sexta-feira, 29 de novembro de 2019

O SOVERTIDO


Vicentim, cabra honesto e trabalhador, morava com a família na zona rural mineira, próximo a um arraial que nem constava nos mapas. Trabalhava de sol a sol, labutando na agricultura para garantir o sustento da família. Em meados do século XX, não havia eletrificação rural. As fazendas operavam sem nenhum tipo de maquinário. Por conseguinte, careciam de braços fortes e numerosos para a lida diária. Andava cansado de briquitar na lavoura. Não podia contar com a ajuda dos filhos, ainda pequenos. Em épocas de plantio e de colheita, via-se na contingência de contratar mão de obra temporária, o que onerava muito seu ganha-pão.

Soube, por meio de um compadre, que o “negócio da China”, naquele momento, seria a pecuária, devido à alta vertiginosa do preço do gado. Seria investimento garantido e lucro certo. Vicentim vislumbrou a possibilidade de fazer um bom negócio, mas não dispunha de fundos, para começar. Zanzou por algum tempo, de fazenda em fazenda, levantando empréstimos com parentes e conhecidos. Acabou comprando uma pequena boiada, em detrimento da lavoura, relegada a segundo plano, ou a plano algum.

De vez em quando, Vicentim dava-se o direito ao maior de seus deleites: passar horas a fio, à beira do rio, em silêncio, perscrutando os segredos das funduras, à espera de que a isca atraísse peixes graúdos. Eram horas de tranquilidade e de relaxamento total. Esquecia-se das mazelas domésticas, das dificuldades financeiras, das encrencas com os vaqueiros e dos problemas pendentes, que não eram poucos.

O padrão de vida da família melhorava a passos largos, com a pecuária. Os preços do gado atingiram cifras até então inimagináveis. Era o melhor dos mundos possíveis, até que veio a peste e, com ela, a desolação. Grande parte do rebanho teve que ser sacrificada. Mais sacrificados ainda ficaram os pecuaristas, com sérios problemas de caixa. Vicentim encontrava-se encalacrado com seus credores, mas não deixava transparecer sua aflição. Era homem habitualmente sisudo e calado. Sua mulher Don’Ana, ao contrário, era alegre e falante. Envolvida nas lidas domésticas e na criação dos rebentos, dispunha de pouco tempo para elucubrações, mas, mesmo assim, percebeu que seu marido andava cada vez mais circunspecto. Evitava incomodá-lo com questionamentos. Certamente tinha problemas que não lhe diziam respeito. Era esperto e inteligente o bastante para se sair bem em qualquer empreitada.

Certo dia, Vicentim pegou seus apetrechos de pescaria e se dirigiu ao rio, como de costume. Dessa vez, seu retorno estava demorando por demais. Já se fazia tarde. A noite se avizinhava. Don’Ana pediu aos dois filhos maiores que fossem chamá-lo, à beira do rio. Não o encontraram, talvez devido ao lusco-fusco do fim do dia. Don’Ana não se preocupou. Podia ser que tivesse ido tomar umas biritas na venda do Getulão, com algum pescador amigo. Serviu a janta às crianças, ouviu mais um capítulo da radionovela preferida, em um rádio a pilha e, entre dezenove e vinte horas, ouviu o noticiário radiofônico A Voz do Brasil. Vicentim não perdia nunca tal emissão. Sentava-se ao lado do rádio, expulsava para longe as crianças ruidosas e ficava atento a tudo que se passava no País. Naquele dia, ele não chegou a tempo. Don’Ana, sempre encarregada de engambelar as crianças durante a transmissão, para deixá-lo em paz, sentiu falta da rotina e começou a cismar. Teria ele bebido em excesso e se esquecido do noticiário? Seria bem possível. Tratou de colocar os meninos nas respectivas camas, rezou o terço, o rosário, a novena… e nada de Vicentim. Encompridou a reza, apelando para o santo protetor dos pescadores, São Pedro. Nada de Vicentim. Manteria a lamparina acesa até sua chegada. Acabou perdendo o sono. Pegou a lamparina, foi até à despensa, onde ficavam as latas de chimanguinho, broas e pães de queijo. Passou um cafezinho no coador de flanela, fartou-se de quitandas e esperou o pachorrento passar do tempo. Não tinha noção das horas.

O único relógio existente na casa, herança de família, não funcionava, havia anos. A noite parecia não ter fim. Don’Ana acabou cochilando, assentada na banqueta da cozinha, até o amanhecer. Antes que as crianças acordassem, foi até o rio, na esperança de encontrar algum traço do desaparecido. Seus pertences estavam sobre um toco, a rede, a vara de pescar e a caixa de iscas, no chão. Teria ele se afogado? Pouco provável. Sabia nadar. Às vezes, redemoinhos formados dentro d’água sugavam tudo que se encontrasse à superfície. Se ele tivesse sido engolido pelo “redemunho”, não haveria volta. Don’Ana se assentou no toco e começou a matutar: caso ele tivesse resolvido nadar, teria deixado suas roupas à margem. Caso tivesse usado a canoa para pescar, estaria vestido. Isso explicaria a ausência das roupas. A canoa poderia ter sido sugada. No entanto, nesse caso, não teria deixado a rede e a vara e as iscas à margem. Seguindo rio abaixo, encontrou a canoa, presa a um tronco de árvore. Dali foi diretamente ao bar do Getulão, para obter notícias. Todos ainda dormiam. Ousou bater à porta. Foi atendida com um grande bocejo e espreguiçamento, pelo dono da cachaçaria. Vicentim não tinha dado as caras por lá, na noite anterior. Ana voltou para casa, serviu o desjejum aos pimpolhos, pediu a um vaqueiro que ficasse com eles, arreou seu cavalo baio e saiu a campear o marido sumido. Cavalgou de fazenda em fazenda, tentando obter notícias. Esticou algumas léguas até o arraial, sem obter êxito. Marido sovertido. Quem sabe abduzido?

Don’Ana pensou então em outra possibilidade. Poderia ter sido atacado por uma onça. Organizou um mutirão de cavaleiros para vasculhar toda a área, em busca de algum sinal. Caso ele tivesse sido atacado, haveriam de encontrar pedaços de vestimentas ou de corpo, no matagal. A não ser que a onça o tivesse arrastado até seu esconderijo, para alimentar os filhotes. Era por demais doloroso divagar sinistramente em busca de possibilidades cada vez mais tenebrosas. Todos os esforços foram inúteis. As línguas de trapo insinuavam outros caminhos. Talvez ele tivesse se engraçado por uma lourona e se mandado com ela para a cidade ou para os quintos dos infernos. Houve até mesmo quem insinuasse sua partida com outro cabra macho, após ter resolvido, nunca se sabe, “sair do armário”. Don’Ana ouvia os disparates, desolada, sem saber o que fazer. Não entendia nada de negócios. Pediu aos vaqueiros que continuassem a ordenha diária, chamada, por ela de “tiração do leite”, que mantivessem a “fazeção” dos queijos, no horário de sempre, e a apartação dos bezerros, no final do dia. Pediu a um cunhado que assumisse a administração dos peões e do que se fizesse necessário, até a volta do marido.

Com o tempo, as coisas foram se ajeitando, os credores foram se acalmando, as crianças crescendo… e nem sinal de Vicentim. Teria fugido? Isso nunca! Não passaria tanto tempo sem dar notícias, nem sem ver os filhos. Era homem honesto, pai extremoso e marido carinhoso. Com certeza estava morto. Aguardariam os cinco anos de praxe, para oficializar o desaparecimento.

Don’Ana não era de se jogar fora. Mulher sacudida, de fibra, muito bem-apessoada. Alguns pretendentes foram se aproximando, discretamente, com a desculpa de obter notícias ou de oferecer seus préstimos. Ela os recebia com a devida cortesia, mas em momento algum a substituição do marido lhe passava pela cabeça. Caso alguém insistisse, ela faria como a Penélope da história que ouvira contar. Enganaria a todos cosendo e descosendo desculpas esfarrapadas até que o desaparecido aparecesse.

Quinze anos se passaram sem notícias. Certo dia, um compadre do casal teve que ir à capital. Ao chegar à rodoviária, resolveu engraxar as botinas. Havia cinco grandes cadeiras de engraxate, alinhadas. Ocupou uma delas para a devida prestação do serviço. Foi atendido por um rapaz moreno e falante. O engraxate da última cadeira, na extremidade oposta, era muito parecido com Vicentim, mas, diferentemente dele, era bem mais magro, usava cabelos longos, barba e bigodes. Assuntou com o engraxate tagarela e soube que o colega em questão era originário da zona rural e se chamava Vicente. Caso fosse o compadre, escondido atrás da barba e do bigode, evidentemente não queria ser identificado. Antes de sair, aproximou-se discretamente para ouvir a voz do suspeito. Era por demais parecida com a de Vicentim, para não dizer a mesma. Nada disse. Nada fez. Voltou para o interior e expôs o ocorrido aos irmãos do sumido. Por ora, não diriam nada à Don’Ana, nem a ninguém. Iriam à capital, para se certificar, e, se fosse o caso, trazer de volta o fujão, mesmo que fosse a laço. Dito e feito. Três deles embarcaram para a capital e apareceram de surpresa, na rodoviária. Um deles assentou-se na quinta cadeira, diante do suposto irmão desaparecido. Ao vê-lo, Vicente desviou o olhar. Começou a engraxar cabisbaixo, sem mirar o cliente. Os outros dois ficaram de pé, ao lado, a observar. Nada disseram. Vicente não sabia o que fazer. Não tinha certeza de ter sido identificado. Resolveu manter a farsa. Ao terminar, seu irmão lhe disse que não tinha dinheiro trocado e o convidou a acompanhá-lo até à lanchonete, para trocar uma nota de cinquenta reais. Vicente ainda continuava mantendo a esperança de não ter sido reconhecido. Ao se aproximarem da lanchonete, os três o cercaram e acabaram com a farsa. Queriam uma justificativa plausível para tamanho disparate. Como abandonar os pais, a esposa, os filhos, os irmãos, os amigos, uma vida, sem mais nem menos. Vicente se pôs a tremer e, logo após, a chorar. Disse que tinha sido obrigado fugir por estar sendo ameaçado de morte por parte de Miguelão, a quem devia muito dinheiro. O negócio do gado inicialmente ia bem, até a chegada da peste. Com a enorme quantidade de baixas no rebanho, não havia meios de liquidar as dívidas. Teve que fugir para não morrer.

Os quatro se dirigiram a um lugar mais reservado, para prosear à vontade. Primeiramente fizeram o levantamento dos créditos e dos credores. O irmão mais velho sugeriu que a família pagasse as dívidas menores. Quanto à mais vultosa, causadora do transtorno, já havia sido liquidada naturalmente. Com a morte de Miguelão, seus familiares haviam vendido tudo e se mudado para outro Estado. Como dizia um jogador de futebol, “para cada problemática, uma solucionática”.

Outro problema se interpunha. Como justificar sua prolongada ausência? Como teria ele saído da beira do rio e ido parar na capital? Como teria vivido todo esse tempo? Por que não havia feito contato com a família? Confabularam e combinaram então de tapar o sol com a peneira. Esses e demais questionamentos que surgissem seriam computados na conta de uma amnésia temporária. O mistério permaneceria. Ele não se lembraria de nada, até segunda ordem. Quem sabe, um dia, encontrasse alguma desculpa convincente ou tivesse hombridade de recobrar a memória? A farsa deveria ser mantida até mesmo para seus pais, que não mereciam tal desgosto, assim como para Don’Ana, que havia “penelopado”, durante quinze anos, à espera de seu Ulisses.

Mais uma questão a ser resolvida. Como seria seu retorno ao lar? Não poderia aparecer subitamente, do nada. Os três irmãos decidiram preparar o espírito de toda a família e organizar uma festa de recepção, com data e hora marcada, para que Vicentim fosse recebido em grande estilo e, sobretudo, sem perguntas.
Jô Drumond   –  26/outubro/2019