quarta-feira, 29 de abril de 2020

FIDELIDADE CANINA


Um Senhor, já bem inclinado devido ao peso da idade, andava sempre acompanhado por um vira-latas de pequeno porte. Na verdade, o vira-latas não apenas o acompanhava. Passava maior parte do tempo sobre o cangote do velho corcunda. Habituado aos frequentes cochilos da idade, assentava-se em sua poltrona preferida, e dormitava quase o dia todo, com a cabeça pendida para o chão. Sobre seus ombros no cocuruto do pescoço, aninhava-se o cãozinho sonolento. Era uma cena habitual aos familiares, mas assaz interessante para os que por ali passavam. Quando o velho acordava, o cão apenas mudava de endereço: do cangote para o colo, do colo para o braço. Assim viveram em perfeita harmonia durante muitos anos, até que a fria mão da morte veio buscar o ancião.

O cachorro, sem nada entender, esteve presente durante todo o velório, sem direito a pular para dentro do caixão. Acompanhou o séquito até a porta do cemitério, onde foi impedido de entrar. Fecharam-lhe o gradil bem na ponta do focinho. Ali ficou postado, na esperança de uma brecha para entrar. Após o enterro, todos partiram, exceto o coveiro que o escorraçou mais uma vez antes de retomar seus afazeres. Do lado de fora, o cachorro gania sem cessar. O coveiro, incomodado com a persistência do cão, abriu-lhe o portão, para verificar o que ele queria. O animal entrou como um corisco e, sem nenhuma informação itinerária, foi diretamente à sepultura de seu amo, como se já soubesse de antemão o local onde fora enterrado. Farejou a terra remexida, alojou-se sobre o monturo da sepultura e ali permaneceu dias e noites sem se deslocar, a não ser para as necessidades básicas. Os coveiros, sensibilizados com tamanha fidelidade, começaram a trazer-lhe alimentos. Por ali foi ficando, ficando… tornou-se guardião daquela lúgubre morada. Viveu ainda longos anos sem arredar pé da sepultura de seu amo, até que a natureza providenciou-lhe o encontro dos dois, no além.

O coveiro não sabia o que fazer com o corpo do animal. Não tinha coragem de encaminhar para o lixão os despojos do ser mais fiel e amoroso que havia conhecido.

Não precisou de muita imaginação para resolver a questão. Decidiu dar-lhe guarita sob alguns palmos de terra fofa, junto daquele que velara por toda a vida. Lá ficaram ambos, amo e amado, unidos no silêncio da morte e na imensidão da eternidade.

Dizem que, às vezes, podem ser vistos a passear pelas nuvens, em meio a tufos de algodão. Com boa dose de imaginação, percebem-se entre cúmulos, os cabelos brancos do velhinho, e, logo abaixo, seu cãozinho de estimação, enroscado no “cangote da cacunda”.

Jô Drumond

quinta-feira, 2 de abril de 2020

O OUTONO EM QUE TUDO PAROU


Desde a Segunda Guerra Mundial, existe o temor de uma terceira grande beligerância, bem mais devastadora, considerando-se o avanço tecnológico dos últimos tempos.

Filmes, seriados e livros repassam às novas gerações cenas reais e ficcionais dos horrores da guerra e do holocausto. Percebe-se que a insensatez do belicismo é capaz de colocar a humanidade em risco por motivos nem sempre plausíveis.

Nunca se pensou que a Terceira Grande Guerra fosse deflagrada por uma pandemia provocada por um inimigo invisível e antagônico; fragilíssimo (passível de ser destruído com água e sabão) e poderosíssimo (capaz de dizimar grande parte da população mundial em tempo recorde). Veem-se as mais diversas nações unidas contra um adversário comum: o coronavírus. Sua rapidez de disseminação em todos os continentes é espantosa. A Covid 19 é inofensiva às crianças e tem certa complacência com a juventude, embora seja impiedosa com os idosos. Por ironia, esse vírus outonal dizima sobretudo aqueles que se encontram no outono da vida. Ele ronda a “morte saison”, epíteto que se dá, em francês, à estação contígua ao outono, em que não há frutificação, no polo Norte.

Sabe-se que o diagnóstico desse mal se confunde inicialmente com o de uma gripe comum, mas, em
poucos dias, o vírus pode provocar alterações pulmonares, obstruir as vias respiratórias e matar por asfixia, um dos mais temíveis tipos de morte. O auxílio do pulmão artificial nem sempre é suficiente.

O mundo está quase todo parado. No Brasil, ruas e avenidas, fervilhantes no dia a dia, encontram-se completamente desertas; praias ensolaradas sem banhista algum; bares, comércio, indústria, estabelecimentos de ensino... de portas cerradas. As Forças Armadas foram acionadas para ajudar no que se fizer necessário. Apenas setores essenciais da engrenagem social continuam funcionando, como abastecimento de víveres e de combustíveis, atendimento médico-hospitalar e farmacológico, assim como uma parcela dos transportes.

Plagiando o título do filme datado de 1951, “O dia em que a terra parou”, pode-se dizer que 2020 está sendo o ano em que a terra parou. As futuras gerações, com o devido distanciamento temporal, tomarão conhecimento do que se passa hoje em dia, per omnia saecula saeculorum, por meio de registros documentais e/ou ficcionais.

Elas verão o rompimento das fronteiras geográficas e a diluição das fronteiras sociais; verão pipocar problemas de relacionamento familiar, no confinamento domiciliar obrigatório; verão a tensão permanente no ar. Todos são vulneráveis. A qualquer momento, aos primeiros sintomas de simples gripe, pode-se ser isolado dos familiares, em um cômodo da própria morada e posteriormente em hospitais, em caso de agravamento. Também verão a agonia e o pavor da morte solitária por asfixia, em isolamentos, sem mão amiga, sem palavra de conforto, sem ombro de apoio; verão a desolação dos que restam, pela partida abrupta de entes queridos, sem gesto de adeus; verão o luto fechado pelos que se foram e o temor do luto futuro pelos que se irmanarão a eles, rumo ao imponderável; verão, sobretudo, a efemeridade da chama da vida e a espera agônica do temeroso porvir.

Com o agravamento da crise, as aglomerações e a circulação urbana são desaconselháveis. Em alguns países e/ou cidades, como em Paris, devido à propagação alarmante do vírus, é decretada a proibição de sair de casa, salvo em casos excepcionais. Os infratores se veem sujeitos a onerosas multas. À primeira vista, parece exagero, mas essa medida cautelar tem um motivo matemático muito simples. Com a multiplicação diária dos contaminados, em um futuro próximo, não haverá hospitais suficientes para milhares de enfermos, nem cemitérios para os mortos. Hospitais de campanha estão sendo construídos da noite para o dia, em campos de futebol e em outros espaços urbanos disponíveis.

Muitos dos incansáveis profissionais da saúde, expostos à denominada Covid 19, apesar de todas as medidas cautelares de proteção, estão morrendo, na luta inglória de ajudar os desventurados.

A população, confinada em seus lares, é bombardeada por informações, em tempo real, pelos meios de comunicação. Pelas redes sociais, recebem também toda sorte de fake News amedrontadoras, criadas certamente por mentes sádicas, com o intuito de causar o pânico e/ou o descrédito dos dados oficiais.

Observa-se que a desventura, em larga escala, tem deflagrado muita solidariedade entre países, todos unidos contra um inimigo comum; os menos afetados ajudam os que se encontram em estado de calamidade pública. Gesto humanitário bonito de se ver.

O que estamos vivenciando no momento é algo totalmente inusitado; poder-se-ia dizer: inimaginável ou ficcional. Todos nós somos atores involuntários dessa tragédia humana, com desfecho ignorado.

Jô Drumond / 31 de Março de 2020