terça-feira, 26 de novembro de 2013

A DOMÉSTICA PETULANTE

Jõ Drumond
Minha amiga Vicentina procurava por uma doméstica para serviços gerais, em sua residência. Publicou um anúncio no jornal e agendou algumas entrevistas. Uma das candidatas foi assaz impertinente. Com ares arrogantes, de “nariz em pé”, antes de saber quais seriam as tarefas diárias foi logo expondo suas exigências:
─ Veja bem minha senhora! Eu só trabalho oito horas por dia, nem meio minuto a mais, com uma hora de repouso para a sesta. Não faço serão, nem mesmo remunerado. Não trabalho aos sábados, domingos, feriados, nem em dias santos. Na manhã de segunda feira, não lavo vasilhas sujas, usadas no final de semana. Não me peça para cuidar de crianças; não é minha praia. Não gosto tampouco de lavar, nem de passar. Isso é serviço extra, para lavanderia. Posso me encarregar da cozinha e da casa, mas preciso de uma faxineira uma vez por semana para a limpeza pesada.
Impressionada com a petulância da candidata, Vicentina aguardou pacientemente o final da explanação, e com seu habitual bom humor lhe perguntou:
─ Minha filha, você sabe tocar piano?
─ Não, não sei!
─ Então você não poderá trabalhar em minha casa. Doméstica, aqui, tem que saber tocar piano.

Desconcertada, sem saber o que dizer, como se diz na roça “com cara de tacho”, a exigente candidata foi logo se dirigindo à porta de saída, sem nem mesmo se despedir.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

POMPA NA PRAÇA DA LIBERDADE

  *Jô Drumond

No dia 31 de março de 2011, ao descer pelo elevador do edifício Niemeyer, para uma caminhada matinal na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, fui surpreendida por estranha movimentação. Viam-se mais soldados, plantados por toda parte, do que árvores. Havia cordões de isolamento, radiopatrulhas, ambulâncias e arranjos florais ladeando um longo tapete vermelho. Para fugir do aparato cerimonial, desci a Avenida João Pinheiro. Na altura do arquivo público, vinte lustrosos cavalos com montarias cobertas de cetim vermelho contendo aplicações em branco, preso às rédeas, aguardavam juntamente com pomposos dragões da Infantaria. Estes exibiam belas indumentárias e penachos na cabeça. Parecia evento festivo, mas tratava-se das exéquias do ex-vice-Presidente da República  José de Alencar, que se despediu do mundo dos vivos com honrarias de Chefe de Estado. Desci até a livraria Horizonte, no térreo do Edifico Solar, antiga residência da atual Presidente de República, Dilma Roussef. No interior da livraria, um cliente, irritado com o caótico trânsito devido ao forte esquema de segurança, começou a vociferar.
─ Vocês viram o caos desta cidade hoje? Pra que tanta segurança se o homenageado já está morto? Vocês acham que ele merecia todo esse aparato? Qual nada! O que fez pelo Brasil? Nada! Foi simplesmente um ex-Presidente que frequentava mais o hospital do que o Palácio do Planalto. Todos dizem que era um homem de valor pelo fato de ser muito “humano”. Todo mundo é humano: meus pais, meus irmãos, eu, vocês..., todos somos humanos, não é verdade? Vocês se lembram da última cerimônia fúnebre ocorrida no Palácio da Liberdade, há quase trinta anos? Pois bem, no dia do enterro de Tancredo Neves, houve um grande tumulto, com um saldo de cerca de trinta mortos pisoteados e muitos feridos.
Percebendo a surpresa geral, visto que nenhum dos presentes se lembrava de tumulto algum divulgado pela mídia da época, ele continuou ainda mais enfático.
─ Vocês não estão acreditando? Eu era tenente da polícia militar, na época, e trabalhei durante o evento. Posso lhes assegurar que até hoje há muitos cadeirantes e mutilados, que se feriram gravemente durante o tumulto daquele dia. Não sei a razão pela qual o fato não veio a público, mas aconteceu diante de meus olhos.
Sandice ou verdade? Na dúvida, dei ouvidos moucos ao discurso do desconhecido, comprei os livros que me interessavam e deixei o exaltado ex-tenente com sua pequena plateia formada pelos clientes da livraria.
De volta ao Edifício Niemeyer, fui barrada por três guardas. Ninguém podia se aproximar do Palácio. Tive que convencê-los de que meu destino era o Edifício ao lado do Palácio, não a cerimônia, que, aliás, não me interessava absolutamente.
Do nono andar, pus-me a observar a turba enxameada que se apinhava nas cercanias e a refletir sobre a razão pela qual tanta gente se dá o trabalho de sair de casa e de se deslocar para um evento desse tipo. Evidentemente não seria pelo falecido nem por sua família, visto não ter com eles nenhum vínculo de amizade nem de familiaridade. Seria compreensível, se se tratasse de algum ator televisivo, cuja presença cotidiana nos lares cria laços de familiaridade; de um compositor de música popular, que tocasse diretamente o coração dos ouvintes, de um grande artista de cinema ou de político com aura de celebridade, mas o homenageado não se encaixava em nenhuma dessas opções. Teria razão o enraivecido cidadão da livraria Horizonte? A dispendiosa pompa fúnebre feita com dinheiro público e o grande transtorno causado no trânsito da capital se justificariam?

  *Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

OROZIMBO, O GUARDIÃO PRESTIMOSO

Por: Jô Drumond
Quando vou a Belo Horizonte, hospedo-me ao lado do Palácio da Liberdade, com direito ao desfrute das sinuosidades arquitetônicas de Niemeyer, no edifício que leva seu nome. Plantado num local privilegiado das alterosas, o edifício de acentuada leveza e rara beleza foi construído pelo famoso arquiteto logo após o complexo arquitetônico da Pampulha. Suas arrojadas linhas modernas contrastam fortemente com o estilo eclético dos antigos edifícios do entorno, que dão ares parisienses à Praça da Liberdade. Imponente, repleto de curvas e contracurvas, belo em todos os ângulos, o edifício não tem fachada definida. Sua presença é constante nos manuais internacionais de arquitetura moderna. As vidraças, de parede inteira, são protegidas por marquises estreitas e próximas umas das outras, de modo a impedir o acesso direto do sol, e a proporcionar claridade e ventilação adequadas a todos os apartamentos.
Foi dentro dessa obra de arte que Tancredo Neves, falecido entre a eleição e a posse à presidência da República, havia plantado seu domicílio. Foi também dentro dessa mesma obra que minha irmã Francisca, minha anfitriã habitual, amarrou seu viver.
Há mais de duas décadas, transferi meu domicílio de Belo Horizonte para Vitória (ES), cidade linda e acolhedora, onde fui muito bem recebida. Desde então continuo frequentando as alterosas para rever parentes e amigos.
Até pouco tempo, sempre que eu me aproximava da entrada do edifício Niemeyer, um porteiro ancião, arqueado pelo peso da idade, tão logo me avistava pela porta envidraçada, levantava-se com solicitude, ajudava-me a carregar a bagagem e fazia questão absoluta de abrir a porta do elevador e de apertar o botão do andar ao qual eu me dirigia. Alegre e prestativo, mantinha um dedinho de prosa com todos os que chegavam ou saiam. Nunca me esquecerei de seu nome, nada usual: Orozimbo. Perguntei-lhe um dia por que não se aposentava. Disse-me que já era aposentado havia tempos, mas que só pararia de trabalhar depois de morto. O vai e vem da portaria era sua energia vital. Não abria mão daquele posto para ninguém, a não ser que fosse demitido. Esse risco não existia.  Todos os moradores tinham por ele grande apreço e afeição. Além da indubitável competência e solicitude no trabalho, ocupava o posto de guardião da entrada, desde a inauguração do prédio, em meados do século XX. Era como se ele fizesse parte integrante do patrimônio do edifício Niemeyer.
Responsável por numerosa prole, trabalhava inicialmente doze horas por dia, das seis da noite às seis da manhã, a fim de avolumar o vencimento, no final do mês. Depois de idoso, passou a trabalhar no turno da tarde, das 14h00 às 22h00. Sacolejava num lotação por cerca de sessenta minutos em direção ao bairro Palmares.
Certo dia, chegando a minha hospedagem habitual, um novo porteiro me recebeu. Não abriu a porta do elevador, não apertou o botão, nem se ofereceu para aliviar o peso da bagagem. Aliás, nem se deu o trabalho de se levantar. Apenas apertou um botão, diante de si, para meu acesso ao hall de entrada. Tomei o elevador, apreensiva pelo mau presságio. O que teria acontecido com o Sr. Orozimbo?
Lamentavelmente, aconteceu o inevitável. Fiquei pesarosa como se tivesse perdido alguém da família. Dei-me conta de que não sabia quase nada sobre ele. Lastimei a perda, assim como o fato de não lhe ter dado a devida atenção. A má notícia suscitou questionamentos existenciais e revisão de valores. Para que tanta correria?  Para chegar aonde? Mais cedo ou mais tarde, os ponteiros de cada um param no quadrante da existência, sem delongas. Consternada, e com a consciência um tanto pesada pela omissão, quis saber mais sobre aquela figura que, de certa forma, fez parte de minha história de vida. Obtive seu número de telefone e disquei. Uma voz feminina respondeu. Identifiquei-me, indaguei a respeito de seu passamento... conversa vai, conversa vem, acabei me inteirando de seus passatempos favoritos e das minúcias do cotidiano. Adorava ser chamado de vovô por todas as crianças do bairro. Plantava cana para ter a satisfação de distribuí-la à criançada da rua. Aproveitava caixas de fósforos vazias para fazer carrinhos, e usava palhas de milho para fazer bonequinhas. Não aprendeu a ler, mas fez questão de que seus sete filhos frequentassem a escola. Estes, em idade escolar, usavam tamancos e pastas de madeira, feitos artesanalmente pelas hábeis mãos de Orozimbo (medida de economia, considerando-se o parco salário de porteiro). Depois de velho, ocupava seus momentos ociosos fazendo móveis em miniatura para as crianças, assim como peneiras e balaios de bambu para os adultos.
A casa onde sua família ainda reside foi erguida em adobe, por suas próprias mãos, aos domingos, únicos dias de folga. Sempre gostou de cultivar o pomar e a horta, de tocar violão e de aquietar o espírito tragando um cheiroso pito de palha. Não era religioso. Fez do trabalho sua oração. Segundo sua filha, ele se pôs a chorar, tão logo foi informado, pouco antes de morrer, aos oitenta anos, que não tinha condições físicas de continuar trabalhando. Corroído pelo câncer, teve que abandonar a carcaça e partir para outra dimensão. Deve estar hoje lá no alto, fazendo brinquedinhos para legiões de querubins.
Pessoas simples, como Sr. Orozimbo, às vezes tecem uma rica história de vida, que pode passar despercebida pelos que o cercam, todos muito apressados, correndo inutilmente atrás dos ponteiros dos relógios.

 *Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)

domingo, 3 de novembro de 2013

O CAMINHO SE FAZ AO CAMINHAR

Por: Jô Drummond

(Texto feito no dia de finados, em homenagem aos vivos)

(Texto inspirado na imagem de Luiz Clementino,
publicada no livro de fotos Pelos Sertões, pg.132)
Parado no meio da estrada e da vida, sem alegria nem tristeza, o matuto cinquentão não sabe se vai ou se fica. Já percorreu muito chão e ainda há a percorrer. Chapéu e pito de palha, olhar perdido a vaguear na lerdeza do tempo, põe-se a matutar. Qualquer lugar é bom pra morrer, mas desde que se chega ao mundo há um tempo a percorrer, sem astúcia de atalhos. Voltar já não pode; o passado já passou. Ficar não lhe apraz; não há o que fazer. Só lhe resta seguir adiante, mas seguir para onde? A estrada não leva a parte alguma. Da vida que leva, só levará os andrajos para ocultar a carcaça. Dessarte, o melhor é seguir em frente, caminhar, caminhar e caminhar... até aonde a vista não alcança; o importante não é chegar; é prosseguir a andança sem desassossego; é vaguear pelas vírgulas da estrada sem parar nos pontos de interrogação e sem cisma de ponto final;

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do 
Instituto Histórico (IHGES)