domingo, 20 de outubro de 2019

O PODER DA SÁTIRA


Em minhas últimas andanças por Paris, observei que diversas peças teatrais de Molière estavam em cartaz, em quinze diferentes salas de espetáculo. Às vezes, a mesma peça era encenada simultaneamente por diferentes grupos, em diferentes salas. Outras peças do mesmo autor eram encenadas na mesma sala, em diferentes horários. Sabe-se que, em suas farsas e comédias, Molière (1622-1673), o maior dramaturgo cômico do teatro francês, satirizava usos e costumes de sua época e de seu país, no século XVII. Como se explica seu sucesso de público, hoje em dia, em diversos países, com temáticas pretensamente ultrapassadas? 

A meu ver, tais peças nunca serão ultrapassadas por um simples motivo: apesar de todo o avanço científico e tecnológico, no tempo e no espaço, o ser humano quase não muda, em sua essência. Até hoje existem práticas milenares de crendices que já deveriam ter desaparecido da face da terra. As peças encenadas atualmente atacam velhos hábitos a serem corrigidos no século XVII, na França, no reinado de Luís XIV. No entanto, tudo indica que tais hábitos permanecem ainda hoje. Entre eles, a hipocrisia reina absoluta.

Molière acreditava que se podiam educar os homens por meio do teatro. Adotava a divisa Castigat ridendo mores (correção dos costumes pelo riso), do poeta Jean de Santeuil (1630-1697), seu contemporâneo. Em suas peças, Molière ataca os maus hábitos e os vícios de sua época. A sátira seria uma espécie de arma utilizada por ele, para coibir excessos e desvios sociais e/ou individuais.

A título de curiosidade, durante minha estada em Paris, resolvi fazer um levantamento das peças encenadas atualmente, com o intuito de detectar que tipo de sátira daquela época atinge nossos contemporâneos e provoca neles o riso fragoroso. São elas:


L’Avare (O Avarento) Tema: avareza.

Subtemas: burguesia / tirania paterna / casamento de conveniência / burguesia.

Tartuffe (Tartufo, O Impostor) Tema: a hipocrisia moral e religiosa.

Subtemas: ingenuidade dos devotos / falsa devoção / ambiguidade do cristianismo / tirania paterna.

Le Bourgeois Gentilhomme (O Burguês Fidalgo) Tema: presunção do parecer em detrimento do Ser (um burguês que se faz passar por fidalgo).

Subtemas: a falsidade nas relações sociais, o poder das bajulações / o poder do dinheiro / o novo-rico / avidez por títulos e honrarias / crítica à nobreza / crítica à ignorância dos burgueses. Obs. A peça foi concebida na época da queda da aristocracia e da ascensão da burguesia.

Les Fourberies de Scapin (As Artimanhas de Scapino) Tema: a inversão de valores sociais.

Subtemas: crítica aos casamentos por interesse, em detrimento do amor/ crítica à hierarquia social.

Don Juan. Tema: o sedutor implacável, que despreza a vítima tão logo ela é seduzida.

Subtemas: burguesia / médicos / hipocrisia / gosto pela ostentação /falsa moral cristã / superstição / caráter indissolúvel do casamento.

Le Malade Imaginaire (O Doente Imaginário) Tema: a hipocondria (da qual o mundo ainda está repleto, sobretudo em cidadãos da terceira idade).

Subtemas: burguesia / medicina/ tirania paterna / egoísmo.

Le Misanthrope (O Misantropo) Tema : hipocrisia.

Subtemas:: falta de sinceridade nas relações sociais e afetivas.

Le Médecin Malgré Lui (Médico à Força) : Tema : crítica aos médicos e ao charlatanismo.

Subtemas: crítica aos amores contrariados dos jovens, devido à tirania paterna.




















Pode-se observar, em quase todas as peças em cartaz, a reincidência da sátira à hipócrisia, à tirania paterna, aos casamentos de conveniência e à burguesia.

Muitos estudiosos da teoria do riso, como Henri Bergson (1859-1941), concordam com a função social da sátira e com o efeito catártico do teatro, mas há também quem os conteste.

René Bray (1896-1954), por exemplo, acredita que o mundo da comicidade tem como único objetivo provocar o riso. Segundo ele, o avarento que assiste à peça L’Avare, rirá muito do personagem Harpagon, mas não deixará de ser sovina, ao chegar a casa.

O teórico do riso, Vladimir Propp (1895-1970) sustenta um meio termo. Em sua opinião, a sátira tenta ajudar a superar certos desvios sociais, mas nem sempre consegue corrigi-los. Alega que um alcoólatra não sairá curado após ter assistido a uma comédia contra o alcoolismo. Pode, talvez, sair mais conscientizado dos riscos a que está exposto.

Concordo com Propp. A meu ver, o sucesso atual das peças citadas indica que a assertiva de Santeuil, Castigat ridendo mores, do século XVII, era duvidosa. Se os mesmos vícios e maus costumes perduram até os dias de hoje, a sátira não cumpriu sua missão de corrigi-los. por meio da derrisão.

Concluindo, Molière não escrevia para a posteridade, mas para seus contemporâneos, mais especificamente, como já foi dito, para os que viviam na Corte de Louis XIV. Mesmo assim, ou por causa disso, suas comédias e farsas sempre tiveram e ainda têm grande aceitação, até nossos dias, mundo afora. Presume-se que isso aconteça porque, em qualquer tempo e em qualquer lugar, o ser humano continua o mesmo, com seus medos, suas crendices, seus ciúmes, suas traições, suas paixões, seus vícios, suas virtudes, suas venturas fugazes... e sobretudo porque se compraz em rir de suas próprias desventuras.

Destarte, ao se falar do torrão natal, qualquer que seja, fala-se, por conseguinte, do mundo e do ser humano em geral. Tostói (1828-1910) tinha razão ao afirmar : « Se queres ser universal, escreve sobre tua aldeia.

sábado, 5 de outubro de 2019

SOMOS APENAS PASSANTES


Uma “soirée” inesquecível, na Biblioteca Pública Estadual de Vitória, reuniu recentemente muita gente elegante, inteligente e estudiosa, em comemoração aos 70 anos da AFESL (Academia Feminina Espírito-Santense de Letras). Houve homenagens, entrega de medalhas, declamação de poemas, boa música, e um coquetel de confraternização que alimentou mais a alma que o corpo.

O encontro festivo das imortais me remeteu a reflexões sobre efemeridade e a finitude da existência humana. Dentro de uma década, na festa dos 80 anos, certamente algumas nós não estarão mais aqui. Talvez eu seja uma delas. Com certeza, na festa dos cem anos, quase todas as quarenta cadeiras terão com novas ocupantes, que darão continuidade ao nosso labor literário. Não sei se isso me deixa alegre, pelo fato de existir, ou triste, pelo fato de ter que partir.

Não há como lutar contra as leis da natureza. Somos apenas passantes. No entanto insistimos em deixar nossos traços, por meio da escrita. Trata-se, de certa forma, de uma doce vingança contra a inexorabilidade da morte. Nossos escritos permanecerão mais tempo que nós, mas eles também terão sua finitude. Tudo depende das condições atmosféricas. Estas dependem do sistema solar. O Sol, como toda estrela, um dia se apagará, apagando juntamente com ele nossos sonhos e nossos traços.

Jô Drumond – 2019

Ocupante da cadeira nº 10