segunda-feira, 15 de abril de 2019

LABAREDAS VORAZES

A catedral de Notre Dame resistiu a batalhas e guerras, durante quase um milênio, mas não resistiu à voracidade das labararedas que abocanhavam tudo que encontravam pela frente. Fiquei em estado de choque ao ver, pela televisão, imagens das chamas. Era algo inimaginável. Já assisti a tantos concertos nessa catedral, já subi tantas vezes até o topo das torres, para apreciar a paisagem, já visitei o “tesouro” (parte reservada às relíquias) inúmeras vezes, já assisti a exames de futuros organistas, no enorme órgão de tubos, datado do século XVII. Quantas vezes apreciei aquelas rosáceas maravilhosas, as gárgulas feitas para o escoamento de água, porém com figuras medonhas e amedrontadoras, para espantar maus espíritos... Não! Não pode ser verdade! Deve ser montagem...pura ficção!

A imagem do monumento em chamas me remeteu ao primeiro e maior deslumbramento que tive diante de uma obra de arte: a fachada iluminada dessa mesma catedral. Em Teoria da Arte o efeito provocado pelo Belo absoluto no espectador se chama “estesia”. Trata-se de uma forte emoção, ou melhor, de uma comoção, acompanhada de tremor, frio na espinha e, às vezes, de vontade de chorar, diante de uma obra de arte: uma espécie de êxtase ou epifania.

Isso aconteceu comigo, na primeira vez que vi Paris, aos vinte anos, ao ser contemplada com uma bolsa
de estudos, pela Embaixada da França. Inexperiente e tímida, oriunda do sertão mineiro, nunca havia entrado em um avião. Não sabia como me comportar em situações desconhecidas, mas tampouco queria demonstrar ignorância. Já havia viajado muito em telas cinematográficas. Tentava então imitar os passageiros dos filmes, em aeroportos e viagens internacionais. Atravessei o oceano temerosa. Não tinha a mínima ideia do que ia encontrar pela frente. Eu falava francês. Menos mal. No aeroporto de Paris, peguei uma “navette”, pequeno ônibus que faz o longo trajeto até à cidade. Depois tomei um táxi e me dirigi ao Fiap (Foyer International d’Accueil de Paris) uma construção moderna, que recebia estudantes estrangeiros, a convite do governo francês. Eu não conhecia vivalma na cidade luz. Na recepção, disseram-me que eu dividiria um grande quarto com outras estudantes estrangeiras, que participariam do mesmo curso, na Universidade de Sorbonne Nouvelle. Excelente notícia. Não queria ficar sozinha. Ao entrar no quarto, percebi que eu era a última a chegar. As outras, já instaladas, estavam de saída. Assim que coloquei a bagagem no chão, minhas futuras colegas me disseram em francês. – “Vamos dar um passeio. Quer vir conosco?” Deixei a bagagem no meio do quarto e saí atrás delas. Estava anoitecendo. Tomamos o metrô na estação Glacière, e, após algumas baldeações, saímos em uma rua enxameada de transeuntes, todos muito apressados, como se estivessem correndo “para tirar o pai da forca”, como se diz no sertão. Fixei bem a fisionomia das companheiras e não desgrudei os olhos delas um segundo sequer. Eu não saberia voltar ao Fiap. Não saberia nem mesmo fazer sozinha as baldeações do metrô. O medo de me perder era tal, que as seguia, no meio da multidão, com os olhos fixos em suas silhuetas.

A um dado momento, ao virar uma esquina, percebi um clarão. Levantei os olhos e estremeci. Chorei
de emoção. Nunca havia visto nada tão esplendoroso, tão monumental. Até hoje, não me canso de apreciar a beleza e a grandiosidade da construção. Dizem que as catedrais góticas, todas elas altíssimas, com muita entrada de luz pelos vitrais, tinham como objetivo mostrar ao fiel sua pequenez diante da grandiosidade do Senhor. Esse estilo arquitetônico primava pela verticalidade da construção, com torres pontiagudas, janelas e imagens alongadas, tudo remetendo ao infinito. Ao se sentir diminuto, o espectador buscava, e ainda busca, uma âncora na fé, na religião.

Mais tarde, as catedrais barrocas tinham objetivo similar. Todos os elementos estéticos visavam a
provocar intensa emoção: volutas, flores, monstros, anjinhos, elementos contorcidos e espirais, jogo de claro-escuro, efeitos ilusórios e de perspectivas... A profusão de elementos decorativos era tamanha que o olhar do espectador se perdia na riqueza de detalhes, no exagero da decoração, e na magnificência do douramento. Tudo isso fazia com que o fiel se sentisse atordoado, sem chão. Naquele momento, onde buscaria um eixo que o sustentasse? Na religião, evidentemente. Assim, os cálculos dos templos não eram apenas matemáticos. Tinham objetivos mais abrangentes.

Lá se foram algumas décadas, e muita água correu no rio Sena, ao lado da Catedral. No entanto, sinto ainda a força do impacto da primeira mirada de Notre Dame. O impacto de hoje foi diferente. Fiquei atônita. Como muito bem se expressou o Presidente Emmanuel Macron, ao se aproximar do incêndio: “Uma parte de nós está queimando”. E digo mais: continuará queimando per omnia saecula saeculorum.