sexta-feira, 31 de março de 2017

XXII SEMANA ROSEANA EM CORDISBURGO

Jô Drumond

Este relato abaixo, escrito há sete anos, é um simples registro de minha primeira experiência na Semana Literária Roseana, em Cordisburgo. Trata-se de uma semana cultural, com palestras, mesas-redondas, debates, minicursos, leitura dramática, representações teatrais, exposições e diversos eventos, todos eles dedicados à obra do ilustre filho da terra, Guimarães Rosa. Essa imersão no universo roseano foi, para mim, uma experiência fascinante.

RELATO

Em 2010, voei do litoral para as alterosas, para participar, pela primeira vez, da semana Roseana, já em sua décima segunda edição, em Cordisburgo. O foco do evento é sempre a obra do escritor Guimarães Rosa. Do aeroporto de Confins, dirigi-me diretamente à rodoviária de Belo Horizonte. No guichê, pedi passagem de ida e volta, mas o atendente me disse que só dispunha da de ida. A de volta poderia ser adquirida dentro do ônibus, após o embarque. Disse-lhe então que fazia questão de comprá-la tão logo chegasse à cidade, para garantir o retorno, no final do evento.

▬ Impossível, minha senhora  ▬  respondeu-me ▬ lá não tem rodoviária.

Só aí me dei conta da pequenez da cidade. Tanto melhor! É nas pequenas cidades que se fazem grandes amizades.

Estava embarcando sozinha, sem conhecer viva alma na região, mas era como se estivesse me dirigindo a um encontro familiar. Isso porque faço parte da grande “família Roseana”, composta de leitores, pesquisadores, professores e aficionados à obra do renomado autor.

Antes de embarcar, telefonei para a Pousada das Flores, para confirmação de reserva.  Foi-me sugerido que pedisse ao motorista para me deixar à porta da pousada. Esse privilégio remeteu-me aos velhos tempos vividos no interior. Na rodoviária de BH, foi-me dito que haveria baldeação na cidade de Sete Lagoas. Estranhei o fato de ter que fazer baldeação num percurso de apenas 120 km. Embarquei pela Viação Pássaro Verde. No meio do caminho, fui transferida para a Viação Expresso Setelagoano. 

Cheguei em Cordisburgo na segunda-feira, segundo dia da Semana Roseana. No Domingo, havia tido apenas uma missa e a cerimônia de abertura. Encantei-me com os ares interioranos da cidade: ruas pacatas, silenciosas e vazias; crianças brincando nas calçadas; cachorros soltos por todo lado; algumas carroças, puxadas a cavalo; poucos carros...Tudo isso me remetia à Guimarânia (terra dos Guimarães), onde meus pais passaram grande parte de suas vidas e escolheram para derradeira e eterna morada. Sou descendente dos Guimarães, pelo lado materno, nascida e criada no sertão mineiro, assim como Rosa. Daí minha grande paixão pelo linguajar e pelo cenário de seus contos.

Uma fresca brisa de inverno brincava nos galhos das árvores, entre os quais uma infinidade de faixas remetia o visitante ao grande evento anual. Em cada faixa, lia-se um pensamento do escritor, acompanhado do nome do estabelecimento que havia patrocinado sua confecção. Parece-me que a grande maioria dos comerciantes aderiu à ideia, pois o número de faixas era surpreendente. As frases, todas elas minhas velhas conhecidas, haviam sido muito bem selecionadas: frases sentenciosas (que expressam verdades oriundas da secular experiência do povo); outras de cunho filosófico, e algumas de temática sertaneja. Vejamos algumas delas.

Frases sentenciosas:

“Quem desconfia fica sábio”
“Não se deve parar no meio da tristeza”
“Mestre não é aquele que sempre ensina, mas quem de repente aprende”
“Para as coisas que há de pior, a gente não alcança fechar as portas”
“Carece de ter coragem”
“Quem castiga cumpre também”
“Choca mal quem sai do ninho”
“Felicidade se acha é só em horinhas de descuido”
“Infelicidade é questão de prefixo”
“Mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir”
 “Cavalo que ama o dono até respira do mesmo jeito”
“Antes trabalhar no domingo do que furtar na segunda”
“Mulher só fica velha é da cintura para cima”
“Só aos poucos é que o escuro fica claro”

Filosofemas:

“Tudo é e não é”
“Vida-coisa que o tempo remenda, depois rasga”
“Viver é muito perigoso”
“A vida é um vago variado”
“A vida não dá demora em nada”
“As pessoas não estão sempre iguais; ainda não foram terminadas”
“Nonada, o diabo não há! O que existe é o homem humano. Travessia!”

Temática  sertaneja:

“O sertão é dentro da gente”
“O sertão é uma espera enorme”
“Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos...”
 “O sertão está em toda parte”
“O sertão é do tamanho do mundo”
“O sertão é confusão em grande e demasiado sossego”


Deixei a bagagem na Pousada e saí para reconhecimento do terreno. Como já era hora do almoço, entrei num restaurante chamado Sarapalha, título de um conto do livro Sagarana. Na parede de entrada do restaurante, à esquerda, havia o resumo do conto Sarapalha. Nas outras paredes, havia frases de Guimarães Rosa. Degustei uma ótima comidinha caseira a preço de banana.


Após o almoço, voltei à Pousada, liguei meu lap top e consegui conexão com a Internet. Maravilha!!! Pensei que fosse ficar desconectada do mundo durante toda a semana.

O alojamento era perfeito. Quarto espaçoso, banheiro amplo, geladeira, televisor, mesa com cadeiras, uma cama de casal e outra de solteiro. Do lado de fora, varanda florida, que dava para um grande quintal. Desfiz a mala e saí novamente. Flanei pelas ruas da cidade. Dei uma volta no comércio local, fui ao centro de artesanato, localizado na entrada da cidade e fiz uma longa caminhada em linha reta até o portal recém-inaugurado, no outro extremo da cidade. Trata-se de um largo portal retangular, sob o qual há seis cavaleiros e um cachorro, em bronze, em tamanho natural, todos eles personagens de Guimarães Rosa. Ao lado há uma estátua do autor e diplomata, em pé, também em bronze, vestido a rigor, com sua tradicional gravata borboleta. 

Na volta, passei pelo Museu Casa Guimarães Rosa, antiga residência da família, na qual ele fora criado. É um belo exemplar de casarão em estilo colonial, com mobiliário antigo e um amplo jardim, nos fundos. À noite, fui ao auditório da Academia de Letras, onde houve uma mesa redonda abordando quatro itens: o Projeto Lang (que engloba o Circuito das 3 Grutas), o museu GR, o Circuito Turístico Guimarães Rosa  e as potencialidades turísticas da região. Falou-se também do sucesso da caminhada eco literária, que havia começado com poucos participantes e que já contava com mais de 400 pessoas. Tal caminhada, assim como os Miguilins foram dois projetos que obtiveram êxito. Miguilins são crianças cordisburguenses de 12 a 18 anos, treinadas para contar os causos roseanos. Os ex-Miguilins ajudam na coordenação e no treinamento dos atuais. O coordenador frisou que o surgimento de vários focos de grupos parecidos, em outras cidades, é uma consequência, não um objetivo do grupo. Alguns dos Miguilins foram à Itabira, para passar sua experiência aos itabiranos, onde se criou o grupo dos drummonsinhos.

Na terça-feira, logo após o café da manhã, fomos todos convidados para o primeiro evento do dia, no bairro Buritis. Como era um pouco distante, o presidente da Academia de Letras providenciou condução para os visitantes. A partir de certo ponto do caminho, saltamos dos carros e juntamo-nos a um grande grupo festivo e alegre que subia a ladeira com a criançada da cidade. Várias brincadeiras infantis iam sendo feitas à medida que nos dirigíamos à praça Francisco Timóteo Pereira, onde haveria contação de histórias e distribuição de balas, picolés, algodão doce e pipocas. A peça encenada foi “O casamento da Mula sem Cabeça com o Saci”, com direção de Rodolfo Goulart, na qual entremearam-se vários personagens do folclore nacional. Como o evento foi feito em pleno sol, e como eu estava com vestimentas de inverno, não pude aguardar até o final, devido ao calor. Eu havia me esquecido que, no inverno daquelas paragens, há brusca mudança de temperatura da noite para o dia. Peguei carona no primeiro carro que se deslocava em direção ao centro e fui à loja “Ave Palavra” (título de uma obra roseana) comprar camisetas mais condizentes ao clima. Percebi que o proprietário da loja, conhecido como Brasinha, era o mesmo palestrante da véspera e organizador do circuito GR e da caminhada eco literária. Começamos um bate-papo informal sobre a obra roseana. Juntou-se a nós um casal de paulistanos, Júlio e Bia, que também participavam do evento. Não percebemos o fluir do tempo. A manhã passou num piscar de olhos.

Às 13:00 horas, houve a abertura de uma exposição de pintura do artista Mura, com a narração de um trecho da obra roseana, e às 13:30, comecei a participar da oficina de bordados típicos da região. Escolhi, para bordar, um motivo bem cordisburguense.

 A igrejinha São José, o portal G.R., a lemniscata (símbolo do infinito), inserida no final na obra Grande sertão: veredas, para demonstrar justamente a ausência de fim da busca riobaldiana, ou seja, o entendimento de si, das coisas, do mundo e da vida.

No curso de  bordados, fiz amizade com uma espanhola de Barcelona, chamada Mercedes.  Como ela era francófona, e tinha muita dificuldade em falar português, optamos pela língua francesa para nos comunicar. Após a oficina, passei na Academia de Letras para o lançamento da exposição de pinturas e tive o prazer de ouvir a apresentação do conto “Luas de mel”, de GR. O pintor nos apresentou cada uma de suas obras, todas elas ligadas à obra de GR.

Aos poucos, fiquei conhecendo diversos participantes da semana roseana. No final da tarde encontrei um grupo, na loja do Brasinha, em vias de discutir a obra de GR. Entrei no bate-papo e por lá fiquei, durante horas. Depois, Mercedes, convidou-me para uma cervejinha, num quiosque próximo dali, onde dois violeiros cantavam modas sertanejas. Ela fez questão de lhes pagar a cerveja, mostrou-se muito interessada no que ouvia e pegou seus nº de telefone. Soube depois que seu objetivo ali era gravar todos os sons do sertão, até mesmo de água e de pássaros, para uma peça de teatro. Soube também que ela era especialista em teatro de sombras e que havia se embrenhado na obra roseana, pela qual se apaixonara, havia 9 anos. 

É interessante como a obra Roseana desperta paixões. Assim como nós duas, há centenas de “roseanos de carteirinha” espalhados pelo Brasil afora e até mesmo no exterior. Eu mesma conheci um professor universitário de Montpelier (França), cuja especialidade é justamente a obra Roseana.

O estilo e a linguagem, ou seja, a “escritura” Roseana apresenta grande dificuldade para nós, brasileiros.  Imagino as agruras para o entendimento dos estrangeiros, por melhores que sejam os tradutores. Traduzir Guimarães Rosa é tarefa quase impossível. Seus primeiros tradutores mantinham constante contato com o autor, para sanar as inúmeras dificuldades. Após sua morte, os tradutores de hoje têm que lançar mão de traduções já existentes em diversas línguas, para a transposição linguística.

Retomando o relato, na noite de terça feira, fui com tal espanhola ao Sarapalha, para uma noite musical, oferecida aos convidados da semana Roseana. O volume da música estava tão alto, que preferi voltar para a pousada logo após uma fumegante caneca de vaca atolada, para espantar o frio. (obs. Em 2016, ao chegar em Cordisburgo, soube da morte de Mercedes, ocorrida na Espanha)

Na manhã de quarta-feira, houve uma palestra sobre Cordisburgo, sua história e sua gente, com abertura dos Miguilins, cujas apresentações precedem cada evento. Dei umas voltas pela cidade. À tarde fui à oficina de bordados. À noite participei dos eventos culturais:  Sarau poético, com poemas do livro Magma, nos jardins do Museu Casa GR, números de dança, num tablado colocado diante do museu, congado, banda de música e quadrilha junina. Tudo ao ar livre, sob frio enregelante. Passei novamente pelo Sarapalha, para um reconfortante caldo quente, antes do repouso noturno.

A quinta-feira superou os dias anteriores. De manhã, houve uma palestra seguida de debate, sobre GSV, com Luiz Claudio Vieira de Oliveira, doutor em Literatura e especialista na obra de Rosa.  Grande parte da plateia, além de ser aficionada à obra Roseana, era composta por especialistas no assunto, o que contribuiu para o alto nível do debate. À tarde, participei de uma oficina de leitura. O conto abordado foi “Recado do morro”. Às dezenove horas, houve uma apresentação de nove Miguilins, no auditório da escola Mestre Candinho. Logo após, começou a encenação do conto “Recado do Morro”, em frente ao Sarapalha. Os sete recadeiros seguiram pela rua Padre João até o Museu, onde houve o término da encenação, com participação de um violeiro e da banda da Guarda de Nossa Senhora do Rosário. Não esperei pelo número de dança do grupo “Estrela do sertão”, nem pelo show musical “Cordis ao Luar”, devido ao cansaço e ao frio.

Na sexta-feira de manhã, houve duas palestras: uma sobre a tradução intersemiótica do conto Famigerado, feita por um doutorando, e outra sobre Guimarães Rosa e Borges, pelo prof. Dr. Luiz Claudio Vieira de Oliveira. Não fui à Oficina de Leitura. Toninho, meu irmão, chegou a Cordisburgo. À noite, fui com ele a um evento organizado pela Assembleia Legislativa e depois fomos jantar. Demos uma volta pela rua central, com o intuito de assistir ao espetáculo musical, mas nossos ouvidos não suportaram o volume das caixas de som.

No sábado, antes da caminhada eco literária, houve o tradicional café da manhã sertanejo, na Escola Mestre Candinho, com grande variedade de quitutes, e com direito à apresentação musical do violeiro Elvis, e à apresentação de alguns Miguilins. Saímos da cidade em grande comitiva, a pé, em direção à fazenda do saco. Demos uma parada na ponte do Onça, cenário natural do desfecho do conto “O recado do morro”, tema escolhido dessa caminhada. Depois, passamos pela fazenda de Saturnino, a primeira propriedade visitada pela comitiva do Recado do Morro, quando foi dado um dos sete recados. Um carro de apoio, contendo água gelada, nos acompanhou até esse local. A partir daí, seguimos por uma trilha íngreme, estreita e cascalhosa. Paramos para contações de estórias, à margem de um pequeno córrego, cenário de um excerto de Ave Palavra. A subida não foi nada fácil, mas íamos parando de tempos em tempos, para audição da viola, que sempre precedia às apresentações dos Miguilins, em cada parada. Todos se assentavam no chão para descansar. Quando havia arbustos por perto, colocavam-se à sombra. A penúltima parada foi num lugar muito bonito e aprazível, à beira d’água. A última foi próxima ao asfalto, onde um carro da Copasa nos aguardava com água geladinha, à nossa disposição. O último texto apresentado, extraído de Ave Palavra, levou-me às lágrimas, ao falar de Minas Gerais. Senti algo inexplicável. Queria fixar aquele momento, parar o tempo, permanecer o máximo possível, naquele matagal já praticamente sem trilha alguma. A perspectiva do fim da caminhada e do fim da semana roseana me deixava profundamente nostálgica. Na porta de saída do sertão, eu já sentia saudades do lugar e do ambiente nos quais eu ainda me encontrava.


Descemos a pé, pelo asfalto, até o restaurante da Gruta de Maquiné, onde almoçamos. Voltamos num ônibus escolar, para Cordisburgo. Fim de percurso, fim de evento, fim de semana, fim de um sonho. Segui imediatamente para BH, de onde voaria para a rotina do cotidiano litorâneo, levando boas lembranças do sertão.

sexta-feira, 17 de março de 2017

A MOÇA DE BRANCO

Jô Drumond

Após algumas “biritas”, num boteco próximo à igreja Santa Efigência, em Ouro Preto, Marcos avistou, na rua, uma bela jovem com longos cabelos louros, soltos sobre túnica branca. Aproximou-se dela e ofereceu-lhe bebida. Ela respondeu-lhe negativamente, com um gesto, que não bebia. Ofereceu-lhe cigarro. Não fumava. Convidou-lhe para entrar e dançar um forró. Não dançava. Perguntou-lhe se morava por perto. Ela apontou uma casa. O jovem se ofereceu para acompanhá-la. Como a noite estava fria, tirou seu paletó e o colocou sobre os ombros da moça. Despediu-se à porta e se foi. Ao sentir frio, lembrou-se do paletó. Que esquecimento providencial! – pensou o rapaz – amanhã terei uma boa desculpa para procurá-la. Queria ver, à luz do dia, aquela formosura da qual nem sabia o nome.
Na manhã seguinte, ao bater à porta, foi atendido por uma idosa circunspecta. Disse-lhe que gostaria de falar com a moça que residia naquela casa. A velha lhe respondeu que morava sozinha. Ele alegou que, na véspera, havia acompanhado uma jovem até a porta daquela casa e que tinha voltado para buscar seu paletó, usado para protegê-la contra a friagem da noite. A velha, meio brava, disse-lhe que zarpasse dali, que bebesse menos, para não ter visões. Ali não morava moça alguma.
Marcos olhou de relance o interior da casa e viu a foto da moça sobre um console, na saleta de entrada. Apontou o porta-retratos dizendo que se tratava daquela jovem da foto. Garantiu-lhe que não estava ébrio, na noite anterior.
- Não pode ser, seu moço!
- Quem é ela?
- É minha filha.
- A senhora poderia chamá-la, por obséquio?
- Não senhor, por obséquio algum.
- Por que não?
- Ela não mora mais aqui
- Mas eu mesmo a acompanhei ontem à noite, da porta do bar até aqui.
- Você deve ser um desses que vivem se encharcando de cachaça, no bar do meu vizinho.
- Não senhora, não sou daqui e não estava bêbado.
- Pois bem, seu moço. Pode ter sido alucinação. Ela faleceu há seis anos.
- Como assim? Eu a vi ontem! Estou certo disso. Quem me garante que a senhora está dizendo a verdade? Por que está me escondendo sua filha?
- Posso lhe provar.
- Pois prove!
- Venha comigo.
Subiram a escadaria, contornaram a igreja, pela direita, e entraram num pequeno cemitério. Aproximaram-se de um túmulo, no qual estava estampada a mesma foto da jovem. Marcos ficou estático. Um frio percorreu-lhe a espinha; um frisson sacudiu-lhe por inteiro. Sobre o túmulo, ao lado da foto, encontrava-se seu paletó. A velha ficou pasma, mais branca que a lápide do jazigo. Um mal estar súbito se apoderou de ambos. Ele acreditou que ela havia dito a verdade. Por sua vez, ela acreditou na história fantasmagórica da véspera. Silêncio sepulcral. Em estado de choque, o rapaz afastou-se rapidamente, sem nada dizer, e se foi, deixando sobre a lápide a prova daquele assombro.

(“causo” que se conta em Ouro Preto, narrado pela contadora de histórias, Ângela Xavier)

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias. de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

quinta-feira, 2 de março de 2017

VIDA A DOIS

*Jô Drumond

Casais aparentemente felizes são motivo de inveja ou de admiração dos demais. No entanto, muitas vezes, o que se vê não é o retrato do que se vive entre quatro paredes. Como diz o ditado popular, “a grama do vizinho é sempre mais verde”, até que se descubra que ela é artificial. Há relacionamentos inusitados, na vida a dois. Disponho-me a relatar alguns casos de conhecidos meus. Os nomes são, evidentemente, fictícios, mas os fatos são reais.

Convivi com um casal do tipo “felizes para sempre”, saído de um conto de fadas. O marido se desdobrava em elogios e carinhos para com a amada, diante dos familiares e dos amigos. Nunca se viu marido tão extremoso, educado, dedicado e gentil. Certo dia, em conversa reservada com sua esposa, descobri que ela era muito infeliz. Seu maior sonho era se desvencilhar da falsidade em pessoa, travestida de marido. No aconchego do lar, ou melhor, de um lar sem aconchego algum, ele era possessivo, seco, egoísta ao extremo, mal-educado, e, às vezes, bruto. Todo e qualquer gesto de carinho ou afeição era reservado às demonstrações públicas. Na farsa do “par perfeito”, ela não passava de simples marionete, ao bel-prazer do manipulador. Ninguém da família acreditava nas constantes reclamações por parte da esposa. Era-lhe inútil “bater na mesma tecla”. O quadro da opressão foi se transformando, aos poucos, em depressão, somatização, definhamento físico, baixa imunidade... e desaguou em doença degenerativa. Instalada em ambiente propício, a moléstia teve a gentileza de livrá-la logo daquele suplício e de conduzi-la por sendas desconhecidas dos viventes.

Conheci também um casal quase oposto ao primeiro. Não havia elogios nem carinhos em seu repertório. Depois de idosos, a distração preferida de ambos era a implicância mútua, sobretudo em público. Cada um se empenhava em listar defeitos, ranzinzisses e caduquices do outro. No entanto, um forte amálgama os unia. Não saberiam viver separados. Quando um tinha que se ausentar por motivo de viagem, o outro chegava a adoecer de tristeza. E assim foram se espezinhando no dia a dia, até “a vez e a hora”, quase simultâneas, de ambos.

Isso me remete a outro casal de idosos que conheci. Seu Zeca e Dona Maricota viveram além da conta. Não se sentiam no direito de morrer. Um teria que cuidar do outro ad aeternum. Se eu me for - dizia ele - quem vai zelar por minha Maricotinha? Tão frágil, tão velhinha! Se eu morrer - dizia ela, por sua vez -  quem vai fazer o guisado preferido do Zequinha? Quem vai lhe dar os remedinhos na hora certa? Ele anda tão fraco! Coitadinho!

“No frigir dos ovos”, nenhum dos dois desencarnava. Os filhos foram envelhecendo e minguando; os netos foram se casando; os bisnetos crescendo; os trinetos nascendo... e os dois anciões continuavam envolvidos até os ossos com a decrepitude. Numa ensolarada manhã de um dia qualquer, Maricota não acordou. Ao perceber que o coração dela parara, o dele resolver fazer o mesmo, por solidariedade. Partiram juntos, pelos caminhos do absoluto.

“Em cada cabeça uma sentença.” Em cada casal uma desavença. Depois dos filhos crescidos e casados, os camponeses Marli e Mário passaram a viver a dois, num terreno de poucos hectares, herdado dos antepassados. Ela cuidava da casa, da cozinha, da horta e das galinhas. Ele, mantendo o preceito de bom provedor, se encarregava do minguado gado leiteiro e da lavoura, que lhes garantia o sustento. 

À tarde, tendo lavorado o dia todo, eventualmente ele parava numa birosca à beira da estrada, para umas biritas. Aos poucos, o eventual tornou-se habitual. As biritas tornaram-se “porre”. Mário voltava pra casa tropeçando nas sombras da noite, caindo aqui, ali, acolá. Dependendo do teor etílico, enchia sua meiga mulher de “porradas”, sem motivo algum. Desgostosa do marido e da vida, ela passou a beber cachaça, enquanto o esperava. Sua meiguice foi se transformando em matreirice. Numa noite, “mais ébrio que um gambá”, ele se pôs a espancá-la. Ela também havia bebido, porém bem menos que ele. O álcool aqueceu as veias da vítima, subiu-lhe à cabeça e lhe deu coragem para enfrentar o agressor. O “saco de pancadas” revidou com força total, complementada por porretadas e cadeiradas. A sova foi tamanha, que o pobre ébrio passou o resto da noite prostrado no assoalho. No dia seguinte foi ao posto de saúde mais próximo, cheio de hematomas e algumas fraturas, dizendo-se atropelado. Jamais contou como se deu o atropelamento. Jamais levantou a mão contra a meiga Marli.

Filhos podem representar bênção ou maldição para um casal desajustado. Ter um filho para salvar a relação é grande risco. O remédio pode dar efeito contrário. Isso aconteceu com conhecidos meus. O filho, encomendado com o intuito de estabilizar a instabilidade, era extremamente problemático, o que acarretou a ruptura definitiva dos pais.

Por falar em ruptura, Elga e Elton desistiram de se divorciar porque nenhum dos dois queria a guarda dos filhos. Ambos trabalhavam o dia todo. Não dispunham de tempo, nem de paciência para cuidar dos pimpolhos. Acabaram mantendo a relação, “aos trancos e barrancos”, para compartilhar as birras, as travessuras e as doenças infantis dos garotos. No entanto, pouco tempo depois, perderam os filhos num trágico acidente automobilístico. Não havendo mais empecilho, o divórcio se concretizou.

Conheci um caso interessante, em que os filhos não aceitaram a reconciliação dos pais. Os três filhos de Tôco e Têca cresceram em ambiente hostil, passível de frequentes brigas, gritos e impropérios. Depois de muito “arranca-rabo”, o casal achou por bem se separar. Cada um viveria por si, sem a desagradável presença do outro. A mãe se foi, deixando a casa, o marido, as crianças e poucas saudades. O pai se desdobrou para que não faltasse nada às crianças. Um regime de paz e harmonia passou a reinar entre eles. Anos depois, já crescidos, foram informados de que o casal fizera as pazes e que a família poderia se reconstituir sob o mesmo teto. A reação contrária foi tamanha, que os pais tiveram que manter a separação, para evitar o total desmantelamento do que restava.

O ser humano é um animal gregário. No entanto o compartilhamento da vida nem sempre é pacífico. Relacionamentos entre pais, filhos e irmãos podem ser conflituosos, ou não. Apesar de cada um manter sua individualidade, todos têm o mesmo berço, a mesma criação, os mesmos costumes... Família é para sempre. Não se escolhe. Já o relacionamento amoroso pode ser escolhido, assim como descartado. Para constituir novo núcleo familiar, o/a jovem deixa sua família para viver com outro/a, de família diversa: outros costumes, outra moral, até mesmo outro idioma. A escolha pode dar certo, ou não. Como diz a canção popular, “casamento é loteria”.

Conflitos familiares sempre existiram, com peculiaridades diversas. Nenhuma relação é “um mar de rosas” o tempo todo.  Há momentos de tensão, de desgosto, de desespero, de desavenças, mas há também momentos de bem-estar, de alegria, de afeição e bem-aventurança. Segundo Aristóteles “a virtude está no meio”. Donde se infere que o importante é manter o equilíbrio entre as polarizações. No palco desse grande teatro, que é o mundo, cada um deve encenar, da melhor forma possível, a curta cena que lhe foi legada.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias. de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)