quarta-feira, 29 de junho de 2016

O MORTO TAGARELA

(Fato ocorrido na região da Charneca, MG, na primeira metade do século XX )

Jô Drumond

Zé Badão fazia qualquer tipo de frete em sua velha ximbica de estimação, mas nunca tinha carregado caixão vazio, muito menos ocupado. Cresceu na roça, habituado a ouvir causos de assombração, nas longas noites do sertão. À luz de lamparina, via fantasmas em qualquer vulto ou tremulação de claridade. Tinha pavor de defuntos, de velório, de cemitério, de tudo que pudesse remeter à fantasmagoria tenebrosa cultivada em sua mente.

Num domingo, estando ele a tomar umas biritas no povoado do Barranco, já prestes a voltar para casa, recebeu uma encomenda fúnebre. Levar o falecido Zé Tita até a fazenda do Coité, onde seria velado. Recusou de prontidão, mas diante do veemente pedido de seu compadre e amigo Argemiro, tio do falecido, sentiu-se na obrigação de fazer aquele sacrifício. O sol, escondendo-se atrás das árvores, brincava de equilibrar-se no dorso da montanha. Ao perceber o lusco-fusco do dia, Zé Badão sentiu um calafrio. Nunca havia pensando em fazer um carreto desses, muito menos no breu da noite.

─ Era só o que me fartava, Argemiro!... Já verificô se o difunto tá mermo morto?

─ Mortinho da silva, seu Zé. A essa hora já deve de tá proseano com São Pedro. Era uma alma boa, dessas que vai direto pro céu. Alma de gente rúim é que vira alma penada; fica rondano os vivo, apareceno pros ôtro. Num carece de tê medo não. Gente viva é que é pirigosa, isso sim!

─ Tá bem, Argemiro, bote logo esse trem na carroceria antes que eu mude de ideia. Só tô fazeno esse carreto em sua atenção. Das coisas do ôtro mundo, eu quero é distância.

Enquanto proseavam, um ébrio conhecido por Tõe Galinha, mais bêbedo que um gambá, alheio ao que acontecia, aproveitou a distração e se escondeu no fundo da carroceria, para uma caroninha gratuita até o entroncamento do Coité.

A viagem começou sem tropeços. Tõe Galinha adormeceu tão logo começaram os sacolejos da estrada. Zé Badão nunca havia dirigido tão tenso. Tentava acalmar-se, em vão. Dizia a si mesmo:

 ─ Pensando bem, esse frete vai ser bão pra tirar minha cisma. Gente morta é inofensiva. Coitado do Zé Tita! Que Deus o tenha!
Ao começar fazer uma oração pela alma do falecido ouviu um ronco.
─ Êpa, difunto num ronca! Que diabo é isso?

Arrepiou-se de medo. Apertou a acelerador, apesar dos buracos da estrada, numa correria desabalada, o que acordou o bêbado. Tõe Galinha, jogado para cima e para os lados como numa panela de pipocas, gostou da brincadeira e gritou:

─ Aperta o pé, seu Zé!

Ao ouvir aquilo, o motorista enrijeceu-se de medo e apertou mais ainda o acelerador.

 ─Aperta o pé seu Zé! E seja o que Deus quisé!

Afundou o pé ainda mais, se borrando todo de medo, e rezando para afastar maus espíritos. A voz fantasmagórica insistia.

─ Mais! Mais! Mais! Esse trem tá bão demais!

No entroncamento, em dúvida se entrava à direita ou à esquerda, diminuiu a marcha. Nisso, o pinguço aproveitou para saltar na escuridão, sem ser notado, e continuou o percurso a pé, tropeçando nos vãos da noite. O fretista aproximou-se da fazenda indicada para fazer o duplo descarrego: o do real e o do imaginário.

Ao ouvir o ronco do motor, toda a família do defunto foi até ao curral, defronte à sede da fazenda, para receber a encomenda. Mais lívido que o luar, Zé Badão não conseguiu proferir uma só palavra. Esperou que tirassem o caixão e partiu sem se despedir e sem receber pelo frete. Queria se distanciar o mais rapidamente possível daquele encosto. Ao chegar a casa, sem contar nada à Mariquita, pediu-lhe que pegasse uma lanterna e verificasse se havia alguém dentro da carroceria.

─  Não há viva alma nesse caminhão, meu amô.  

─  Nem me fale de alma. Me dá uma garrafa de pinga, que eu quero me afogá.

─  O que é que cê tem?

─  Nada! Tô com a garganta seca, só isso!

─  Só mermo?

─ É só! Ara! Ô muiezinha discunfiada!

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGE

terça-feira, 14 de junho de 2016

APREENSÃO

Jô Drumond


Há momentos de grande apreensão, misto de inquietação, receio e temor, que, às vezes, beira as raias do pânico. Foi a sensação que experimentei num voo entre Belo Horizonte e Vitória, no dia 25 de dezembro de 2015, após uma magnífica festa de Natal com a grande família reunida.

Decolamos de Confins às 22h10. O voo transcorreu normalmente até nos aproximarmos do litoral capixaba. Uma forte tempestade impedia o pouso. Aeroporto fechado. O piloto resolveu ficar sobrevoando a cidade à espera do término do temporal. Raios, raios e mais raios rabiscavam o céu, iluminando tudo à nossa volta. A aeronave se sacudia fortemente, como se fosse se desintegrar a qualquer instante. Eu nunca havia presenciado tamanha turbulência. O medo de raios, associado ao medo de voar, deixou meus nervos em frangalhos. Tentava aparentar calma para não apavorar minha filha nem meu genro, ao meu lado, com minhas netinhas gêmeas. Meu marido parecia, ou tentava parecer, tranquilo. Três fileiras atrás de nós, outra filha, outro genro e mais dois netinhos. Meu Deus! — pensei com meus botões. — Acaba aqui minha imortalidade genética. Todos os meus descendentes podem se desintegrar juntamente comigo, a qualquer momento.

Quanto maior o clarão da descarga elétrica, maior a turbulência. Eu trincava os dentes, cerrava os punhos e fechava os olhos para fugir do medo. Fazia pensamento positivo com toda força de meu ser, para que saíssemos sãos e salvos da tormenta. O martírio dos sobressaltos e do desassossego durou cerca de uma hora, em torno da ilha do mel. O piloto nos avisou que tentaria mais uma aproximação do aeroporto. Caso não fosse possível, se dirigiria a outra pista de pouso. 

Que outra pista? — me perguntei.  Não há segunda opção, por aqui!

Após alguns minutos, o pouso foi autorizado. Respirei aliviada e prometi a mim mesma jamais viajar de avião, sabendo, de antemão, que tal promessa não seria cumprida.

O avião se aproximou da cidade, voando baixo. Sem quê nem por quê, arremessou-se até atingir altitude de cruzeiro. Ficamos sabendo então que estávamos voltando para Belo Horizonte. Um senhor, em pânico, contido a tempo pelos passageiros, havia se levantado dizendo que daria “umas porradas” no piloto. Uma grávida vomitou, enojando seus vizinhos de assento. Diversos bebês choravam ao mesmo tempo. Um garoto de cerca de nove anos se aproximou de nós, dizendo a seu pai que estava faminto. Dei-lhe um pacote de biscoitos que carregava na bolsa. Finalmente aterrissamos em Confins, madrugada adentro. Não nos foi permitido sair da aeronave. Trezentos passageiros fizeram fila para os três minúsculos banheiros, enquanto a aeronave era reabastecida. Ainda havia filas nos banheiros malcheirosos, e transbordantes de papel usado, quando foi anunciada nova decolagem. Já estávamos todos famintos. Uma comissária de bordo se escusou dizendo que, como o setor de reabastecimento de bebidas e de comestíveis ficava desativado durante a madrugada, não foi possível fazer tal reabastecimento. Minhas netinhas de colo choravam e esperneavam, com toda razão, não sei se de desconforto, de sono ou de fome. Minha gastrite reclamava, também com razão. Nada no estômago, desde o almoço, para acalmá-la. Necas de providenciais biscoitinhos de bolsa, doados ao menino desconhecido. Teríamos que controlar a sede a e fome até a chegada. O melhor remédio seria dormir para tapear o tempo. 

Já eram cerca de duas horas da manhã. Nova decolagem. Acabei adormecendo no voo de volta. Na reaproximação do litoral, novas turbulências me despertaram. Decididamente, o céu estava raivoso nessa noite, mas, felizmente, “entre mortos e feridos”, todos se salvaram: ninguém se machucou.

Ouvi dizer que numa situação de pânico, durante um voo em que viajava o humorista Millor Fernandes, ele se mostrava muito ansioso. Uma aeromoça lhe perguntou se estava com falta de ar.

̶   Não, senhorita! Estou com falta de terra!

Ao pisar em terra firme, com a família salva, respirei aliviada. Em época de tempestades — pensei com meus botões — é melhor deixar o céu para os pássaros e o mar para os peixes. Bom mesmo é ter os pés no chão, deixando apenas a cabeça nas nuvens, de quando em vez.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGE