sexta-feira, 31 de março de 2017

XXII SEMANA ROSEANA EM CORDISBURGO

Jô Drumond

Este relato abaixo, escrito há sete anos, é um simples registro de minha primeira experiência na Semana Literária Roseana, em Cordisburgo. Trata-se de uma semana cultural, com palestras, mesas-redondas, debates, minicursos, leitura dramática, representações teatrais, exposições e diversos eventos, todos eles dedicados à obra do ilustre filho da terra, Guimarães Rosa. Essa imersão no universo roseano foi, para mim, uma experiência fascinante.

RELATO

Em 2010, voei do litoral para as alterosas, para participar, pela primeira vez, da semana Roseana, já em sua décima segunda edição, em Cordisburgo. O foco do evento é sempre a obra do escritor Guimarães Rosa. Do aeroporto de Confins, dirigi-me diretamente à rodoviária de Belo Horizonte. No guichê, pedi passagem de ida e volta, mas o atendente me disse que só dispunha da de ida. A de volta poderia ser adquirida dentro do ônibus, após o embarque. Disse-lhe então que fazia questão de comprá-la tão logo chegasse à cidade, para garantir o retorno, no final do evento.

▬ Impossível, minha senhora  ▬  respondeu-me ▬ lá não tem rodoviária.

Só aí me dei conta da pequenez da cidade. Tanto melhor! É nas pequenas cidades que se fazem grandes amizades.

Estava embarcando sozinha, sem conhecer viva alma na região, mas era como se estivesse me dirigindo a um encontro familiar. Isso porque faço parte da grande “família Roseana”, composta de leitores, pesquisadores, professores e aficionados à obra do renomado autor.

Antes de embarcar, telefonei para a Pousada das Flores, para confirmação de reserva.  Foi-me sugerido que pedisse ao motorista para me deixar à porta da pousada. Esse privilégio remeteu-me aos velhos tempos vividos no interior. Na rodoviária de BH, foi-me dito que haveria baldeação na cidade de Sete Lagoas. Estranhei o fato de ter que fazer baldeação num percurso de apenas 120 km. Embarquei pela Viação Pássaro Verde. No meio do caminho, fui transferida para a Viação Expresso Setelagoano. 

Cheguei em Cordisburgo na segunda-feira, segundo dia da Semana Roseana. No Domingo, havia tido apenas uma missa e a cerimônia de abertura. Encantei-me com os ares interioranos da cidade: ruas pacatas, silenciosas e vazias; crianças brincando nas calçadas; cachorros soltos por todo lado; algumas carroças, puxadas a cavalo; poucos carros...Tudo isso me remetia à Guimarânia (terra dos Guimarães), onde meus pais passaram grande parte de suas vidas e escolheram para derradeira e eterna morada. Sou descendente dos Guimarães, pelo lado materno, nascida e criada no sertão mineiro, assim como Rosa. Daí minha grande paixão pelo linguajar e pelo cenário de seus contos.

Uma fresca brisa de inverno brincava nos galhos das árvores, entre os quais uma infinidade de faixas remetia o visitante ao grande evento anual. Em cada faixa, lia-se um pensamento do escritor, acompanhado do nome do estabelecimento que havia patrocinado sua confecção. Parece-me que a grande maioria dos comerciantes aderiu à ideia, pois o número de faixas era surpreendente. As frases, todas elas minhas velhas conhecidas, haviam sido muito bem selecionadas: frases sentenciosas (que expressam verdades oriundas da secular experiência do povo); outras de cunho filosófico, e algumas de temática sertaneja. Vejamos algumas delas.

Frases sentenciosas:

“Quem desconfia fica sábio”
“Não se deve parar no meio da tristeza”
“Mestre não é aquele que sempre ensina, mas quem de repente aprende”
“Para as coisas que há de pior, a gente não alcança fechar as portas”
“Carece de ter coragem”
“Quem castiga cumpre também”
“Choca mal quem sai do ninho”
“Felicidade se acha é só em horinhas de descuido”
“Infelicidade é questão de prefixo”
“Mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir”
 “Cavalo que ama o dono até respira do mesmo jeito”
“Antes trabalhar no domingo do que furtar na segunda”
“Mulher só fica velha é da cintura para cima”
“Só aos poucos é que o escuro fica claro”

Filosofemas:

“Tudo é e não é”
“Vida-coisa que o tempo remenda, depois rasga”
“Viver é muito perigoso”
“A vida é um vago variado”
“A vida não dá demora em nada”
“As pessoas não estão sempre iguais; ainda não foram terminadas”
“Nonada, o diabo não há! O que existe é o homem humano. Travessia!”

Temática  sertaneja:

“O sertão é dentro da gente”
“O sertão é uma espera enorme”
“Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos...”
 “O sertão está em toda parte”
“O sertão é do tamanho do mundo”
“O sertão é confusão em grande e demasiado sossego”


Deixei a bagagem na Pousada e saí para reconhecimento do terreno. Como já era hora do almoço, entrei num restaurante chamado Sarapalha, título de um conto do livro Sagarana. Na parede de entrada do restaurante, à esquerda, havia o resumo do conto Sarapalha. Nas outras paredes, havia frases de Guimarães Rosa. Degustei uma ótima comidinha caseira a preço de banana.


Após o almoço, voltei à Pousada, liguei meu lap top e consegui conexão com a Internet. Maravilha!!! Pensei que fosse ficar desconectada do mundo durante toda a semana.

O alojamento era perfeito. Quarto espaçoso, banheiro amplo, geladeira, televisor, mesa com cadeiras, uma cama de casal e outra de solteiro. Do lado de fora, varanda florida, que dava para um grande quintal. Desfiz a mala e saí novamente. Flanei pelas ruas da cidade. Dei uma volta no comércio local, fui ao centro de artesanato, localizado na entrada da cidade e fiz uma longa caminhada em linha reta até o portal recém-inaugurado, no outro extremo da cidade. Trata-se de um largo portal retangular, sob o qual há seis cavaleiros e um cachorro, em bronze, em tamanho natural, todos eles personagens de Guimarães Rosa. Ao lado há uma estátua do autor e diplomata, em pé, também em bronze, vestido a rigor, com sua tradicional gravata borboleta. 

Na volta, passei pelo Museu Casa Guimarães Rosa, antiga residência da família, na qual ele fora criado. É um belo exemplar de casarão em estilo colonial, com mobiliário antigo e um amplo jardim, nos fundos. À noite, fui ao auditório da Academia de Letras, onde houve uma mesa redonda abordando quatro itens: o Projeto Lang (que engloba o Circuito das 3 Grutas), o museu GR, o Circuito Turístico Guimarães Rosa  e as potencialidades turísticas da região. Falou-se também do sucesso da caminhada eco literária, que havia começado com poucos participantes e que já contava com mais de 400 pessoas. Tal caminhada, assim como os Miguilins foram dois projetos que obtiveram êxito. Miguilins são crianças cordisburguenses de 12 a 18 anos, treinadas para contar os causos roseanos. Os ex-Miguilins ajudam na coordenação e no treinamento dos atuais. O coordenador frisou que o surgimento de vários focos de grupos parecidos, em outras cidades, é uma consequência, não um objetivo do grupo. Alguns dos Miguilins foram à Itabira, para passar sua experiência aos itabiranos, onde se criou o grupo dos drummonsinhos.

Na terça-feira, logo após o café da manhã, fomos todos convidados para o primeiro evento do dia, no bairro Buritis. Como era um pouco distante, o presidente da Academia de Letras providenciou condução para os visitantes. A partir de certo ponto do caminho, saltamos dos carros e juntamo-nos a um grande grupo festivo e alegre que subia a ladeira com a criançada da cidade. Várias brincadeiras infantis iam sendo feitas à medida que nos dirigíamos à praça Francisco Timóteo Pereira, onde haveria contação de histórias e distribuição de balas, picolés, algodão doce e pipocas. A peça encenada foi “O casamento da Mula sem Cabeça com o Saci”, com direção de Rodolfo Goulart, na qual entremearam-se vários personagens do folclore nacional. Como o evento foi feito em pleno sol, e como eu estava com vestimentas de inverno, não pude aguardar até o final, devido ao calor. Eu havia me esquecido que, no inverno daquelas paragens, há brusca mudança de temperatura da noite para o dia. Peguei carona no primeiro carro que se deslocava em direção ao centro e fui à loja “Ave Palavra” (título de uma obra roseana) comprar camisetas mais condizentes ao clima. Percebi que o proprietário da loja, conhecido como Brasinha, era o mesmo palestrante da véspera e organizador do circuito GR e da caminhada eco literária. Começamos um bate-papo informal sobre a obra roseana. Juntou-se a nós um casal de paulistanos, Júlio e Bia, que também participavam do evento. Não percebemos o fluir do tempo. A manhã passou num piscar de olhos.

Às 13:00 horas, houve a abertura de uma exposição de pintura do artista Mura, com a narração de um trecho da obra roseana, e às 13:30, comecei a participar da oficina de bordados típicos da região. Escolhi, para bordar, um motivo bem cordisburguense.

 A igrejinha São José, o portal G.R., a lemniscata (símbolo do infinito), inserida no final na obra Grande sertão: veredas, para demonstrar justamente a ausência de fim da busca riobaldiana, ou seja, o entendimento de si, das coisas, do mundo e da vida.

No curso de  bordados, fiz amizade com uma espanhola de Barcelona, chamada Mercedes.  Como ela era francófona, e tinha muita dificuldade em falar português, optamos pela língua francesa para nos comunicar. Após a oficina, passei na Academia de Letras para o lançamento da exposição de pinturas e tive o prazer de ouvir a apresentação do conto “Luas de mel”, de GR. O pintor nos apresentou cada uma de suas obras, todas elas ligadas à obra de GR.

Aos poucos, fiquei conhecendo diversos participantes da semana roseana. No final da tarde encontrei um grupo, na loja do Brasinha, em vias de discutir a obra de GR. Entrei no bate-papo e por lá fiquei, durante horas. Depois, Mercedes, convidou-me para uma cervejinha, num quiosque próximo dali, onde dois violeiros cantavam modas sertanejas. Ela fez questão de lhes pagar a cerveja, mostrou-se muito interessada no que ouvia e pegou seus nº de telefone. Soube depois que seu objetivo ali era gravar todos os sons do sertão, até mesmo de água e de pássaros, para uma peça de teatro. Soube também que ela era especialista em teatro de sombras e que havia se embrenhado na obra roseana, pela qual se apaixonara, havia 9 anos. 

É interessante como a obra Roseana desperta paixões. Assim como nós duas, há centenas de “roseanos de carteirinha” espalhados pelo Brasil afora e até mesmo no exterior. Eu mesma conheci um professor universitário de Montpelier (França), cuja especialidade é justamente a obra Roseana.

O estilo e a linguagem, ou seja, a “escritura” Roseana apresenta grande dificuldade para nós, brasileiros.  Imagino as agruras para o entendimento dos estrangeiros, por melhores que sejam os tradutores. Traduzir Guimarães Rosa é tarefa quase impossível. Seus primeiros tradutores mantinham constante contato com o autor, para sanar as inúmeras dificuldades. Após sua morte, os tradutores de hoje têm que lançar mão de traduções já existentes em diversas línguas, para a transposição linguística.

Retomando o relato, na noite de terça feira, fui com tal espanhola ao Sarapalha, para uma noite musical, oferecida aos convidados da semana Roseana. O volume da música estava tão alto, que preferi voltar para a pousada logo após uma fumegante caneca de vaca atolada, para espantar o frio. (obs. Em 2016, ao chegar em Cordisburgo, soube da morte de Mercedes, ocorrida na Espanha)

Na manhã de quarta-feira, houve uma palestra sobre Cordisburgo, sua história e sua gente, com abertura dos Miguilins, cujas apresentações precedem cada evento. Dei umas voltas pela cidade. À tarde fui à oficina de bordados. À noite participei dos eventos culturais:  Sarau poético, com poemas do livro Magma, nos jardins do Museu Casa GR, números de dança, num tablado colocado diante do museu, congado, banda de música e quadrilha junina. Tudo ao ar livre, sob frio enregelante. Passei novamente pelo Sarapalha, para um reconfortante caldo quente, antes do repouso noturno.

A quinta-feira superou os dias anteriores. De manhã, houve uma palestra seguida de debate, sobre GSV, com Luiz Claudio Vieira de Oliveira, doutor em Literatura e especialista na obra de Rosa.  Grande parte da plateia, além de ser aficionada à obra Roseana, era composta por especialistas no assunto, o que contribuiu para o alto nível do debate. À tarde, participei de uma oficina de leitura. O conto abordado foi “Recado do morro”. Às dezenove horas, houve uma apresentação de nove Miguilins, no auditório da escola Mestre Candinho. Logo após, começou a encenação do conto “Recado do Morro”, em frente ao Sarapalha. Os sete recadeiros seguiram pela rua Padre João até o Museu, onde houve o término da encenação, com participação de um violeiro e da banda da Guarda de Nossa Senhora do Rosário. Não esperei pelo número de dança do grupo “Estrela do sertão”, nem pelo show musical “Cordis ao Luar”, devido ao cansaço e ao frio.

Na sexta-feira de manhã, houve duas palestras: uma sobre a tradução intersemiótica do conto Famigerado, feita por um doutorando, e outra sobre Guimarães Rosa e Borges, pelo prof. Dr. Luiz Claudio Vieira de Oliveira. Não fui à Oficina de Leitura. Toninho, meu irmão, chegou a Cordisburgo. À noite, fui com ele a um evento organizado pela Assembleia Legislativa e depois fomos jantar. Demos uma volta pela rua central, com o intuito de assistir ao espetáculo musical, mas nossos ouvidos não suportaram o volume das caixas de som.

No sábado, antes da caminhada eco literária, houve o tradicional café da manhã sertanejo, na Escola Mestre Candinho, com grande variedade de quitutes, e com direito à apresentação musical do violeiro Elvis, e à apresentação de alguns Miguilins. Saímos da cidade em grande comitiva, a pé, em direção à fazenda do saco. Demos uma parada na ponte do Onça, cenário natural do desfecho do conto “O recado do morro”, tema escolhido dessa caminhada. Depois, passamos pela fazenda de Saturnino, a primeira propriedade visitada pela comitiva do Recado do Morro, quando foi dado um dos sete recados. Um carro de apoio, contendo água gelada, nos acompanhou até esse local. A partir daí, seguimos por uma trilha íngreme, estreita e cascalhosa. Paramos para contações de estórias, à margem de um pequeno córrego, cenário de um excerto de Ave Palavra. A subida não foi nada fácil, mas íamos parando de tempos em tempos, para audição da viola, que sempre precedia às apresentações dos Miguilins, em cada parada. Todos se assentavam no chão para descansar. Quando havia arbustos por perto, colocavam-se à sombra. A penúltima parada foi num lugar muito bonito e aprazível, à beira d’água. A última foi próxima ao asfalto, onde um carro da Copasa nos aguardava com água geladinha, à nossa disposição. O último texto apresentado, extraído de Ave Palavra, levou-me às lágrimas, ao falar de Minas Gerais. Senti algo inexplicável. Queria fixar aquele momento, parar o tempo, permanecer o máximo possível, naquele matagal já praticamente sem trilha alguma. A perspectiva do fim da caminhada e do fim da semana roseana me deixava profundamente nostálgica. Na porta de saída do sertão, eu já sentia saudades do lugar e do ambiente nos quais eu ainda me encontrava.


Descemos a pé, pelo asfalto, até o restaurante da Gruta de Maquiné, onde almoçamos. Voltamos num ônibus escolar, para Cordisburgo. Fim de percurso, fim de evento, fim de semana, fim de um sonho. Segui imediatamente para BH, de onde voaria para a rotina do cotidiano litorâneo, levando boas lembranças do sertão.