sábado, 30 de maio de 2020

MIGRAÇÃO INVOLUNTÁRIA

corujas buraqueiras
Moradores da Mata da Praia, em Vitória (ES), conviveram algumas décadas com uma família nada usual. Severino, Carolina e seus pimpolhos são da família Speotytocunicularia, conhecida popularmente como coruja buraqueira, espécie terrícola de hábitos diurnos. Não se sabe ao certo em que época escolheram sua morada. Um vizinho das locas disse-me que as via por ali havia cerca de 45 anos. Como a expectativa de vida delas é de nove anos, mantinham fidelidade ao torrão natal por várias gerações.

A Praça Márcio Sarmento faz parte de meu percurso habitual de caminhadas matutinas há mais de duas décadas. Devido a um projeto de urbanismo da Prefeitura de Vitória, tal praça se transformou em canteiro de obras. Senti um misto de contentamento e tristeza. Vislumbrava o embelezamento da quadra, mas consternava-me o iminente deslocamento das corujinhas de estimação, sempre revisitadas durante minhas caminhadas diárias. Tratores, betoneiras, escavadeiras, serras, falatórios, cantorias, radinhos de pilha... ruídos de toda sorte deixavam-me apreensiva com relação às aves. Tirei férias. Ausentei-me de Vitória por longo tempo. Ao retomar as caminhadas matinais, encontrei a praça já quase pronta, com calçadas, canteiros, plantas, bancos, ginastas, crianças, babás, bolas, velocípedes... e as lindas corujinhas. De longe avistei um canteiro redondo, com uma placa, na qual se lia: “Lar das corujas Severino e Carolina. Não perturbem.” Procurei a administração do parque, para congratulá-la pela preservação da área das locas. Soube que as obras haviam sido acompanhadas de perto pelos responsáveis, com o intuito de minimizar os ruídos e evitar maiores transtornos àquelas aves.

FOTO DO FINAL DAS OBRAS
Soube também que elas se sentiram incomodadas, mas não se intimidaram. Tendo apurada audição e visão cem vezes mais aguçada do que a do ser humano, instalavam-se, durante o dia, em cumieiras ou postes, para se afastar do barulho, espreitar o movimento e, sobretudo, para manter a guarda dos filhotes, aninhados no fundo das locas. À noite, voltavam ao lar, nos buracos do banco de areia. Em momento algum abandonaram o local. Sua persistência sensibilizou os moradores, que chegaram a fazer um abaixo-assinado, para que não fossem elas despejadas pela Prefeitura durante as obras. Daí a razão da existência do canteiro a elas reservado.

Acabei me interessando pelos seus hábitos, pesquisando-os. Aprendi que aquele local prestava-se sobremaneira para o habitat da família. Seus ninhos favoritos situam-se normalmente em locais relativamente arenosos, com baixa vegetação. Aninham-se entre março e abril em suas escavações meticulosamente forradas de materiais os mais diversos, inclusive aqueles que favorecem a manutenção da temperatura ideal. Alí põem de seis a doze ovos. Nessa época, os pais tornam-se agressivos. Atacam qualquer vivente que se aproxime das locas. Durante as quatro semanas de incubação, a fêmea cobre os ovos com o próprio corpo, para que se mantenham aquecidos. O macho encarrega-se de lhe trazer comida. Depois da eclosão dos ovinhos, durante os primeiros meses, tanto o pai quanto a mãe trazem alimentos para os pequerruchos.

A coruja buraqueira é relativamente pequena. Quando adulta, chega a medir de 23 cm a 27 cm. Das 34 espécies e subespécies de corujas existentes no Brasil, a maior delas chega a medir 52 cm; e a menor mede apenas 14 cm. O Brasil é o país de maior biodiversidade do mundo e um dos maiores em quantidade de espécies de aves. As de rapina, tais como corujas, mochos, urutaus, curiangos e noitibós, são grandes caçadoras: visão aguçada, movimentos rápidos, giro da cabeça em até 270°, e voo silencioso para não afugentar a presa, graças a penas especiais, macias e numerosas.

Soube também que essa variedade de corujas radicadas na praça é ligeiramente tolerante à presença humana e que, diferentemente das demais, tem hábitos diurnos. Caça insetos durante o dia, mas prefere a caça ‘‘crepuscular’’ de pequenos roedores. Sua dieta é bem variada. Além de insetos, alimenta-se de ratos, pequenos pássaros, serpentes, lagartos, rãs, peixes, escorpiões... Os frequentadores noturnos das quadras de tênis ou de bocha presenciam frequentemente seus voos em direção às tocas, com ratos presos ao bicos. Esses vizinhos alados fazem o controle ambiental ecologicamente correto da densidade populacional dos roedores, nas adjacências.

Moradores de boa fé, porém desinformados, prestavam um desserviço à comunidade local, ao depositar alimentos próximo às locas. Como as corujas não apreciam esses alimentos, eles apodreciam, causavam mau cheiro e atraíam moscas.

Depois de pronta, a praça tornou-se local ideal para passeios matinais e vespertinos da vizinhança, acompanhada de seus pimpolhos, para entretenimento, assim como dos cães, para seus cotidianos passeios defecatórios. As crianças corriam, gritavam e chutavam bolas ameaçadoras, próximo ao local. Os latidos dos cães, no entorno, amedrontavam as corujas. Estas, vigilantes e ansiosas por causa dos filhotes, postavam-se em árvores ou em postes. Atendendo a pedidos dos moradores, a prefeitura mandou instalar uma cerca de proteção no local reservado à família Speotytocunicularia. Mesmo assim elas se sentiam vulneráveis. Por fim, acabaram desaparecendo. Certamente encontraram outro local menos inóspito para criar família.

Atualmente, no canteiro a elas reservado, não há mais locas, tocos de árvores, nem corujas. Seu antigo lar está sombreado por uma frondosa árvore. Até os dias de hoje, uma década após a migração, durante minhas caminhadas matinais, ainda paro para verificar se, por acaso, os descendentes de Severino e Carolina resolveram voltar à antiga morada.

FOTO 10 ANOS DEPOIS.