sábado, 29 de dezembro de 2018

NICHO DE CORNICHOS (CORNOS E REGA-BOFES)

Pelos idos de 1950, nos recônditos do sertão mineiro, na região da Charneca, Jacintho, chamado afetivamente de Jacintim, andava de chamego com a mulher de seu compadre José Manoel, conhecido também como Zé Mané, vulgo Manezim. Desconfiado da infidelidade dos dois, o marido traído disse que ia viajar. Arreou seu cavalo baio e partiu. Amarrou-o no tronco de uma árvore, na primeira capoeira, voltou a pé, e se escondeu na tulha. O esperado aconteceu. Se bem o pensou, melhor o fez. Quando o infiel compadre entrou para o quarto de casal, ele aguardou um pouco mais e saiu da tulha, com o intuito de pegar os dois em pleno pecado da luxúria. Desprevenido, Jacintim saiu em disparada, como veio ao mundo. Zé Mané pegou suas roupas e disse à mulher que as devolvesse ao fujão. O dia do casal transcorreu na santa Paz, como se nada houvesse acontecido.

No dia seguinte, Jacintim recebeu um recado de seu compadre, convidando-o para uma prosa. Receoso, ficou em dúvida se atendia ao chamado ou se fugia. Esperava o pior. Carregou seu 38, colocou-o na cintura e partiu apreensivo, com um pé atrás. Imaginava mil cenas possíveis. O que faria se estivesse no lugar de seu compadre? Com certeza, boa coisa não seria. Era caso de vida ou morte. Em tempos de antanho, seria motivo de duelo. No meio do caminho, resolveu arrepiar carreira. Puxou o cabresto, a rédea, e virou o cavalo de volta para casa. Não cometeria uma asneira daquelas. Era situação deveras complicada. Marchou meia légua e parou à sombra de um ingazeiro, para matutar. Apeou e acendeu um pito de palha. Tinha que organizar as ideias. Caso não atendesse ao chamado, seria considerado medroso e covarde ad aeternum. Era homem de brios. Não poderia tornar-se motivo de chacotas, na região. O melhor seria enfrentar o que viesse pela frente. Se era para morrer ou matar, fazer o quê? O trintaeoitão carregado e a excelente pontaria que sempre tivera o tranquilizavam, em parte.

- Com tanta mulher no mundo, meu Deus, por que fui bulir logo com a comadre? - perguntava a si próprio - Não sou o único culpado. Ela sempre me deu trela: olhares de soslaio, sorrisos brejeiros, ares maliciosos, o balanço das ancas, da cozinha para a sala de visitas. Era mais graciosa comigo que com os demais. Estou certo disso. Gostava de exibir seu decote recheado de predicados, ao me servir cafezinho. Puxa vida! Não tenho sangue de barata!

Num rompante, jogou fora o pito, montou o bainho e cavalgou até o temido destino. Chegando lá, foi muito bem recebido pelo compadre. Engataram conversa sobre amenidades campesinas: a beleza dos pastos na invernada, a produção leiteira, a última safra, a comercialização dos produtos... jogaram conversa fora até a chegada do balanço das ancas, do decote e do cafezinho. Comadre Mariinha os serviu toda acanhada, sem olhar enviesado, sem sorrisinho zombeteiro. Seu semblante demonstrava um misto de medo, apreensão e interrogação. Olhava ora para um, ora para outro, sem dizer palavra. Servido o café, fez menção de sair. Quando ela pediu licença, o marido lhe determinou que tomasse assento e ouvisse a prosa. Dirigiu-se a Jacintim, que se mostrava muito tenso, cruzando e descruzando os dedos.

- Meu caro compadre, tenho muito apreço por sua pessoa e não quero ingresia consigo. De modo que, como você se enrabichou por minha Mariinha, a partir de agora ela é sua. Vou-me embora desta terra e aqui não volto mais. A casa e o terreno são dela. O telhado é meu. Você me paga o telhado, se não quiser vê-la exposta ao tempo. Só exijo uma coisa. Você vai ter que cuidar muito bem de minha Mariinha pelo resto da vida. Apesar de distante, vou ficar de olho. Se pisar na bola, será homem morto.

Jacintim não se encontrava em condições de recusar nada. Isaura, sua mulher, aperreada com o acontecido, não fez escândalo algum. Mineiramente, a artimanhosa esposa traída viabilizou um estratagema para se vingar do marido. Solicitamente, fez questão de ajudá-lo a cumprir o prometido. Preparava latas de carne conservada na banha de porco, rapaduras, queijos, polvilho, farinha de beiju, compotas variadas e demais víveres. Enviava-os à comadre Mariinha, por meio de Salustiano, um jovem vaqueiro de sua fazenda, viril e muito bem-apessoado. Para alegria e alívio da patroa, o esperado aconteceu. Em pouco tempo, Salustiano se engraçou pela dita cuja e acabou tomando o lugar de Jacintho no coração da traidora. Cada vez mais amiúde, a patroa o encarregava da aprazível tarefa de levar até à amada, ao cair da noite, alguns ingredientes da baixa gastronomia, para o jantar dos deuses, preparado por sua Maricotinha (era assim que ele a chamava, na intimidade), com direito a pernoite e usufruto da deleitosa anfitrionagem.

A estratégia previamente estudada e posta em prática por Isaura, para propiciar o novo relacionamento de sua comadre, funcionou a contento. O jovem Salustiano, mais bonito e mais atraente que o descaído e alquebrado Jacintim, conseguiu tirar do caminho da esposa traída o estorvo capaz de revirar os miolos do marido e de perturbar sua insossa vida familiar. Tendo atingido o objetivo proposto, Isaura parou, por completo, a solicitude na preparação dos víveres.

Como penitência pelo desairoso ménage à trois, Jacintho teve que bancar, sozinho e pelo resto da vida, não apenas a comadre, mas também seu novo companheiro, que trocou a vida de vaqueiro pela doce vida de teúdo e manteúdo da vitalícia teudice e manteudice custeada por seu ex-patrão.


Jô Drumond


quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

AFOGAMENTO DE UM ANJO



A imensidão talássica esconde belezas e mistérios em profundezas abissais. Esconde também o corpinho de Geanderson, de nove anos, que saiu sorrateiro de casa para uma traquinagem fatal: um banho de mar, às escondidas da mãe, com o amigo Dhanyel. Oceano atraente e traiçoeiro: beleza que atrai e trai, morada de Eros (fonte de vida e prazer), e de Thanatos, (fonte de morte e luto). Isso remete, na perspectiva psicanalítica, aos dois aspectos da “grande Mãe”, que dá e tira, concede e castiga.

A recorrente assertiva “uma imagem vale mais que mil palavras” veio-me à mente quando observei a foto estampada no jornal A Gazeta, do dia 12-12-2018. Impossível definir o sentimento expresso pela bela e trágica imagem. O desalento de uma mãe, à beira-mar, recostada a uma grande pedra, como se nela encontrasse algum apoio, varrendo com o olhar a superfície marítima, até à mescla com o azul-celeste, no afã de avistar os cabelinhos louros do filho desaparecido. Lembrei-me que, ironicamente, Eros, o deus grego, é normalmente retratado como um menino de cabelos louros.

Tentei, em vão, encontrar a palavra certa, um termo que traduzisse essa imagem: desolação, desacorçoo, tristura, desesperança, desencanto, desengano, desventura, infortúnio, tormento... tudo isso misturado e amalgamado à aflição de um temido desfecho que teimava em não acontecer.

A ansiedade da mãe oscilava entre o aparecimento e o perecimento do caçulinha, seu anjinho barroco.
Almejava a primeira opção, rejeitava a segunda. Ansiava por um provável resgate, por parte dos pescadores, e pelo caloroso abraço, ao tê-lo de volta são e salvo.

Provavelmente está em algum hospital - pensava. Uma boa alma deve estar cuidando dele. Em breve, aparecerá porta adentro gritando: Mamãe! Mamãe! Cheguei! Entrará correndo, de braços abertos, enlaçará minha cintura com as perninhas, meu pescoço com os bracinhos, como de costume, e me cobrirá de beijos. Será meu maior presente de Natal. Deus não vai me fazer uma desfeita. Sempre fui tão fiel a Ele! Nunca dormi sem rezar, nunca faltei missa aos domingos, sempre respeitei os mandamentos, sempre dei duro, criei meus filhos catando papelão na rua e fazendo faxinas, sem nunca ter cobiçado coisas alheias... decididamente, não mereço uma coisa dessas!

Rosilene passava o dia todo à beira-mar, abatida pela agonia da espera, enquanto os bombeiros continuavam as buscas. Abordada pelos repórteres, declarou: “Fico olhando para ver se aparece o cabelo loirinho dele na água. Peço a Deus para encontrar o corpinho dele. Preciso enterrar meu filho [...] quando nasceu tinha o cabelo loiro e enrolado. Parecia um anjinho. Um anjo que Deus me deu.”

No dia 8, na Barra do Jucu, Vila Velha (ES), um banhista filmou casualmente as últimas brincadeiras das duas crianças, que tentavam furar as ondas, cada vez mais ameaçadoras, sob um céu escuro, também ameaçador. O corpo de Dhanyel foi encontrado dois dias depois. O de Geanderson ainda não deu o ar da graça, apesar das constantes buscas por meio de barcos e helicópteros. Não se sabe até quando durará a agonia da mãe, que aguarda, há mais de uma semana, a resposta à pergunta que não se cala. Por onde anda meu menino? Como está ele? Vivo ou morto?

Essa incerteza está em sintonia com o simbolismo das águas em movimento: ambivalência, dúvida, vida/morte. A transitoriedade e a inconsistência das ondas têm como contraponto a dureza e a imutabilidade da rocha na qual Rosilene se apoia. De acordo com a simbologia bíblica, o rochedo (ou pedra) representa a força protetora de Deus. Essa pretensa força é a “taboa de salvação” à qual ela se agarra enquanto durar a interrogação, à espera do ponto final.

Jô Drumond

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

O NATAL E A IDADE DOS PORQUÊS


Atendendo à solicitação da campanha “Faça uma criança feliz”, em prol do Natal das crianças carentes, pedi a um dos meus netos que me ajudasse a separar os brinquedos com os quais ele não brincava mais, ou raramente brincava, para doá-los às crianças pobres.

- Por que você quer doar meus brinquedos, vovó?

- Porque crianças pobres não têm brinquedos.

- Existe criança sem brinquedo?

- Sim, infelizmente.

- Por que elas não têm brinquedos?

- Porque são pobres.

- Por que elas são pobres?

- Porque seus pais não têm dinheiro

- Por que eles não têm dinheiro?

- Talvez estejam desempregados... não sei bem... Venha, ajude-me a colocar esses aqui na sacola.

Tentei interromper os questionamentos, desviando sua atenção, em vão.

- Mas escuta, vovó: para onde você vai levar esses brinquedos?

- Vou entregá-los a algumas pessoas que estão fazendo uma campanha para o Natal das crianças pobres.

- Mas no Natal não precisa, vovó. Papai Noel é bonzinho! Ele traz presentes pra todo mundo.

- Sim, eu sei, mas, por exemplo, você tem muitos brinquedos e ganha ainda mais, no Natal. Não há mais espaço em seu quarto, para guardá-los. As crianças pobres também certamente vão ganhar, mas como têm poucos brinquedos, há mais espaço em suas casas.

- Vovó, as crianças pobres também vão à creche?

- Sim, certamente.

- Então elas devem ter brinquedos na creche.

- Pode ser, mas as creches em bairros pobres têm menos brinquedos. Vamos fazer uma coisa? Vamos ao playground brincar de pula-pula?

- Ôba! Vamos agora?

- Sim, é pra já!

Dessa forma, livrei-me da sequência do interrogatório. Sabe-se que, na idade dos porquês, a criança começa a despertar para o entendimento das coisas. Passa a observar e a perceber os fatos que acontecem em seu entorno, e se põe a questionar repetidamente, com uma série de porquês. É próprio da idade, e é importante que assim seja. Ela passa a ter percepção mais aguçada e começa a descobrir a si mesma e ao mundo. Trata-se de uma curiosidade benfazeja que a levará a novas descobertas.

Ao voltar do playground, eu já nem pensava mais na razão que nos havia levado até lá. Ele, no entanto, continuava atento. Abriu um armário cheio de brinquedos e me disse.

- Vovó, pode levar todos os meus brinquedos para as crianças pobres.

Tive que me controlar para conter as lágrimas.

Jô Drumond



sexta-feira, 30 de novembro de 2018

ANDANÇAS POR PARIS


Conhecer Paris a pé é uma excelente opção. Para isso, há um grande número de livros especialmente concebidos para ajudar os turistas, com indicação de diversos roteiros. No entanto é melhor que cada visitante trace seu próprio roteiro, na medida de sua preferência, de acordo com sua forma física e dentro do tempo disponível. Apesar de cansativo, não há nada melhor do que flanar pelos grandes bulevares, pelos eixos monumentais, assim como pelas estreitas ruelas do Marais e do Quartier Latin, os bairros mais antigos da cidade.

Para os iniciantes, uma ótima opção é começar a caminhada saindo da Place de l’Étoile, mas, antes disso, vale a pena subir até o alto do Arco do Triunfo pelo elevador, no centro dessa praça, para uma visão panorâmica do passeio.

A caminhada consiste em descer a Avenida Champs Élysées, uma das mais belas do mundo, com pausa no Grand Palais ou no Petit Palais, para visitar exposições permanentes e temporárias.
Continuar a descida do eixo histórico até a Place de la Concorde, no centro da qual há um antigo obelisco* egípcio, de 3.300 anos. Nessa praça, pode-se entrar no museu Orangerie, para admirar as imensas ninfeias impressionistas de Monet, pintadas nas próprias paredes, durante longos anos, em salas elípticas.
Dependendo da condição física do caminhante, seguir pelo Jardin des Tuileries, que dá acesso ao imperdível museu do Louvre, próximo ao qual se vê o Arco do Triunfo do Carrousel, alinhado ao Arco do Triunfo de l’Étoile, ponto de partida do caminhante. A visita ao museu, assaz cansativa devido à monumentalidade da construção, deverá ser feita em outra ocasião. O ideal seria ficar um mês inteiro dentro do Louvre, para ver tudo o que deve ser visto.

Como foi dito, passear tranquilamente, sem pressa, sem destino prefixado, com o único intuito de apreciar a cidade é uma boa pedida, mas um problema se interpõe aos turistas: a carência de banheiros públicos. Ultimamente foram instalados alguns, em esquinas estratégicas, mas a carência continua, devido ao enorme fluxo de pedestres. Aqueles que usam banheiro com mais frequência, como os que fazem uso de diuréticos, se encontram em apuros. Pode-se tentar em um café bar ou restaurante, mas as toaletes são reservadas aos consumidores. 

Certo dia, num desses longos passeios, na rue de Rivoli, tínhamos premência em usar uma toalete. Éramos três. Decidimos entrar em um bar, ao lado do Louvre, como consumidores, com outro objetivo específico. Ocupamos uma mesa próxima à saída e pedimos dois copos d’água mineral e um café. Ao me dirigir ao banheiro, fui interpelada por um garçom. Tentou impedir meu acesso, alegando que era reservado aos consumidores. Mostrei-lhe a mesa que estava ocupando, com outras pessoas. O acesso me foi permitido. Um a um, nós três fizemos o mesmo. Ao pedir a conta, surpresa: pipi a preço de ouro! Pagamos mais vinte euros pelo café e pelos dois copos d’água, ou seja, cerca de cem reais. Uma fortuna para brasileiros acostumados a pagar um ou dois reais, em banheiros públicos.

Saímos do café bar aliviados, porém contrariados. Antes que meus acompanhantes reclamassem da exorbitância do valor cobrado, lembrei-lhes o ditado popular: “bom cavalo é aquele que está próximo à porteira, quando precisamos dele”.

Na rue de Rivoli, encontra-se toda sorte de suvenires. Por isso é muito frequentada pelos turistas. Mas estes passam ao largo do que há de mais interessante nessa rua: os luxuosos antiquários, contendo esplêndidas peças da aristocracia francesa.

Enfim, a cidade luz é uma festa aos olhos, noite e dia. Um passeio noturno de barco, no rio Sena, ao som de violinos, com jantar gastronômico, tendo diante de si a feérica iluminação e a magnificência dos monumentos, ofusca até mesmo a alma.

*Obelisco Luxor foi um presente do vice-rei do Egito Mehmet Ali ao rei da França Carlos X, por volta de 1820. O Egito ofereceu à França três presentes considerados exóticos, durante uma aliança diplomática e militar contra ameaças de Inglaterra: o obelisco, uma dezena de múmias e a primeira girafa a chegar à França. Visitada por 600.000 pessoas, em 1827, essa girafa viveu no Jardin des Plantes, em Paris, até 1845, quando morreu.

Jô Drumond

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

A POLUIÇÃO DOS VELHOS TEMPOS


Atualmente, as crianças aprendem desde cedo a valorizar e a proteger o meio ambiente. Fala-se muito em ecologia, em sustentabilidade ambiental, em combate à poluição, o que é muito louvável. Nos dias de hoje, a noção de poluição, qualquer que seja, relaciona-se ao way of life da contemporaneidade. No entanto ela não é privilégio dos tempos atuais.  Sempre houve muita poluição em grandes aglomerações humanas.

Por exemplo: a quantidade de chaminés nos telhados de Paris é tamanha que lembra uma plantação. Os antigos prédios têm em média 5 andares. Em cada apartamento há, no mínimo, duas lareiras. Nos palacetes elas estão presentes não apenas na área social, mas em todos os quartos. Há basicamente uma lareira para cada duas pessoas. A densidade demográfica em Paris é de cerca de 21.500 habitantes por Km2 o que corresponderia a 10.750 lareiras acesas por Km2. Como a população atual é de cerca de doze milhões de habitantes, incluindo a periferia, se todos resolvessem acender suas lareiras ao mesmo tempo, haveria uma catástrofe gigantesca. Além da poluição do ar, aconteceria um desmatamento desenfreado para o abastecimento de lenha.

Na atualidade, as lareiras, presentes em todos os lares parisienses, são peças sobretudo decorativas. Certa época, o governo francês chegou a cogitar a proibição do uso desse tipo de calefação.  Isso não aconteceu simplesmente por ter sido desnecessário. Elas continuam imponentes, porém desativadas. Apesar do aconchego de outrora diante das chamas e das brasas, as lareiras foram preteridas, cedendo espaço à calefação a gás (chauffage), mais prática e menos poluente.

O “jeitinho” francês tem conseguido manter o charme de antanho, sem causar os transtornos previstos: a lareira virtual. É idêntica à tradicional, com brasas, chamas e calor controlados por meio da cibernética. Só os argutos observadores de pequenos detalhes conseguem perceber alguma diferença. As chamas variam de intensidade, de altura e de luminosidade, mas mantêm um ciclo, dificilmente notado pelos usuários. Mesmo ciente do fato, as pessoas se mantêm incrédulas diante do fogaréu, do calor e do estrépito das chamas.

Outro fator poluidor de épocas passadas eram os fogões à lenha ou a carvão. Pode-se viver sem lareira, mas não se pode viver sem alimento. O primeiro fogão a gás surgiu em 1836. Até então o meio ambiente, o ar e os pulmões de quem pilotava os fogões eram prejudicados. A causa mortis de muitas de nossas avós, bisavós, trisavós... era enfisema pulmonar, apesar de nunca terem fumado. Isso acontecia devido à proximidade do fogão à lenha, do ferro a brasas, assim como da fumaça dos fumantes com quem elas conviviam.

Após o advento do chauffage e dos fogões modernos, a tendência teria sido diminuir a poluição, mas surgiu outro complicador. Em 1885, usou-se o primeiro motor à gasolina. Desde então a qualidade do ar ficou comprometida com o monóxido de carbono expelido pelos canos de descarga. Mas não se devem condenar os transportes automotivos por isso. Antes da existência de automóveis, havia outro tipo de poluição, de origem diversa, advinda do trânsito. Coches, carroças, diligências, carruagens, seges e charretes, de tração animal, circulavam nas grandes cidades, deixando o ar empesteado com o nauseabundo odor de urina e com montes de estrume por todo lado.

Antigamente não havia rede de esgotos. Poluía-se o lençol freático com fossas espalhadas por todo o planeta. Os mananciais de água eram comprometidos, numa época em que não havia tratamento de água para o consumo da população. Donde se conclui que a poluição não é um mal atual. Ela sempre existiu em grandes aglomerações urbanas.

Hoje em dia há maior conscientização de seus efeitos funestos, e, por conseguinte, o desencadeamento da preservação do meio ambiente, incluindo a qualidade do ar e da água, fontes naturais de vida. A prova disso é o aumento da expectativa de vida, a ponto de criar um problema não cogitado pela seguridade social de décadas passadas: o do envelhecimento da população e sua respectiva aposentadoria.

Jô Drumond

sábado, 13 de outubro de 2018

CALENDÁRIO REVOLUCIONÁRIO



Quando criança, eu sempre me perguntava por qual insensatez os meses de setembro, outubro, novembro e dezembro não correspondiam ao sétimo, oitavo, nono e décimo meses do ano. Meus familiares e meus professores do ensino primário não sabiam me responder. Bem mais tarde soube que meus questionamentos infantis tinham fundamento. O calendário romano, estabelecido por Rômulo (753 a.C.) tinha apenas dez meses. Dezembro era realmente o décimo mês do ano.

Por que razão houve a mudança? Em 46 a.C., Júlio César acrescentou dois meses e deslocou Januarius e Februarius para o início do ano, empurrando dezembro para a décima segunda colocação.

Soube também que no calendário juliano havia um erro referente ao alinhamento dos equinócios. Em 1582, o Sumo Pontífice Gregório XIII corrigiu tal erro em seu calendário, adotado na maioria dos países católicos.

Desde então a França adotou o calendário gregoriano. No entanto, durante a Revolução Francesa houve total reviravolta em quase tudo. Além do rompimento com o passado monárquico, feudal e cristão, além da mudança de costumes, os revolucionários quiseram abolir as referências religiosas na marcação do tempo. Dessa forma, os nomes de santos foram substituídos por nomes de plantas ou frutas (pera, figo, nabo...), de ferramentas de trabalho (enxadão, arado, pá...), ou de animais (vaca, coelho, gato...).

O ano I deixou de ser o ano do nascimento de Cristo e passou a ser o ano I da instauração da República, (1793); desapareceram os feriados cristãos, assim como os domingos (dia da adoração de Deus). Esse inusitado calendário foi baseado em conhecimentos astronômicos.

O ano continuava dividido quatro estações de três meses cada uma. O nome de cada mês se referia ao cultivo ou ao clima da época, a saber:
Le Printemps = Primavera
Germinal
Florial          
Prairial         
mês da germinação
mês da floração
mês das pradarias
L’Été             = Verão
Messidor
Thermidor    
Fructidor       
mês da colheita
mês do calor
mês das frutas
L’ Automne  = Outono
Vendémiaire
Brumaire       
Frimaire         
mês das vindimas
mês das brumas
mês do frio
L’Hiver       = Inverno
Nivôse
Pluviôse         
Ventôse          
mês da neve
mês das chuvas
mês dos ventos

Cada mês tinha exatamente 30 dias e era dividido igualmente em três partes de 10 dias cada um, chamadas “décades”. Os dias do novo formato da semana eram os seguintes: Primidi, Duodi, Tridi, Quartidi, Quintidi, Sextidi, Septidi, Octidi, Nonidi e Décadi. Cada um desses dez dias era consagrado a algo relacionado ao tema da “décade”.

Vejamos, por exemplo, a primeira delas, correspondente ao mês da vindima ou colheita da uva (vendémiaire), de 21 de setembro a 22 de outubro.
                                                                    1ª “Décade”
Primedi
1
Uva
Duodi
2
Acafrão
Tridi
3
Castanha
Quartidi
4
Colchique (flor)
Quintidi
5
Cavalo
Sextidi
6
Bálsamo
Septidi
7
Cenoura
Octidi
8
Amaranto
Nonidi
9
Pastinagas
Décadi
10
Cuba

Para cada dia do ano havia uma referência específica, que não se repetia. Os doze meses de trinta dias correspondiam a trezentos e sessenta (360) dias, aos quais eram acrescentados cinco (05) dias referentes aos “sansculottides”: Festa da Virtude, da Inteligência, da Opinião, do Trabalho e das Recompensas. O dia suplementar dos anos bissextos, chamado “la franciade”, era reservado à festa da Revolução.

A título de curiosidade, vejamos a divisão, mês a mês, do primeiro semestre do ano de 1794, contendo as respectivas temáticas:

Período
Nome do mês
“Décades”
Consagrada à (ao)
1º mês
22 set./21 out.
“Vendémiarie”
Referência à vindima (colheita da uva)
Ser supremo e à Natureza
Gênero Humano
Povo Francês
2º mês
22 de out/20 nov.
“Brumaire”
Referência à bruma típica da época

Benfeitores da Humanidade
Mártires da Liberdade
Liberdade e Igualdade
3º mês
21 de nov./20 dez.
“Frimaire”
Referência ao frio – clima da época
República
Liberdade do Mundo
Amor à Pátria
4º mês
21 dez./ 19 jan.
“Nivôse”
Referência à neve
Ódio aos Tiranos
Verdade
Justiça
5º mês
20 jan./18 fev.
“Pluviôse”
Referência à época das chuvas
Pudor
Glória e Imortalidade
Amizade
6º mês
19 fev./20 mar.
“Ventôse”
Referência à época dos ventos
Frugalidade
Coragem
Boa fé


O calendário revolucionário ou republicano, criado por Fabre d’Eglantine em 05 de outubro de 1793, teve como marco inicial (retroativamente) o dia do estabelecimento da República, 22 de setembro de 1792. Tal calendário vigorou na França por pouco mais de uma década.

Como se sabe, a Revolução Francesa, em 1789, foi um movimento crucial na história da França, com repercussões mundiais. Trata-se de um divisor de águas do regime político, que passou da monarquia absoluta para a monarquia constitucional e logo depois para a Primeira República.

Napoleão Bonaparte foi figura de destaque Primeira República Francesa. Em 1799 liderou um Golpe de Estado e se instalou como primeiro cônsul num regime chamado “Consulado”. Cinco anos depois, ele se tornou imperador, sob o nome de Napoleão I e imperou de 1804 a 1814.


Deve-se a ele a curta duração do calendário republicano e a retomada do gregoriano, em 1806.

Jô Drumond
Outubro/2018

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

ANGLICISMOS


Chama-se “anglicismo” ou “galicismo” o empréstimo de termos das línguas inglesa e francesa, incorporados ao léxico de nosso idioma, com adaptação gráfica e, às vezes, fônica. Temos, por exemplo, os termos franceses abajur (abat jour) e chofer (chauffeur), que ganharam roupagem própria em português. Chamam-se “estrangeirismos”  termos que são adotados por outra língua,  sem adaptação. Por exemplo, outdoor, do inglês, e rendez-vous, do francês.

Em meados do século XX, inventou-se o termo “franglais” (français/anglais) com a publicação do livro do prof. Étiemble “Parlez-vous franglais?” A invasão de terminologia inglesa naquele país era tamanha, que o governo houve por bem sancionar a lei Toubon (nº 94-665 de 04/08/1994) para proteger o patrimônio linguístico francês. Tal Lei visava a garantir a primazia de termos da língua oficial. Os organismos públicos deviam respeitar o vernáculo local em todas as circunstâncias. Houve até mesmo punições severas, como no caso da GE Medical System, que foi multada em 570.000 Euros, em 2006, pelo fato de ter transmitido documentos em inglês, sem tradução, a seus empregados.

No Brasil, a presença de anglicismos sempre existiu sem incomodar a ninguém.  No país no futebol, usa-se uma forma aportuguesada do inglês “football”. Para substituir  a palavra “futebol”, Castro Lopes inventou os termos eruditos “ludopédio” e “balípodo”, que felizmente não foram aceitos pelos falantes do português.

Atualmente, a presença da língua inglesa em tudo que se refere à tecnologia é praticamente automática no Brasil, visto o grande fluxo lexical sem correspondentes em nossa língua. Evidentemente, é bem mais simples adotar um termo estrangeiro que criar um neologismo.

Há pouco tempo, ao me aproximar da Central de Cópias de uma Universidade Federal do ES, vi uma placa na qual se lia: copy center. Caso se tratasse de um curso de idiomas, seria plausível, mas, dentro de uma universidade, não deixa de haver um pouco de exagero. No mesmo dia, fiquei indignada pela exarcebação do uso do inglês, ao percorrer um shopping, em Vitória. Deparei com uma grande placa divulgação imobiliária, na qual mais de 50% das palavras eram em língua inglesa ou dela oriundas:

 Kit automação. Bike sharing. Wifi nas areas comuns. Lounge office. Home office. Laundrywifi. Fechadura biométrica. Lazer completo na cobertura”.

Por que não usar termos do nosso vernáculo? Suponhamos que um rico matuto, sem nunca ter tido acesso à língua inglesa, venha da zona rural para comprar imóveis na capital. A agência imobiliária certamente não atingirá tal cliente, pelo fato de ele não dominar aquele código verbal.

Seria muito prático se todos os terráqueos falassem a mesma língua.  Diversas línguas universais foram criadas. O Esperanto, criado pelo polonês Ludwig Lazar Zamenhof, no final do século XIX, teve muita repercussão. O esperanto não foi adotado universalmente, mas ainda é estudado e existem muitos adeptos espalhados pelo mundo, formando uma espécie de rede esperantista. Tenho um amigo que tem contato contínuo com falantes dessa língua, originários de diversos países. Em suas viagens internacionais ele é muito bem recebido e alojado por esperantistas participantes de tal rede. Destarte, economiza muito em suas andanças mundo afora.

Segundo o filólogo e linguista prof. José Augusto Carvalho, o esperanto tem raízes em várias línguas: polaco, hebraico, alemão, latim, grego, russo e francês, ao contrário das outras línguas inventadas cujo vocabulário e regras gramaticais estavam bem próximos da língua nativa ou materna de seus inventores. A seu ver, o esperanto não vigorou, porque não tem vitalidade, isto é, não há comunidade que tenha o esperanto como língua oficial, e não tem historicidade, isto é, não tem lastro cultural. 

Durante muito tempo, a língua francesa foi usada pela diplomacia internacional.  Hoje em dia, há a primazia do inglês. Sabe-se que uma língua de comunicação internacional se faz necessária. Senti isso na pele, recentemente, ao visitar a Hungria, cujo idioma é totalmente diferente do nosso. A língua húngara não tem nenhuma semelhança com as línguas às quais temos acesso mais frequente: francês, alemão, inglês, espanhol, português, italiano... ela é totalmente ininteligível para nós, brasileiros. Todas as pessoas abordadas por mim só falavam o idioma local. Apesar de estar em uma cidade turística, que deveria primar pelo contato com estrangeiros, encontrei grande dificuldade.

Minha salvação era justamente a presença, embora tímida, de alguns termos em inglês nas placas do espaço público. Por meio deles eu podia identificar se se travava de um restaurante, de uma lanchonete, de um museu ou de uma casa comercial. Minha salvação, na Hungria, estava, portanto, relacionada ao mesmo motivo de minha indignação, aqui no Brasil: os anglicismos.