terça-feira, 13 de dezembro de 2016

TERTÚLIA OURO-PRETANA

 Jô Drumond
  
Em Ouro Preto há um grupo de intelectuais que se reúne mensalmente para discutir assuntos do momento, assim como para fazer elucubrações literárias, boa música, poesia e gastronomia. A seleta confraria, além do prazer da prosa, tem direito ao repasto “dos deuses”, servido ao final de cada encontro. Enquanto os amantes da culinária se esmeram, na cozinha, os demais degustam bons vinhos na sala de estar. A discussão se torna cada vez mais acalorada, segundo o aumento do teor etílico no sangue.

Ouro Preto é uma cidade surpreendente. A cada visita descobrem-se novos ângulos, novas miradas estéticas, novos amigos, novas inspirações, e, por conseguinte, novos “causos”. Na última visita a essa cidade que sempre me encantou, meu marido e eu tivemos o privilégio de ser convidados, excepcionalmente, por amigos de longa data, a participar de tal tertúlia. A anfitriã, como muitos artistas e intelectuais ali residentes, um dia foi conhecer a cidade, apaixonou-se pelos ares ouro-pretanos e por ali foi ficando até se radicar definitivamente, sem nenhuma intenção de voltar para sua terra natal.

Do alto de uma vertente, pelas janelas do espaçoso casario onde fomos recebidos, tínhamos ampla visão do barroquismo tortuoso e assimétrico do perímetro urbano, com suas ruelas e becos centenários, repletos de fantasmagorias. A visão panorâmica abarcava o bruxuleio da cerração nos campanários iluminados das diversas igrejas.

Numa ocasião como essa, na qual todos gostam de se manifestar e de expressar suas opiniões, acontece comigo o inverso. Atenho-me a observar os participantes e as réplicas de cada um, como se estivesse num teatro. Fico atenta a todos os detalhes: entonação e timbre de voz, ênfase das réplicas, gesticulação, posição corporal, expressões fisionômicas, conhecimento de causa... Enfim, observar, para mim, é mais divertido que participar.

Em um dado momento, naquela “soirée”, viajei no tempo. Senti-me como se estivesse num encontro dos Inconfidentes, no século XVIII, sem sedição, sem risco da famigerada derrama, sem ideal libertário, mas numa acalorada discussão a respeito da conturbada vida política e econômica do país. O perfil do grupo se aproximava sobremaneira do perfil dos inconfidentes: cidadãos instruídos, intelectualizados e bem informados; maioria diplomada em outras plagas, com alto poder aquisitivo e posição de destaque na sociedade.  Nas reuniões atuais, discutem-se desmandos e corrupção no poder, altos juros bancários, impostos, desemprego, aumento da pobreza... No século XVIII, discutiam-se as mesmas questões, evidentemente com a devida atualização política, econômica e social: desmandos e corrupção dos governantes, jugo da coroa portuguesa, impostos escorchantes, miséria do povo... Porém faltava-me um Tiradentes, ou seja, um jovem exaltado, entusiasta, falastrão e sem grandes posses, para quebrar a hegemonia do grupo.

Subitamente, não sei por que cargas-d’água, alguém perguntou se Sabará ficava dentro do Quadrilátero  Ferrífero. Um dos presentes, que se dizia historiador, aproveitou a ocasião para nos passar informações gerais, em tom professoral. Segundo ele, o Quadrilátero ocupa uma área de 7.000 km2, próxima a Belo Horizonte. Além de Sabará, citou Rio Piracicaba, Congonhas, Casa Branca, Itaúna, Itabira, Nova Lima, Santa Bárbara, Mariana, Ouro Preto, entre outras localidades. Disse também que essa região coloca o Brasil, ainda nos dias de hoje, em posição de destaque, no cenário mundial, na produção de ouro e ferro.

A partir daí, a conversa tomou o rumo das minas e dos veios de ouro. Não é por acaso que o Estado tem esse nome. Durante o ciclo áureo da extração,  entre 1700 e 1820, o Brasil foi o maior produtor mundial do “vil metal”. Metade das reservas de ouro do Brasil ainda se encontra em Minas Gerais.
 Outro senhor, que se dizia geólogo, aproveitou a ocasião para “vender seu peixe”. Começou a explanar sobre os três grandes conjuntos de rochas que caracterizam o Quadrilátero. Depois, passou a citar formações rochosas. Esbanjou terminologia técnica, que a ninguém interessava. Sua fala era por demais árida para aquele tipo de encontro. Alguns dos presentes esboçavam bocejos. Outros se mostravam entediados. Os mais inquietos se levantavam, davam uma volta pelo salão e aproximavam-se das janelas para apreciar a paisagem. Ainda insatisfeito com a demonstração de sapiência, o dono da palavra passou a descrever os tipos de rochas propícias à mineração.

Foi então que tudo mudou. Eis que, “não mais que de repente”, surgiu “meu” Tiradentes: um jovem exaltado, dono de uma verdade diversa daquela, com menos diplomações, mas com muito conhecimento técnico do assunto e “bala na agulha”. Ele tomou a palavra e desbancou o Doutor, afirmando exatamente o contrário: aquele não era um tipo de solo peculiar à exploração de ouro. Tal jovem, cujo nome me escapa, já meio ébrio e cansado de tanto palavrório, fez questão de contradizer o sabichão. Ambos engataram uma divertida discussão do tipo bate-rebate, cada um se esforçando para ganhar a credibilidade da plateia. Em um dado momento, o mais velho, já impaciente com a petulância do jovem, disse:
— Meu filho, eu tenho conhecimento de causa. Essa é minha especialidade. Eu sou geólogo, com PHD em formações rochosas.
— O senhor pode ser doutor, pós-doutor, pode ser o “escambau” mas não entende “porra” nenhuma disso.
Todos riram fragorosamente pela surpresa da réplica e pelo inesperado vocabulário chulo. A anfitriã, para evitar maiores exaltações, convidou delicadamente a todos para a sala de jantar. A lauta ceia  transcorreu na santa paz, com suave fundo musical e temas mais amenos, como convém a comensais civilizados. Como dizem os franceses, “tout est bien qui finit bien”.


*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias. 
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES) 

domingo, 27 de novembro de 2016

RELEMBRANDO O CAOS PAULISTANO

(Crônica publicada em 2010, no livro Tearte, com o título “O sertão é aqui e agora”)

*Jô Drumond

Congestionamento no trânsito 
Três dias atrás, domingo, 14 de maio de 2006, estava eu em Vitória, fazendo as malas, para participar, em São Paulo, do Seminário Internacional João Guimarães Rosa, em comemoração do cinquentenário das obras Grande sertão:veredas e Corpo de baile, organizado pela USP. Pelo jornal televisivo, tomei ciência dos tumultos na capital paulista, gerados pelo corte de mordomias de certos prisioneiros, que, segundo a mídia, comandavam o crime organizado de dentro dos presídios, por meio de telefones celulares. Embarcar ou não; eis a questão! Pelo sim, pelo não, escolhi o sim, na esperança de que se tratasse apenas de casos isolados.

Na expectativa de me encontrar com os maiores especialistas da obra roseana, tomei o avião às seis horas da manhã, com tempo de sobra para dar entrada no hotel e chegar à USP antes das dez, horário da abertura do Seminário. Ao chegar ao aeroporto de Congonhas, soube da lentidão do tráfego. Seria mais prudente ir diretamente para a Universidade e dar entrada no hotel no final da tarde, já que a reserva durava até às dezoito horas. Foi o que fiz. Cheguei ao auditório onde seria a abertura do Seminário, com 45 minutos de antecedência e não havia mais assentos disponíveis, nem mesmo no chão. Dei a volta por traz e consegui bem no fundo, no canto esquerdo do auditório, um exíguo espaço para ficar de pé. A concorrida abertura contou com a presença dos “Miguilins”, grupo de jovens de Cordisburgo (MG), terra de Guimarães Rosa, que são treinados desde tenra idade para serem contadores de histórias, repetindo nos palcos, os causos escritos por GR. Após as apresentações dos jovens, ouvimos os depoimentos de José de Mindlin e de Antônio Cândido, grandes nomes da intelectualidade brasileira, contemporâneos do autor, e que tiveram com ele laços de amizade e de camaradagem intelectual.

Na parte da tarde, havia menos participantes e, por conseguinte, assento para todos. Cerca de 17:00 horas, justamente no momento em que um pesquisador apresentava suas reflexões sobre o estado de violência descrito na obra literária, alguém entrou na sala, subiu ao estrado, e cochichou algo ao dirigente dos trabalhos. Este tomou a palavra e disse: – Senhores e senhoras, o sertão é aqui e agora! Acabo de ser informado que, devido ao caos reinante nas ruas da capital, o Reitor deu “toque de recolher” para toda a Universidade.

Congresso interrompido. Lembrei-me da bagagem que me aguardava na sala ao lado. Não havia táxis nem ônibus em circulação. Desolada e isolada, no Campus Universitário, longe de tudo, sem conhecer ninguém, fiquei desnorteada. As notícias, entre os congressistas, eram desencontradas. Segundo boatos, que se espalhavam rapidamente, bombas haviam sido jogadas contra outras universidades. A Usp estava na mira dos agitadores. Escolas, comércio, bancos, tudo havia sido fechado, naquela tarde, por causa das arruaças. Trabalhadores e estudantes ficaram nas ruas, à procura de condução para voltar para casa.

“Viver é muito perigoso” é um mote repetido diversas vezes ao longo da narrativa de Grande sertão:veredas, uma das mais importantes obras literárias do século XX. Na jagunçagem do sertão brasileiro, retratada pelo escritor Guimarães Rosa, viver era realmente muito perigoso. Se saltarmos de um século para outro, e do sertão para a cidade de São Paulo, uma das maiores megalópoles do mundo, podemos repetir, no início do terceiro milênio, o mesmo mote de Riobaldo, personagem e narrador da obra: “viver é muito perigoso”. O motivo continua o mesmo: a violência, o banditismo e a subversão à ordem estabelecida.

Na capital paulista, nesses últimos três dias, houve, segundo o noticiário, 251 atentados, com cerca de 100 mortos, 51 feridos, 80 ônibus incendiados, bombas e rajadas de metralhadoras em agências bancárias, assim como em estabelecimentos comerciais e escolas. A ação, tanto por parte dos bandidos quando dos policiais, gera medo na população, que teme ambos os contendores. Tudo isso, somado aos engarrafamentos, tornou a vida paulistana caótica. A polícia, fortemente armada, e com medo dos inusitados atentados, atira em qualquer cidadão com atitude suspeita. Nesse clima de pânico, todos são suspeitos até que se prove o contrário.

Em decorrência de inúmeras “blitzes” policiais e da drástica redução da frota de coletivos, provocada por incêndios e depredações, o trânsito não flui. Os pontos de ônibus encontram-se superlotados. Os táxis desapareceram por encantamento. Raramente, quando surge um deles no tumultuado horizonte urbano, já está lotado.

A cidade de São Paulo, em tempos normal, já me mete medo. Nesse final de tarde, comecei a entrar em pânico após ficar plantada por mais de uma hora, com as malas na mão, tentando um táxi. O dia estava escurecendo. Uma livreira da Universidade, da qual eu havia comprado vários volumes, se apiedou de mim, e conseguiu-me uma carona. Entrei mais que depressa num carro onde havia duas congressistas. Gastamos mais de uma hora para sair do Campus, devido à lentidão do trânsito, praticamente parado. Demoramos algumas horas para rodar poucos quilômetros. Nesse pequeno percurso, presenciamos depredações, evacuação de ônibus, violência policial, correrias e tumultos. Uma das congressistas tentava me acalmar dizendo-me que assim que encontrássemos um ponto de táxi, nós duas seguiríamos juntas e que ela me deixaria na porta de meu hotel, próximo à avenida Paulista, pois esse seria também seu percurso. A que estava dirigindo, apavorada, queria voltar para casa o quanto antes. Ela deveria tomar a direção oposta à nossa. Pedimos que parasse, por algum tempo, num cruzamento, para tentarmos um táxi. Aguardamos cerca de meia hora. Não havia táxis.

Avenida Paulista
Raramente aparecia algum, porém lotado. Nossa motorista ligou do celular, para seu marido, e lhe explicou a situação. Percebemos que ele lhe havia sugerido que se dirigisse imediatamente para casa. A congressista que havia prometido me acompanhar até o hotel, ao perceber a conversa dos dois ao telefone, apavorou-se e disse que acabaria de chegar a pé, mesmo que demorasse horas de caminhada, como era previsto. Foi o que fez. Deixou a pasta e os livros no assento traseiro do carro, passou a mão na bolsa, despediu-se rapidamente e foi engolida pela multidão. A outra decidiu tomar o rumo de casa e gentilmente convidou-me para dormir em sua casa, o que recusei. Lembrei-me que minha reserva expirava às dezoito horas e já eram quase dez horas da noite. Pedi-lhe que me deixasse à porta de qualquer hotel que estivesse em seu caminho. No primeiro, por azar ou sorte, havia apenas um quarto livre, de alto luxo e, evidentemente de alto preço. Não me senti no direito de lhe pedir para procurarmos um hotel mais modesto. Paguei uma fortuna, mas tive minha noite de rainha.

Agora são 10:00 horas da manhã. Estou num amplo e confortável quarto de hotel, armada de papel e caneta, registrando os fatos e aguardando notícias mais alentadoras. Todos os canais de televisão, desde ontem, só focalizam o caos paulistano. Por precaução, decidi não ir à Usp nessa manhã. Ao meio dia, no vencimento da diária, sairei de mala e cuia à procura de outro hotel à altura de meu bolso. Não sei como enfrentarei o caos paulistano nos próximos dias de congresso. Riobaldo tem
"O sertão está em toda parte"
razão. Realmente, “viver é muito perigoso”. Nos labirínticos meandros da existência, um minotauro pode estar à nossa espreita. Em qualquer direção, a qualquer momento, ele poderá surgir em nosso caminho. O perigo de viver consiste no próprio fato de existir. Guimarães Rosa tinha razão ao afirmar que “o sertão está em toda parte”.


*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias.
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

A MAGIA DO BELO

 Jô Drumond

Aficionada às artes, sempre gostei de visitar museus, sobretudo aqueles voltados para pintura, escultura e mobiliário antigo. Certa vez, em Bruges (Brugge), na Bélgica, tive a oportunidade de apreciar uma retrospectiva de um dos meus pintores prediletos: Paul Cézanne (1839-1906). Foi sorte rara ver reunida, em um só espaço, grande quantidade de obras do renomado artista. Cézanne, muitas vezes enquadrado entre os pós-impressionistas, abriu novos caminhos para a arte do século XX e trouxe uma nova concepção de percepção da realidade. Em algumas de suas obras, ele prenuncia as pesquisas do Cubismo.

Ao percorrer lentamente as galerias, observando cada quadro, deparei com uma obra que me deixou paralisada. Um frisson percorreu todo meu corpo. Mal pude disfarçar as lágrimas. Para um visitante qualquer, poderia ser a representação de uma floresta. Para mim, era muito mais que uma pintura a óleo. Era o Belo absoluto, arrebatador. celestial.  Mergulhei o olhar naquele suposto arvoredo e deixei-me enveredar por trilhas sinestésicas, tentando prolongar ao máximo possível aquele momento de pura estesia. Era como se a obra tivesse sido especialmente concebida para meu deleite pessoal. Não sei por quanto tempo estive estática diante do quadro. Perdi a noção temporal. Alguém esbarrou em mim. Percebi então que todos se movimentavam. Devia seguir o fluxo dos visitantes. Por duas ou três vezes, fiz a volta completa naquele recinto e parei diante do “meu” Cézanne, para uma última mirada. Tratava-se de uma oportunidade única. Dificilmente poderia postar-me novamente diante daquele original. Nenhuma reprodução surtiria o mesmo efeito; nem mesmo o original, em outras circunstâncias.

Na sequência organizada pela curadoria, o visitante não tinha retorno. Tão logo entrava, já seguia obedientemente em direção à saída.  Antes de abandonar o museu, desobedeci às setas e deslizei discretamente até meu ponto predileto. Ao entrar pela porta de saída, percebi a inquietação do vigilante. A contração dos sobrolhos e o olhar sobranceiro demonstravam seu nervosismo causado por meu inusitado retorno. Antes que a segurança do museu fosse acionada, saí rapidamente e me misturei à multidão. Caso fosse autuada por atitude suspeita, não saberia me justificar nem a mim mesma; muito menos aos guardas, em língua flamenga (neerlandês).

Já estive assim (enlevada, extasiada, arrebatada, maravilhada), por diversas vezes, diante do Belo. É algo inexplicável, um momento epifânico. Isso já me aconteceu diante de uma vitrine, ao observar um carrilhão barroco absolutamente deslumbrante, dourado, repleto de curvas, contracurvas, volutas e arabescos. Aconteceu de outra feita, no teatro Opéra Bastille, em Paris, diante da cena final do ballet,  Le lac du Cygne, numa  coreografia mesclada de projeção de imagens, no qual, o bailarino se transforma em cisne e alça voo. Aconteceu também durante um espetáculo de tango, em Buenos Aires, no qual dois dançarinos, olhos nos olhos, em perfeita sintonia, pareciam estar alhures, longe de tudo e de todos. Senti-me assim durante o filme Retratos da vida, ao som do “Bolero” de Ravel, com a inefável leveza de um único bailarino, num palco postado diante da torre Eiffel. O mesmo me aconteceu ao visualizar a antológica cena final do filme Rapsódia de agosto, na qual, uma velhinha centenária, com um guarda-chuva revirado às avessas, sob uma borrasca, corre contra o vento no meio de um capinzal que se curva em reverência à sua passagem.

Dizem que os artistas, de modo geral, são mais predispostos a isso. Na antiguidade, os gregos consideravam divinos esses momentos. A estesia diante do Belo assim como a comoção diante do Grandioso ou do Insólito indiciavam a presença de uma divindade. Talvez por isso se manteve, através dos tempos, desde tribos primitivas, a tradição de que a arte esteja, de algum modo, ligada ao absoluto, e de que o artista tenha dons que o distinguem dos simples mortais.

Pode ser que haja pessoas com maior ou menor sensibilidade ao Belo. O certo é que momentos mágicos como esses podem ocorrer no dia-a-dia de todos nós, graças a uma obra literária, a uma música, a uma imagem, ou simplesmente à observação das belezas da natureza. Isso faz com que a vida valha a pena ser vivida.

Segundo Hume Hogarth, “A beleza não é uma qualidade das coisas propriamente ditas; existe tão-só na mente que as contempla; e cada mente percebe uma diferente beleza”

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

domingo, 6 de novembro de 2016

O PADRE ATEU

*Jô Drumond


Nunca havia imaginado a possibilidade de existir um padre ateu, avesso a qualquer tipo de religião e, sobretudo, inimigo ferrenho do catolicismo. Tal antagonismo me incitou a obter maiores detalhes sobre a vida e a obra de um pároco aparentemente tão contraditório. Há um ditado popular, segundo o qual “para tudo neste mundo, há uma explicação”. Decidi buscar tal explicação, que muito me surpreendeu. É difícil acreditar que a grande guinada das concepções religiosas do século XVIII, chamado “O século da razão”, tenha sido provocada justamente por um virtuoso padre. Segue uma síntese do que foi pesquisado a respeito desse fato, a quem interessa possa.

Antes do século XVIII havia muito respeito com relação ao cristianismo e aos eclesiásticos. Ao longo desse século, as concepções dos descrentes, céticos e ateus, antes ocultadas e despercebidas, tornaram-se, aos poucos, públicas e notórias. Por isso as concepções filosóficas de Padre Meslier (1678/1733) só emergiram algum tempo após sua morte.

Jean Meslier, vigário durante mais de quarenta anos da igreja de um vilarejo chamado Étrépigny, no norte da França (região de Champagne-Ardennes), teve uma história de vida antagônica. Suas ações eram absolutamente incompatíveis com seus pensamentos.

Certa vez ele recriminou o homem mais poderoso do povoado, Sr. Touilly, por  ter maltratado camponeses. Sentindo-se ofendido, Touilly deu queixa à autoridade competente, o Arcebispo de Reims, que repreendeu veementemente o padre. Este, sentindo-se injustiçado por ter dito a verdade, “botou a boca no trombone”, no sermão do domingo seguinte, diante dos fiéis:

Eis aqui a sorte costumeira dos pobres párocos do interior; os Arcebispos, que são os grandes Senhores, os desprezam  e não os escutam. Recomendemos portanto o Senhor deste lugar. Oremos a Deus para Antoine de Touilly: que Ele o converta e lhe dê a graça de não maltratar o pobre e de não despojar o órfão.

Voici le sort ordinaire des pauvres Curés de Campagne ; les Archevêques, qui sont de grands Seigneurs, les méprisent & ne les écoutent pas. Recommandons donc le Seigneur de ce lieu. Nous prierons Dieu pour Antoine de Touilly ; qu'il le convertisse & lui fasse la grâce de ne point maltraiter le pauvre, & dépouiller l'orphelin.

Estando presente na pregação, Touilly sentiu-se novamente incomodado e voltou a dar queixa ao Arcebispo, que, desta vez, ordenou que o padre se apresentasse pessoalmente diante de si, para as devidas repreensões e ameaças. Desde então, Meslier silenciou e foi mantido, até o fim de seus dias, no mesmo lugarejo, sem nenhuma promoção, sem nenhum benefício. Desgostoso da subordinação clerical, ele poderia ter-se desligado da Igreja, mas não o fez. 

Sabe-se que até meados do século XX, os longos estudos nos seminários não habilitavam os aspirantes a nenhuma função, a não ser o sacerdócio. Com o intuito de evitar a evasão do clero, a Igreja e o Estado tinham um acordo tácito, para que os seminaristas não tivessem diplomas estatais. Assim, não eram habilitados para nenhum trabalho fora do que lhes era proposto. Se Meslier abandonasse a Igreja, perderia a oportunidade de ajudar seus paroquianos, não teria o que fazer, quiçá nem meio de subsistência. Descrente do texto bíblico desde o início, ele se deu conta de que a única maneira de ajudar seu povo seria justamente manter o cargo e distribuir a arrecadação obtida com os mais necessitados.

Meslier se indignava pelo fato de a Igreja proteger os parasitas que oprimiam e exploravam o povo: soldados, eclesiásticos, juristas, e a nobreza. O rei (que para ele não tinha poder divino, como se acreditava na época), em conluio com o clero, dominava toda a tirania. Abaixo o rei! Os homens deveriam viver sem opressões político-religiosas. Há uma frase muito contundente e extremamente revolucionária de Meslier, muito citada por seus estudiosos:

Eu queria, e esse seria o último de meus desejos, eu queria que o último dos reis fosse estrangulado com as tripas do último padre.

Je voudrais, et ce serait le dernier de mes souhaits, je voudrais que le dernier des rois fût étranglé avec les boyaux du dernier prêtre.

O santo homem consagrou seus dias a ajudar o próximo. O desvelo e a dedicação para com os paroquianos o teriam conduzido a uma possível beatificação ou canonização, não fosse a herança deixada intencionalmente a seu rebanho, que reverteu seu status de “bendito” para “maldito”. Ao morrer, além de deixar seus parcos pertences para os pobres, deixou também, registrado em cartório, algo que estarreceu toda a gente: um testamento filosófico manuscrito dedicado a seus paroquianos, contendo trezentos e sessenta e seis páginas, recopiado manualmente duas vezes. Destarte, deixou 3 exemplares para expressar sua última vontade: a de desvelar um segredo que o violentava cotidianamente, guardado a duras penas por mais de quatro décadas. 

Advertiu, por escrito, dois amigos seus, Voiri (vigário de Guignicourt) e Delavaux (vigário de Boulzicourt) que um dos três exemplares tinha sido entregue ao Cartório de Mézières, e mencionou a possibilidade de darem sumiço em tal texto, devido ao “mau hábito (do poder estabelecido) de impedir que as pessoas humildes se instruam e busquem a verdade”. O manuscrito depositado em cartório, embrulhado num grosso papel cinza, à guisa de envelope, foi endereçado ao Sr. Roux, Procurador e Advogado Oficial de Mézières. Do outro lado do pacote, ele deixou a seguinte mensagem:

Eu vi e reconheci os erros, abusos, vaidades, loucuras e maldades dos homens; eu os odiei e os detestei ; eu não ousei dizer durante minha vida, mas direi pelo menos ao morrer e após minha morte; e é para que o saibam, que eu fiz e escrevi o presente Memorial para que ele possa servir de testemunha de verdade a todos os que o verão e que o lerão, se lhes aprouver.

J'ai vu & reconnu les erreurs, les abus, les vanités, les folies & les méchancetés des hommes ; je les ai haïs & détestés, je ne l'ai osé dire pendant ma vie, mais je le dirai au moins en mourant & après ma mort ; & c'est afin qu'on le sache, que je fais & écris le présent Mémoire, afin qu'il puisse servir de témoignage de vérité à tous ceux qui le verrons & qui le liront si bon leur semble.

Ainda jovem, aos 55 anos de idade, Meslier morreu por inanição, de forma lenta, natural e intencional. Seus biógrafos não mencionam “suicídio”, termo muito forte em se tratando de um representante da Igreja. Dizem apenas que, desgostoso da vida, ele passou a recusar os alimentos necessários à sobrevivência; não bebia nem mesmo uma taça de vinho (o que é de se estranhar, em se tratando de um francês).

O conteúdo do manuscrito poderia ter passado despercebido se não tivesse caído nas mãos de quem pudesse se interessar por ele. Não por acaso, os enciclopedistas tomaram conhecimento do texto. Informado da existência do manuscrito, o filósofo iluminista francês Voltaire se interessou por ele e, 33 anos após a morte de Meslier, fez uma publicação expondo, por meio de excertos, os sentimentos, os pensamentos e as convicções do padre ateu e anticlerical. Como Voltaire era deísta, incluiu algumas atenuantes que, de certa forma, amputaram ou desvirtuaram parte importante da mensagem. Depois de Voltaire, outros estudiosos se debruçaram sobre o Testamento de Meslier, e possibilitaram a divulgação de suas reflexões, seus “sentimentos e pensamentos”, como ele próprio havia intitulado. O longo título, bem abrangente, apresenta uma síntese do que está por vir: 

Memorial dos pensamentos e sentimentos de Jean Meslier, cura de Étrépigny e de Balaives, sobre uma parte dos erros e dos abusos da conduta e do governo dos homens, onde se veem demonstrações claras e evidentes da vaidade e da falsidade de todas as divindades e de todas as religiões do mundo, para ser endereçado a seus paroquianos após sua morte, e para lhes servir de testemunho de verdade, para eles e para todos os seus semelhantes.

Mémoire des pensées et des sentiments de Jean Meslier, curé d’Étrépigny et de Balaives, sur une partie d’erreurs et des abus de la conduite et du gouvernement des hommes où l’on voit des démonstrations claires et évidentes de la vanité et de la fausseté de toutes les divinités et de toutes les réligions du monde, pour être adressé à ses paroissiens après sa mort, et pour leur servir de témoignage de vérité, à eux et à tous leurs semblables.

Numa carta inicial, à guisa de prefácio, ele prepara o espírito do leitor para a revelação de sua verdade. A seu ver, todas as religiões são invenções humanas calcadas na mentira, na ilusão e na impostura. Em tom peremptório, incita os fiéis a abandonar a religião.

Justifica o fato de ter abraçado uma profissão diretamente oposta às suas concepções e esclarece que teria dito tudo em vida, se tivesse podido fazê-lo. Afirma ter sempre desprezado aqueles que se aproveitavam da simplicidade e da cegueira do povo, aqueles que recebiam somas consideráveis na compra de preces; os mesmos que engordavam à custa do suor e da labuta do povo. Fala de seu sofrimento, sendo forçado à pregação de piedosas mentiras que tanto detestava. Afirma ter evitado o máximo possível, dentro de suas funções, mencionar os odiados dogmas. Desprezava seu ministério, particularmente a “supersticiosa missa” e as “ridículas administrações de sacramentos”, sobretudo os que exigiam solenidade para atrair a piedade e a boa-fé de todos. 

Quanto remorso ele demonstra ter carregado devido à credulidade dos fieis! Padre Meslier se penitenciava por ter que passar aos paroquianos concepções que não eram suas e que deveriam ser combatidas. Não acreditava no Deus cristão, nem na imortalidade da alma. A seu ver, os Evangelhos eram repletos de baboseiras e contradições; os milagres eram fraudes; a dita “Divina Providência” era perversa; Jesus teria sido apenas um fanático, que dava conselhos contrários à natureza humana, tais como aspirar à pobreza, recusar os prazeres e se resignar aos sofrimentos.

Termina a nota explicativa dizendo que esteve mil vezes a ponto abrir os olhos dos paroquianos, mas um temor superior às suas forças o conteve e o manteve em silêncio até à morte.


Sua filosofia se alastrou mundo afora de maneira extraordinária. Seu texto é considerado fundador do ateísmo e do anticlericalismo militante na França. Meslier pode ser considerado precursor do Iluminismo francês, da Revolução Francesa, da mudança de concepções religiosas, do Socialismo, do Anarquismo e de outras tantas tendências oriundas do Racionalismo.



*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

QUESTIONAMENTOS RELIGIOSOS

*Jô Drumond

Oriunda de família extremamente religiosa, fui batizada, catequizada e crismada. Repetia como papagaio o que me havia sido ensinado pelas freiras, durante a catequese. “Quem é Deus? Deus é um espírito perfeitíssimo e eterno, criador e redentor do Céu e da Terra”. Na minha ingenuidade, repetia aquilo de cor, sem saber o que era “espírito”, o que era “redentor” e muito menos quem era “Deus”. A distinção entre Céu e Terra era simples. Sabia que o céu era azul; e a terra, marrom; que o primeiro ficava sobre minha cabeça; e a segunda, sob meus pés.

Minha primeira Comunhão, aos 7 anos
Quando criança, eu me ajoelhava semanalmente num confessionário, em vista da comunhão dominical. Toda boa menina tinha que mostrar sua pureza no ato da comunhão. Lembro-me que, como não tinha pecados, fiz uma lista de eventuais deslizes, considerados por mim faltas graves, como, por exemplo: eu me esqueci de rezar antes de dormir; ataquei a despensa sem pedir permissão à mamãe (a despensa de minha casa era repleta de guloseimas); falei palavras feias; desejei mal ao próximo; tive maus pensamentos...  Recitava a mesma listinha todos os sábados, diante de um confessor que nada dizia. Apenas passava a penitência, que pouco variava: rezar um Pai Nosso e duas ou três vezes a Ave Maria. Um belo dia ele me perguntou que mal eu havia desejado ao próximo. - Desejei que minha coleguinha tropeçasse e caísse - respondi. A penitência não mudou. Pensei que fosse me perguntar também quais eram os maus pensamentos. Certamente ele não se animou. Seria pura perda de tempo inquirir os pecados de uma garotinha de sete ou oito anos de idade. Além do mais, a fila tinha que andar.

Na adolescência, fui membro efetivo da Legião de Maria. Fiz trabalhos legionários em enfermarias de hospitais e em favelas. Rezava diariamente, antes de dormir, a catenas legionis, cuja antífona ainda permanece em minha memória: “Quem é essa que avança como a aurora, formosa como a Lua, brilhante como o Sol, terrível como o exército em ordem de batalha?” Naquela mesma época, como catequista, continuava repetindo aos pimpolhos o que havia aprendido no ensino religioso.

Aos 17 anos, todas as normalistas deveriam comungar durante a missa de formatura. Minha classe era numerosa. Fomos juntas, cerca de sessenta colegas, à igreja dos padres capuchinhos, em Patos de Minas, para a confissão. O padre, ao se dar conta da quantidade de moçoilas, não se animou a atender uma a uma. Disse que faríamos uma confissão comunitária. Eu nunca havia ouvido tamanho disparate. O que seria confissão comunitária? Teríamos que dizer publicamente, em voz alta, nossos pecados?

Ele fez uma pequena pregação, solicitou alguns minutos de silêncio para que pensássemos,  nos arrependêssemos de nossos pecados e pedíssemos perdão, em linha direta com o Todo Poderoso. Depois de algumas orações, abençoou-nos e nos liberou. Não entendi a razão pela qual ninguém nunca havia mencionado essa possibilidade de ser perdoada pela divindade, sem me ajoelhar diante de um confessor. Fiquei revoltada por ter-me submetido inutilmente ao rito semanal de ir à igreja, durante tantos anos, desde a primeira comunhão. Enfrentava fila todos os sábados, repetia minha inútil lista fictícia diante do confessor, pagava penitência em falso alto de contrição, visto que os pecados eram inventados, para poder comungar durante a missa dominical, usando mantilha branca, símbolo da pureza.
Diziam no catecismo que, ao recebermos a hóstia consagrada, na ponta da língua, ela deveria ser colada no céu da boca até à dissolução completa. Como se tratava do corpo de Jesus, se a mastigássemos, o sangue escorreria boca abaixo. Eu tinha ao maior cuidado para que a hóstia nem tocasse os dentes. Não queria aparecer com a boca suja de sangue, dentro da igreja. Após a “famosa” confissão comunitária, comecei a duvidar desses disparates. Certo dia, em ato de rebeldia, fiz questão de mastigar a hóstia. Nada aconteceu.

Aos 18 anos, mudança radical de vida. Entrei para uma Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, na capital do Estado. Tive então oportunidade de conhecer jovens de minha idade, leitores de Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, entre outros existencialistas. O universo das Letras e da Filosofia se descortinava para a crédula provincianinha, que começava a questionar tudo o que lhe havia sido inculcado até então.

Toda noite, em vez de rezar, eu matutava. Se matar é pecado capital,  como e por que dizimar cidades inteiras em nome de Deus? Em Sodoma e Gomorra apenas uma parte da população masculina era pecadora, por que a mortandade geral de velhos, mulheres e crianças? E as guerras? Se “Deus é amor”, como justificar as guerras santas, feitas em Seu nome, desde tempos idos? Sabe-se que a religião foi a causa da maioria das guerras, em todo o mundo. O Islamismo e o Cristianismo, ambos monoteístas, se envolveram na origem das primeiras guerras “ditas” santas. A Bíblia relata milhões de mortes em nome de Deus. Só o dilúvio matou vinte milhões, salvo engano. E as pragas divinas? As sete pragas do Egito foram justas? E as pestes que assolaram o mundo? Acrescente-se a isso a morticínio das Cruzadas e a da Santa Inquisição. Se Deus é um “espírito perfeitíssimo”; Ele deve ser justo. Como explicar tantas injustiças, doenças, catástrofes, acidentes, crueldades e tanta dor? A resposta já vinha pronta: “é castigo!”. Não, não pode ser! Sendo Ele um pai bondoso e amoroso, não poderia castigar, mas sim orientar e conduzir seus filhos, sobretudo protegê-los.

Recai então, sobre nós, a questão do livre-arbítrio. O Pai, nesse caso, “lava as mãos” e deixa os filhos agirem por conta própria, vulneráveis aos males do mundo, ou seja, “ao deus-dará”. Isso seria justo? Sendo onisciente e onipresente, Ele sabe de antemão tudo o que vai acontecer. Por que então não evita terremotos, furacões, inundações, acidentes, guerras, pestes, doenças, desastres (sejam eles físicos, morais, materiais, emocionais), enfim, todos os revezes causadores de sofrimentos?

As pessoas religiosas são naturalmente fatalistas. Para elas, quando algo de bom ou de ruim acontece, é porque “estava escrito”. Escrito onde, quando, por quem e por quê? Como poderíamos ser responsáveis por nossos atos, se houvesse um destino pré-existente já traçado para cada um? Tudo que fizéssemos recairia na responsabilidade de quem o traçara? Para quem acredita em destino, o livre-arbítrio cai por terra. Não tem razão de ser. Desde o nascimento, caberia ao destino definir se o indivíduo seria crédulo ou incréu.

Nos dias de hoje, sabe-se que ter fé não é questão opcional. Com a ajuda da ciência, prova-se que o fato de ter fé não acontece por vontade própria, nem pelos ditames do destino. No início deste terceiro milênio, pesquisas científicas confirmam que os indivíduos portadores do gene VMAT2 são intuitivos e mais religiosos. Os que não possuem tal gene são mais reflexivos, têm raciocínio lógico e dificuldade em acreditar em algo impreciso. Sabe-se que esse gene “é responsável pela regulação das chamadas monoaminas, que têm papel importante na construção da realidade e na percepção das alterações da consciência, situações comuns em experiências místicas.” Ter fé significa crer prontamente, sem exigir comprovação científica. Os místicos, diferentemente dos racionais, preferem acreditar a perscrutar. Destarte, bem-aventurados sejam os portadores do VMAT2, pois crer dói menos que não crer.
Isso nos remete às reflexões de Nietzsche, contidas em O livro do filósofo: “O fato de acreditar na verdade é precisamente loucura [...] Ninguém pode, sem um pouco de loucura, acreditar tão firmemente possuir a verdade: o ceticismo não tardará a chegar [...] Até o ceticismo contém em si uma fé: a fé na lógica.”

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias

de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

O ALPINISTA ESCALAFOBÉTICO

 Jô Drumond

Distraidamente abro o jornal A Gazeta (ES), e deparo, na primeira página, com um desenho de um dorminhoco roncando no topo de uma pedra. À primeira vista, pensei que se tratasse de uma charge. O título era assaz sugestivo: “Sono na rocha; mistério em Rio Bananal”.

Na pequena nota, que remetia o leitor à matéria completa da página 13, constava, em poucas palavras, que o pedreiro Odair Berti, de 35 anos, após uma repousante noite de sono, acordara a 300 metros de altura, no topo inacessível de uma pedra, sem saber como fora parar naquele local.
Mais que depressa, folheei o jornal em busca da matéria citada. É incrível como o mistério aguça a curiosidade do leitor; fenômenos inexplicáveis atraem e ao mesmo tempo atordoam. Após ter lido a matéria completa, minha curiosidade aguçou-se ainda mais.

Segundo consta, ao se dar conta de que estava no alto de um penhasco rodeado por verdejante mata, o cidadão se desesperou. Pôs-se a gritar aos quatro ventos, e, com o braço erguido agitava nervosamente sua camisa, tal qual bandeira desfraldada, para que alguém o acudisse. Um morador da região o teria avistado e acionado o corpo de bombeiros. Segundo os  bombeiros que participaram do resgate, o acesso ao topo da pedra é extremamente difícil até mesmo com uso de equipamentos. Afirmaram que é praticamente impossível escalar a pedra sem recursos técnicos. O árduo trabalho de resgate, usando técnica de rapel, durou 12 horas.

Sem explicação lógica, Odair, apenas de bermuda e chinelos, não apresentava nenhum arranhão no corpo. Depois de esperar 17 horas nas alturas, o alpinista escalafobético mantinha-se no ápice do atordoamento. A insensatez do destino o havia colocado não se sabe como nem por que, no cume do penhasco. Seria loucura? A família assegura que não. Ele nunca havia apresentado sintoma de distúrbio mental. Seria sonambulismo? Mesmo que fosse, como teria galgado os 300 metros do paredão vertical apenas com os recursos que a natureza lhe deu, sem ferramenta alguma? Mistéeeerio...
Segundo o escritor Guimarães Rosa, “a lógica é a corda com a qual, o cidadão, um dia, há de se enforcar”. Situações inusitadas, como essa, desafiam todo e qualquer raciocínio lógico e suscitam as mais contraditórias especulações. Sem nenhuma explicação plausível, o fato veiculado na mídia acabou criando um clima de atordoamento. Cada um, à sua maneira, empenha-se em desvendar o enigma. Estudiosos e especialistas em alpinismo perdem-se num emaranhado de elucubrações. Ovniólogos apressam-se em buscar marcas da aproximação de alguma nave interplanetária. Os carolas, mais que depressa, atribuem o milagre ao santo de sua devoção. As comadres bisbilhoteiras põem-se a trançar uma rede de fuxicos. Místicos das mais variadas tendências louvam o poder do sobrenatural em detrimento das leis da física. Os lógicos queimam seus neurônios, na tentativa de desvelar o enigma.

Enquanto todos se apoquentam com a bizarria do “sono na rocha”, o poeta embarca no devaneio, alça voo até o cume do penedo, onde a inspiração o aguarda, e, com uma leva de maviosos versos, aproveita o ensejo para esculpir novos poemas.


*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias

de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

SINHÁ OLYMPIA E AS BRUMAS DE VILA RICA

* Jô Drumond

Dona Olympia fotografada com os filósofos
e escritores franceses, Sartre e Simone
de Beauvoir.
 Remonto ao início da década de 70, do século XX, período em que tive o privilégio de residir numa das mais encantadoras e envolventes cidades que conheci, elevada hoje a patrimônio histórico da humanidade. Deixei-me cativar pelo bruxuleio das brumas nos campanários, pelos fantasmas históricos que ainda povoam os tortuosos becos, pelos rangentes degraus das sombrias moradas, pelas pedras escorregadias das ladeiras, pelo nevoento lusco-fusco, pelo frio enriquecedor das invernadas, enfim, pela atmosfera singular impregnada de mistérios de antanho.


Naquela época, uma figura emblemática, atualmente engavetada sob alguma lápide barroca, perambulava pelos becos de Ouro Preto. Vívida na memória popular, como patrimônio folclórico ouro-pretano, Dona Olympia, ou Sinhá Olympia, presença festiva e colorida, enfeitava as ruelas da cidade, com longas saias rodadas, recheadas de anáguas engomadas, cores vivas, grandes chapéus floridos, rendas, colares, pulseiras, brincos e o inseparável batom carmim, para realçar a alvura de sua tez. 

         Habituada a uma vida pendular, vivia ora “aqui-agora”, ora na Corte lusitana, ou simultaneamente nas duas épocas. Louquejava pelas ladeiras suas histórias mirabolantes, fruto de sandice ou de esperteza – talvez de ambas ao mesmo tempo -, para subtrair alguns tostões dos turistas. Fazia-se fotografar ao lado deles - com a indumentária do Império - como descendente direta da antiga nobreza. Enfatizava suas origens, listando nomes de ilustres ancestrais; criava histórias ao sabor do momento. Destarte, angariava de turista em turista seu ganha-pão cotidiano.  Residia cerca de 50 metros da Matriz Nossa Senhora do Pilar, uma das mais requintadas igrejas do barroco brasileiro, cujo interior ostenta mais de quatrocentos anjos esculpidos em talhas de madeira cobertas por 400 quilos de outro e 400 quilos de prata.

Todas as manhãs, Dona Olympia escalava a íngreme rua da escadinha, apoiada num cajado enfeitado com flores, penas, broches, fotografias e tiras de papel colorido (seu cetro). Percorria a tortuosa rua São José e subia a rua Direita até a Praça Tiradentes, onde se situava a antiga rodoviária, seu  “point” preferido, local de grande afluência turística. Nos percursos de ida e volta,  fazia paradas estratégicas para descansar ou prosear com forasteiros. Depois de idosa, sem condições de flanar pelas ladeiras, postava-se no largo da Matriz do Pilar, a mais visitada pelos forasteiros.

Eu me comprazia a ouvir seus “causos”. Às vezes, matava o tempo ao seu lado, embarcando em seus devaneios de nobreza. A garbosa anciã, sem se desviar do intento monetário, não se esquecia de cobrar pelo entretenimento que sua presença me propiciava, ao que eu retrucava:

 – Mas, Dona Olympia, eu não sou turista!

Ela voltava então a seu reino encantado, rodeada por curiosa plateia itinerante. Ao perceber minha permanência no local, retomava o objetivo proposto.

– Moça, só mil cruzeiros, por uma foto ao meu lado!

Segundo seus biógrafos, foi uma jovem de rara beleza. Estudou no Colégio das freiras Vicentinas, em Mariana. Falava latim, gostava de ler, escrever poesias e tocar piano. Foi professora até cerca de 22 anos de idade. Não se sabe ao certo o que desencadeou a sandice, aos 29 anos.

A singularidade dessa figura acabou levando sua fama muito além das fronteiras. Chegou a ser capa da revista Times e participou de programa televisivo. Foi retratada por pintores, fotógrafos e compositores. Teve contatos com celebridades políticas e artísticas, como Juscelino Kubitscheck, Tancredo Neves, Sartre, Simone de Beauvoir, Vinícius de Moraes, entre outros. Foi musa inspiradora do poeta Carlos Drummond de Andrade e do compositor Milton Nascimento. Foi tema de samba enredo da Mangueira, na década de 90. Em 1975, criou-se, em Ouro Preto, a Escola de Samba Sinhá Olympia, que sempre aborda  temas relacionados à história e à cultura ouro-pretanas.

Sinhá Olympia recebia chapéus, medalhas e diversos presentes de várias partes do mundo. Nunca perdia o hábito da desnecessária mendicância. Os proventos da célebre esmoler eram divididos com os menos favorecidos.

Dona Olympia pelas ruas de Ouro Preto
Os moleques de rua se divertiam com sua reação ao ser chamada de “homem” (devido à voz grave). Para provar sua feminilidade, levantava as saias rodadas, sob as quais não nada usava.

Não é fácil delimitar os lindes entre lucidez e loucura em uma mente nebulosa. Mais difícil ainda, quando se cria um alter ego com o qual se deve atuar para sobreviver. Os dois perfis, por vezes, se mesclam. Nunca terei ciência do grau de matreirice e de insanidade que coabitavam naquela cabeça adornada de bizarros chapéus. Dona Olympia viveu suas vidas e se foi, levando consigo um lampejo do Império. 

No entanto, ela permanece incólume na memória da cidade. Ouro Preto, a antiga Vila Rica das minas, hoje sem ouro, continua sob a vigilância do Pico Itacolomi, embalada pelos sonhos dos Inconfidentes, pelos recônditos tesouros de outras eras, pela esperança de reaver a cabeça de Tiradentes - desaparecida do pedestal na calada da noite - e pelas quimeras do escravo Chico Rei sem reino. 

Nas fantasmagóricas noites ouro-pretanas, há quem ouça, ainda hoje, o arrasto das correntes e a plangência de seus súditos que, marcados a ferro e fogo, banharam de suor as minas e de sangue o pelourinho. Dona Olympia era o outro lado da moeda: a face da nobreza, da beleza, da alegria, do glamour e dos sonhos de tempos idos. A exímia contadora de histórias Olympia Angélica de Almeida Cotta (1889/1990) viveu a realidade do século XX, mas soube viver, oniricamente, todo o esplendor dos séculos XVIII e XIX.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias

de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)


quinta-feira, 8 de setembro de 2016

MUTIRÃO DOS VELHOS TEMPOS

 Jô Drumond

Algodão
Na década de sessenta, do século passado, ainda criança, presenciei alguns mutirões, nas fazendas da região da Charneca (MG). Naquela época, a lavoura ainda não era mecanizada. O mutirão era uma força cooperativa entre vizinhos, de modo a evitar que se perdesse alguma colheita ou que a erva daninha invadisse os pastos. Algumas vezes os mutirantes preparavam a terra para o plantio: roçavam, capinavam, aravam e plantavam.

O mutirão, também chamado de “treição” (corruptela de traição), era um dos eventos sociais mais apreciados da zona rural; um misto de lazer e cooperativismo. Mantinha-se grande mistério e também certo charme em torno do evento.
O proprietário da fazenda tinha de ser pego de surpresa. Sabia-se, por exemplo, que um deles estava precisando de mão de obra para uma colheita. Caso não a conseguisse, perderia grande parte da safra. Em mutirão, o trabalho que levaria meses a ser realizado, seria concluído em um só dia. Combinada a data, alguém da família do “traído” ficava de sobreaviso, para evitar transtornos de última hora.  Um grande grupo de famílias reunia-se bem cedo, num local previamente combinado, e chegava de surpresa à fazenda onde haveria o mutirão. Os homens aproximavam-se carregando seus instrumentos de trabalho, de acordo com a tarefa a ser executada: enxadas, enxadões, foices, arados, jacás, matracas, entre outros. Quando não havia serviço externo para as mulheres, ficavam todas encarregadas do copioso almoço, das guloseimas para a merenda e da preparação dos quitutes para o pagode noturno. Dependendo do número de participantes, frangos, porcos e garrotes eram abatidos. A comida era preparada na área externa, em grandes tachos sobre improvisados fogões a lenha.
Certa vez, minha mãe foi secretamente avisada de que haveria uma “treição” para meu pai. Ela deveria providenciar provisões, recipientes adequados, enfim, preparar a infra-estrutura doméstica, para que não houvesse nenhum contratempo. O que ela não sabia é que, naquele mesmo dia, haveria também uma “treição” para ela.
Num domingo, acordamos, ao raiar do dia, com a cantoria dos mutirantes. Os homens se aproximavam da sede da fazenda empunhando suas ferramentas de trabalho e cantando. As mulheres, por sua vez, os acompanhavam cantando e erguendo nos braços rocas, cardas, descaroçadores, sarilhos ou meadeiras, dobadouras, balaios e outros apetrechos para a manufatura do algodão. As mais prendadas para a culinária dirigiram-se à cozinha. A maior parte ficou na lida do algodão. Após a panha, feita em equipe, as crianças catavam os ciscos misturados aos chumaços. Em seguida passavam os tufos brancos pelo descaroçador. As mães cardavam e fiavam enquanto as meninas-moças dobavam os novelos e os acomodavam em grandes balaios, sempre rindo, cantarolando ou contando causos. Era grande a descontração. Às onze horas, o berrante ecoou, chamando para o almoço. Foi um momento de confraternização e alegria. No final do dia, finda a tarefa, os homens voltaram do campo em pelotão, empunhando enxadas para o alto, batendo umas contra as outras em ritmo de marcha e cantando repetidamente a estrofe:
Fui passar na ponte
A ponte tremeu
Debaixo da ponte
Jacaré gemeu
Abrindo o pelotão, um deles erguia um tipo de estandarte: um grande pé de milho, com raízes, folhas e espigas, simbolizando o final da tarefa cumprida.
A cachacinha começou a rolar solta antes do jantar, como aperitivo. Após um banho revigorante, todos se prepararam para o pagode noturno. Os que não participaram do mutirão, se quisessem dançar, teriam que pagar, pela entrada, o equivalente a um dia de serviço. Como instrumentos musicais havia: sanfona, reco-reco, viola e outras percussões improvisadas com utensílios domésticos. Muita dança, alegria e comilança. Era a típica festa familiar. Velhos, adultos, adolescentes e crianças, todos dançando a não mais poder: adultos com crianças, mulheres com mulheres, mães com bebês nos braços, e assim por diante. Só não se via homem com homem. Isso, jamais!
Dos flertes e namoricos desses pagodes germinavam os futuros enlaces matrimoniais. Nos mutirões, a alegria de ajudar o próximo era somada à alegria de se fazer amigos. Estreitavam-se os laços de amizade. Tanto na chegada quanto no término do serviço, os donos da casa eram erguidos nos braços dos mutirantes, entre vivas e aclamações. Com muita honra e satisfação, cada traído recebia sua “treição”.



*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGE)