domingo, 24 de setembro de 2017

IRMÃS CARMELITAS

 Certo dia, telefonaram-me solicitando o trabalho como professora   num convento da Ordem das Carmelitas, “as servas dos pobres”. Eu deveria ensinar a língua francesa a duas irmãs que iriam para o Mosteiro de Nossa Senhora do Monte Carmelo, fundado no século XI, em Israel, no qual se usa esse idioma para as orações. 

Fiquei curiosa. Eu nunca havia visto uma carmelita, pelo fato de viverem enclausuradas.
Eu teria que me deslocar todos os dias até o convento, e enfrentar o trânsito do centro da cidade, num percurso que duraria, no mínimo, uma hora de ida e outra de volta. Tive que recusar o convite, devido a outros compromissos assumidos anteriormente.

 Dias depois, recebi outro telefonema. Como o tempo urgia, o convento decidira abrir uma exceção. Elas poderiam se deslocar até minha casa, para o aprendizado. Um dos voluntários, que ajudavam a ordem, havia se oferecido para levá-las de carro. Esperaria estacionado à porta, e as levaria de volta, sãs e salvas.
A mais jovem era alegre, sorridente e brincalhona. A outra, séria e compenetrada. Duas personalidades totalmente opostas. Com o tempo, percebi que a convivência entre elas não era de todo pacífica. Frequentemente, a mais idosa policiava e repreendia, com o olhar, as atitudes espontâneas da mais jovem.

Ambas usavam o tradicional e incômodo hábito escuro, mantendo apenas o rosto à vista, vestimenta imprópria para  aquele verão escaldante. Num dia de altas temperaturas, eu usava uma blusa branca em tecido fino, transparente, sobre uma camiseta de alças. Encalorada, pedi licença, tirei a blusa em plena aula e lhes disse que ficassem à vontade para se livrar de tantos panos. Não sei se eu disse alguma besteira. O fato é que elas riram descontraidamente. A mais jovem disse: Ah! Como você é engraçada! Quando eu contar isso para as outras irmãs elas nem vão acreditar!

Ficamos amigas, na medida do possível. Nossos encontros linguísticos eram muito prazerosos. Elas estavam ansiosas para aprender falar e rezar em francês. Elas diziam que eu era um anjo caído do céu, para lhes ensinar a língua que usariam no convento, em Jerusalém.

Aos poucos, a notícia se espalhou pela vizinhança. Nos horários de aula, minha casa parecia ponto turístico. Discretamente, todos queriam ver, mesmo de longe, por instantes, as duas “desenclausuradas”. Os curiosos se mantinham discretos, para não assustá-las. Alguns fingiam estar varrendo a calçada, outros passeando com o cachorro ou lavando o carro. Havia também aqueles que se disfarçavam dentro dos carros, de modo que elas não se sentissem foco das miradas.  

Certo dia elas me disseram que as pessoas, em geral, são extremamente bondosas, gentis e generosas. Prova disso é que no convento, elas vivem da caridade alheia, sem necessidade alguma de pedir algo a quem quer que seja. O padeiro fornece-lhes gratuitamente o “pão de cada dia”; o açougueiro faz-lhes a estocagem semanal de carnes; os feirantes são pródigos em frutas e legumes; o merceeiro também fornece sua cota semanal. Assim sendo, nada lhes falta. Perguntei-lhes se o motorista as conduzia também gratuitamente, até minha casa.  − Claro que sim, disse a mais jovem. Ele é um amor de pessoa! Está com a mãe muito doente e pede sempre que oremos por ela. 

Num piscar de olhos matei a charada de tanta generosidade. Tanto o padeiro, quanto o açougueiro, o verdureiro, o merceeiro e os demais que atendem às necessidades básicas do convento são recompensados por orações. Há uma crença de que a oração de uma Carmelita vale mais que a do cidadão comum, pelo falo de ela estar quase sem contato com o mundo, em estado de graça e, por conseguinte, mais perto do céu. É como se tivesse linha direta com o Criador. Seus pedidos são mais facilmente acatados pela divindade. Essa intermediação é o preço pago por elas aos generosos voluntários, todos eles com graves problemas na família, a serem resolvidos, sobretudo de saúde.

Delicadamente, fiz–lhes ver, com muita cautela, para não decepcioná-las, que o mundo e o ser humano não são tão bons, nem tão generosos quanto parecem. O que se faz em prol do convento é uma simples permuta: provisões em troca de orações.

JÔ Drumond