa para conhecer a vida confinada dos anciões. Sempre gostei de conversar com idosos. Eles têm muito a dizer. Estava certa de que seria uma experiência muito enriquecedora.

Um táxi nos deixou diante de uma grande construção, com amplos jardins, em cuja placa se lia “Résidence Crampel”. O termo “asilo”, com carga semântica um tanto negativa, foi trocado por outro bem mais leve e adequado: “Residência”. Gostei do eufemismo. Poderia ser “Residência de idosos”, mas preferiram algo mais neutro, o sobrenome Crampel. As acomodações eram confortáveis, com climatização, e ambiente acolhedor.



No primeiro dia, fomos convidados por Lucette, nossa anfitriã nonagenária, para um almoço em petit comité em uma saleta aconchegante, onde havia apenas uma mesa redonda, muito bem decorada, contígua ao restaurante. Para ter acesso a esse local, tivemos que atravessar o restaurante. Foi uma cena deveras impactante para mim. O recinto estava repleto de comensais em cadeira de rodas, andadores e muletas. Os idosos também pareciam surpresos com a presença de estranhos ao ninho. Lucette nos apresentou seus companheiros cotidianos de refeição e, logo após, nos conduziu à mesa preparada especialmente par nós.

Nossa anfitriã mostrou-se muito simpática e sorridente. Apesar da idade, andava ereta, amparada


discretamente por uma bengala. Era lúcida e interagia normalmente, sem problemas auditivos, visuais e sem sombras de caduquice. No entanto, minha maior expectativa foi frustrante. Eu esperava uma ótima interlocução com Lucette, mas apesar de alegre e solícita, era pouco falante. Sobretudo, nunca falava de si. Respondia às perguntas gentilmente, por monossílabos, com nítida parcimônia lexical. Soube que ela havia sido atriz de cinema e de teatro, na juventude. Isso aguçou minha curiosidade. Lamentavelmente, o que consegui saber de sua pregressa vida de artista foi por meio da internet, onde há poucas informações a seu respeito.

Certa noite fomos convidados por seu filho, que é padre, para um jantar em restaurante gastronômico. Ao tomarmos assento, ele perguntou à mãe, que tipo de suco ela tomaria, ao que ela respondeu:

tomar suco? Quero um bom vinho.

Eu já havia reparado, em nossas andanças, que ela sempre pedia vinho ou cerveja. Nossa intenção era dar-lhe férias do cativeiro. Digo cativeiro porque, apesar da aparência de hotel 4 estrelas, todas as portas de saída permaneciam trancadas noite e dia, para que não escapasse nenhum idoso atacado pelo mal de Alzheimer. Programamos diversos passeios na tentativa de tornar sua vida menos anódina. Durante cinco dias, flanamos pelas ruas da cidade e visitamos os principais monumentos: Igrejas lindíssimas, como a de Taur, a de São Sérnin e a dos Jacobinos. Visitamos o Claustro dos Agostinianos, tomamos cerveja na belíssima Praça do Capitólio, passeamos de barco no Canal do Midi, enfim, proporcionamos bons momentos à nossa nova amiga. Ela se mostrava sempre bem-disposta e bem-humorada.

Enganamo-nos ao pensar que a vida no asilo Crampel é monótona e sem atrativos. Há intensa programação cultural: palestras, shows, peças de teatro, conferências, festas temáticas, danças e outros entretenimentos. Há também salas aparelhadas para diversos tipos de atividades físicas. Uma infinidade de possibilidades de passatempo é oferecida, com acompanhamento personalizado. As atividades são adaptadas às condições físicas e mentais de cada “residente”. Há, por exemplo, arte terapia, musicoterapia, kinesioterapia, jardinagem, atividades manuais, jogos de sociedade, oficinas de culinária, de expressão escrita, de cinema, de quizz... Soube que a Résidence conta com uma equipe pluridisciplinar, composta de médicos, paramédicos, enfermeiros, psicólogos e auxiliares especializados. Apesar da intensa programação social à disposição de todos, a privacidade de cada um é preservada.

Quando lá estávamos, fiz questão de assistir à uma apresentação de músicas latinas por uma banda francesa, dentro do salão nobre. Uma senhora, ao meu lado, diferentemente da maioria, mostrava-se muito alegre e animada. Seus olhinhos brilhavam de entusiasmo. Dançava, o tempo todo, movimentando o tronco, com os braços e a cabeça. As pernas haviam perdido sua função, havia bastante tempo. Ela me disse, com ares melancólicos, que fora dançarina, na juventude.

Enquanto os componentes da banda tocavam, cantavam e dançavam, via-se na plateia um clima de apatia quase total. Alguns dormitavam, de boca aberta, outros olhavam para o vazio. A maioria parecia entediar-se, apesar dos esforços do animador. Poucos interagiam.

Tal cena me fez refletir sobre as limitações físicas e as agruras impostas pela ditadura da velhice. Os idosos dispõem apenas de duas opções, nenhuma delas promissora: passar por todas as etapas da decrepitude ou partir para o além, antes disso. Nenhuma das duas possibilidades é bem-vinda. Ninguém quer sofrer, nem partir para a grande incógnita. A grande maioria prefere tolerar as dores, os achaques da idade e postergar a indesejável visita da dama da foice. Ninguém, com raras exceções, gostaria de acompanhá-la por caminhos ignotos. O desconhecido muitas vezes causa temor. Não se sabe o que há do outro lado, ou melhor, se há algo do outro lado.


Na Résidence Crampel, há internos que acrescentam boa dose de depressão ao peso da idade. Alguns preferem não sair de seus apartamentos para refeições, nem para atividades culturais. Tampouco têm vontade de fazer novas amizades. Dependendo do grau de decrepitude, eles têm motivos suficientes para isso. Fisicamente, sentem-se cada vez piores sem perspectiva de futuro, nem de efetivas melhoras, com dores generalizadas, dificuldade de locomoção, dependência de outrem para as necessidades básicas, e uma série de agruras próprias da idade. A saúde degringola-se a passos largos.

A meu ver, o que mais agrava a situação é a falta de objetivos em curto, médio e longo prazos. No dia a dia, os objetivos do autoenclausurados são prosaicos: aguardar os melhores momentos (os das refeições); ler um bom livro, para aqueles que ainda dispõem de visão; ouvir música, caso a audição ainda vigore ou ver televisão, caso disponham de ambos os sentidos em boas condições. Para alguns, existe a expectativa da visita de parentes, mas estes, envolvidos na lufa-lufa da era digital raramente se lembram de visitá-los. Quando se dignam fazer uma visitinha, que seja rápida, sem tempo para a devida atenção, nem para um dedo de prosa. Os carinhos, cada vez mais raros, tornam-se inexpressivos; não apenas carinhos físicos. Os idosos gostam de se sentir amados, e, de alguma forma, úteis. Sem objetivos, nem perspectivas, o que lhes resta?

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

CORONEL CORIOLANDO

Por: Jô Drumond
No início do século XX, o coronel Coriolando, possuidor de grande latifúndio no interior de Minas, foi alertado, por meio de um bilhete anônimo, que deveria “dar mais fé” no dia a dia de sua mulher. Não entendeu o que o remetente quis dizer, mas, por via das dúvidas, “melhor seria prevenir que remediar”. Ofereceu boa quantia em dinheiro a um de seus colonos, para que não perdesse a patroa de vista e para que lhe relatasse, ao fim de cada dia, tudo que sucedesse em seus domínios.

A vida conjugal do coronel não era lá essas coisas. Não passava de casamento de fachada, coisa pra inglês ver, como se diz no interior. Abadiinha, sua esposa, se sentia não mais que uma peça de engrenagem, um objeto doméstico ou um joguete em mãos alheias. Não recebia atenção nem carinho por parte de ninguém. Aliás, tudo acontecia à sua revelia, como se ela não existisse. De vez em quando, pensava em fugir, em desaparecer, até mesmo em morrer. Sentia-se absolutamente sozinha. O diálogo entre ela e o marido era inexistente, havia tempos. Sua única escapadela da opressão cotidiana era a caminhada matinal. No contato direto com a natureza, sentia-se livre. Gostava de caminhar pelos pastos, de sentir cheiro de mato, de apreciar o cromatismo das gotículas de orvalho sob raios solares, de observar o deslocamento de pequenos animais silvestres em busca de alimento, de sentir o toque do sol na pele e o vento a desguedelhar seus cabelos.

Abadia fora enviada para um internato de freiras, ainda criança. De lá saíra para o desponsório. Tendo convivido apenas com freiras e com internas, nunca tivera contato com o sexo masculino até o dia das bodas, arranjadas pelos pais.  O noivo escolhido tinha mais do dobro de sua idade. Era circunspecto e um tanto rude.


Em uma de suas andanças solitárias, distraída a observar o voo de uma grande borboleta azul, assustou-se com o rosnado de um cachorro do mato, prestes a atacá-la. Por sorte, foi protegida por um cavaleiro andante que, surgido do nada, se apresentou como filho de Natanael, fazendeiro vizinho. Ela nunca o tinha visto. Tratava-se de um rapaz esguio, claro, de cabelos negros, de porte altivo, extremamente cortês. Pediu-lhe a permissão para acompanhá-la até as proximidades da sede da fazenda, com o intuito de protegê-la contra qualquer perigo.


Nas caminhadas matutinas, de vez em quando, cruzava com tal rapaz. Às vezes ele parava para uma breve prosa. Identificou-se como Manoel, futuro bacharel em Direito. Estudava na capital e estava de férias, na fazenda dos pais. Acrescentou que seu pai sempre havia sonhado em ter em casa um médico, um advogado e um padre. Arrematou, em tom jocoso, que o que seu pai realmente queria era um filho para cuidar de suas tretas jurídicas; outro para cuidar de suas perrenguices; e um terceiro para lhe assegurar um lugarzinho no céu.

O jovem era alegre, simpático e despretensioso. Com todo o respeito que lhe era peculiar passou a acompanhá-la eventualmente em parte das caminhadas. Naqueles rincões, ele se sentia tão solitário quanto ela. Não tinha com quem prosear. Seu pai andava sempre muito ocupado. Sua mãe, atarantada com as lidas domésticas. Os agregados (colonos, meeiros, vaqueiros, agricultores, peões) em geral não passavam de um bando de semianalfabetos desinformados, viventes de um universo completamente diverso do seu. Felizmente havia Abadia, que destoava do entorno: senhorinha fina, educada, leitora voraz, conhecedora dos clássicos da Literatura e da boa Música. A interlocução entre eles era salutar para ambas as partes. Um agradável bate-papo entre dois solitários, um compartilhamento de afinidades intelectuais e artísticas, em ambiente inóspito para esse tipo de prosa. Para a tristeza de ambos, em breve as férias chegariam ao fim. Ele voltaria a seus estudos e ela retomaria seu modorrento cotidiano.

Sem que nem por quê, Manoel desapareceu da paisagem campesina, sem se despedir de Abadia. Talvez ele tivesse adiantado o dia da partida, por algum motivo, sem tempo para um adeus. Só podia sem isso. Ela se apegou a essa possibilidade até o dia em que soube que a família do jovem estava desesperada, sem saber de seu paradeiro. Pelo que constava, antes de desaparecer, ele saíra para fazer o passeio matinal nas cercanias da fazenda.

Natanael, homem de muitas posses, contratou detetives para tentar desvendar o desaparecimento do filho. Soube dos encontros fortuitos dele com Abadia.  Soube do malfadado bilhete anônimo e soube também que, naquela época, dois homens desconhecidos haviam sido contratados para trabalhar na fazenda do coronel. Nada lhe tirava da cabeça que eles estariam envolvidos naquele mistério. No entanto, não havia prova alguma. Levantar falso testemunho ou caluniar o mandachuva ou algum de seus agregados, seria decretar sua própria sentença de morte. Fazer o quê? Coriolando era o “mandão”, uma espécie de senhor feudal anacrônico, contra quem nada se podia fazer.

Natanael não se deu por vencido. Certo dia, durante o velório de um antigo agregado do coronel, que já havia trabalhado em sua fazenda, ele se aproximou dos dois suspeitos, que picavam fumo para a preparação do pito de palha. Tocou no assunto do desaparecimento do filho, com um conhecido, em voz alta e bom tom, para que os dois ouvissem. Disse que os cabras que possivelmente haviam executado seu filho, a mando de alguém, deviam estar fumando fumo forte. Ao ouvir isso um dos dois levou um susto e deixou cair o tabaco. O outro também teve um sobressalto. O pai de Manoel percebeu a reação de ambos, mas mineiramente, fingiu indiferença. Proseou um pouco mais com os conhecidos, e saiu à francesa, sem ser notado por viva alma. Foi diretamente ao arraial mais próximo e voltou acompanhado de quatro policiais armados, portando dois pares de algemas.

Os suspeitos acabaram presos. Confessaram o crime, relataram detalhes da execução e mostraram onde haviam enterrado o corpo e as armas.

Segundo o relato dos executores, o estudante caíra em emboscada, em trilha estreita de uma capoeira, quando voltava de um desses passeios. Ambos descarregaram sobre ele todo seu estoque de sadismo, com requintes de judiação. Após muita crueldade, maldade, perversidade, desumanidade e mais meia dúzia de “...ades” do mesmo campo semântico, obrigaram-no a cavar a própria sepultura. Ainda insatisfeitos, furaram-lhe os olhos e sangraram-no como a um animal no matadouro. Apesar de terem confessado o crime, os criminosos se recusavam a dizer quem havia sido o mandante. Afirmavam e reafirmavam que não havia mandante algum. Antes que um deles resolvesse soltar a língua, ambos amanheceram misteriosamente mortos, na cela.

Na mente de Natanael, o quebra-cabeça se encaixava. Após ter sido informado dos eventuais encontros de Manoel com Abadia, o coronel poderia ter contratado os jagunços para dar cabo do invasor de seus domínios. Como pode um ser que se diz humano ser capaz de tamanha barbárie contra seu semelhante, perguntava-se sem cessar?

Passados o choque e o escândalo iniciais, a poeira foi baixando. A memória do povo fez questão de se apagar o quanto antes, devido ao temor reinante nas redondezas. Ninguém tocava no assunto. Por conta da ineficiência policial e do coronelismo dominante, tudo tendia a ficar como antes. Ninguém viu nada, ninguém ouviu nada, ninguém disse nada, como os três macaquinhos sábios. E tudo continuou na mesma, como se nada houvesse acontecido. Os dias amanheciam e anoiteciam, impreterivelmente, as quatro estações respeitavam sua vez, ciclicamente, e o mundo continuava a girar em torno de si e do Sol, indiferente a tudo que se passava em sua superfície, per omnia saecula saeculorum, Amen.