quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

SOMMERFEST 2018


Em cada curva da estrada, em cada ultrapassagem perigosa, encontra-se o germe da tragédia. No dia dez de setembro de 2017, entre Juiz de Fora (MG) e Vitória (ES), um nefasto imprevisto causou a partida sem volta, sem tempo de dizer adeus, de metade do grupo de danças folclóricas Bergfreunde “amigos da montanha”, de Domingos Martins, colônia alemã situada na região montanhosa do Espírito Santo. Dos 19 dançarinos que voltavam de uma apresentação naquela cidade mineira, em um micro-ônibus, sobreviveram apenas dez. Foi uma comoção geral na cidade, especialmente por se tratar de jovens, com uma vida inteira diante de si e com muitos planos pela frente.

Neste ano de 2018, a tradicional festa genuinamente alemã, a Sommerfest, fez uma homenagem especial aos que se desligaram do grupo, involuntariamente, por desígnios do destino. Para suprir a ausência dos faltantes, alguns veteranos se reintegraram ao Folkloregruppe, acompanhados de alguns simpatizantes, para possibilitar a continuidade do trabalho.

 No sábado 27 de janeiro de 2018, um desfile de rua, iniciado às 17h00, surpreendeu a todos pela pompa, pelo colorido, pelas indumentárias, pelos carros alegóricos, pela musicalidade, pelas danças, pelas coreografias e pela alegria reinante, apesar de ser uma espécie de homenagem fúnebre.

Vinte grupos de dança folclórica de outras cidades se apresentaram no desfile, para homenagear o grupo enlutado. No bloco Bergfreunde, cada um dos sobreviventes carregava uma rosa branca, que seria posteriormente depositada diante de um banner contendo a foto do grupo completo, no coreto da cidade. Além da rosa branca, alguns sobreviventes carregavam no corpo as marcas do infortúnio. Nos semblantes percebia-se o peso do luto e a dor da tristeza. Contrariamente aos demais blocos, o dos sobreviventes desfilou contrito.

Diversas bandas acompanharam o desfile, com ares de descontração. Houve muita dança, coreografia e alegria, ao longo da rua principal, até o coreto da Praça Arthur Gerhardt, ao lado igreja luterana, onde o grupo Bergfreunde se apresentaria, pela primeira vez, após o trágico acidente. Tal igreja, construída em 1887, foi a primeira da América Latina a ter uma torre. Até então, as torres eram permitidas apenas em igrejas católicas, em obediência à Constituição Imperial brasileira.
No coreto, um dos sobreviventes, com marca de queimadura generalizada, oriunda do incêndio do micro-ônibus, fez um discurso emocionante e solicitou um minuto de silêncio, antes de dar início à apresentação. 

A cidade de Domingos Martins, conhecida pelo tradicional Festival de Música, no inverno, se engalanou, em amarelo, vermelho e preto, cores da bandeira alemã, para a não menos tradicional Festa de Verão.  Uma vila germânica foi montada no mesmo espaço onde se faz a montagem anual da cidade do Papai Noel.  

No ar emanavam eflúvios das mais variadas especiarias gastronômicas: chucrute, salsichas variadas, joelho de porco e demais especialidades, que eram servidas por toda parte, em barraquinhas, bares e restaurantes. Sabe-se que os alemães são grandes apreciadores da cerveja. Os beberrões de plantão andavam com um caneco típico da festa, a tiracolo, que podia ser abastecido em qualquer esquina. As mulheres, mesmo as visitantes, usavam tiaras de flores coloridas. Foi uma bela festa, com todos os ingredientes de sucesso: gastronomia, bebida, dança, música, cores, alegria, temperatura amena e, sobretudo muita gente.

No entanto pairava no ar a desolação da perda irreparável de componentes do Folkloregruppe Bergfreunde, assim como a saudade dos que estariam dançando nesse dia, caso não tivessem trilhado rumo à grande incógnita caminhos desconhecidos dos sobreviventes.







Jô Drumond 28/01/2018

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

IDEOLOGIA CANHESTRA

Pela internet, recebe-se todo tipo de mensagens. Algumas nos despertam para possibilidades até então nunca aventadas. Assisti, por meio de um vídeo, à entrevista de um ladrão contumaz, preso diversas vezes por ladroagem. Ele afirma que, aos trinta anos, nunca trabalhou, nunca vai trabalhar e pretende continuar roubando.  Dessa maneira, ele acredita estar contribuindo para evitar o desemprego de muitos trabalhadores. Em sua concepção, caso a marginalidade acabe, policiais, escrivães, delegados, juízes, promotores, carcereiros... poderão ficar desempregados. O meliante termina sua fala afirmando que está “contribuindo para o bem de todos”. Por incrível que pareça, sua ideologia canhestra não deixa de ter certa lógica. Um país sem contravenções prescindiria de diversas funções do funcionalismo público.

Escritora  Jô Drumond  
Outra lógica inusitada, originária também da internet, partiu de um depoimento a favor do armamento total da população. Apesar de ser a favor do desarmamento, achei a argumentação muito bem fundamentada. Segundo o argumentador, cujo nome me escapa, desde que o mundo é mundo, existe a lei do mais forte. Numa luta corporal, um brigão de 100 quilos certamente subjugará outro de 40. Em qualquer tipo de contenda, vence o mais forte, o que é uma grande injustiça contra o mais fraco. No entanto, estando ambos armados, estarão em termos de igualdade. Um terá que vencer o outro pela persuasão, não pela força. Em sua concepção, se todos os cidadãos se armarem, vigorará sempre a força da persuasão, que é bem mais louvável que a força física. Eu nunca havia pensado nisso. A argumentação, apesar de impactante, não deixa de ser plausível.

Assim como a lógica do bandido e a lógica do armamento total da população, há também a lógica da criança, a do louco...  até mesmo a lógica polivalente, que pressupõe mais de dois valores de verdade. Segundo uma das acepções dicionarizadas do termo, “lógica é uma forma de raciocínio de uma pessoa ou um grupo de pessoas ligadas por um fato de ordem social, psíquica, geográfica, etc”. Um bom exemplo desse caso de “pessoas ligadas por um fato de ordem social” encontra-se em uma interessante análise que o jornalista Carlos Alberto Sardenberg publicou recentemente (O Globo, 18-01-2018) a respeito da exaltação de radicalistas partidários, nesta turbulenta época pré-eleitoral que o Brasil está vivendo. Segundo ele, milhares de profissionais trocaram seu trabalho pela dedicação exclusiva à atividade política, sobretudo nos sindicatos, no partido e no próprio governo. 

Considerando uma possível troca de governo, na iminência de perder seus postos, eles se agarram a tábuas de salvação para assegurar seu naco, na redistribuição de cargos. No afã de se instalar no poder, partem então para manifestações e intimidações. Grande parte dos manifestantes não está preocupada com a melhoria das condições de vida de seus concidadãos, nem com a propalada crise político-econômica, mas consigo própria. A militância, aparentemente por ideologia político-partidária, na verdade se resume, infelizmente, na manutenção de cargos e salários, ou seja, na lógica da subsistência. A meu ver, de certa forma, eles estão certos. Como diz o ditado popular, “saco vazio não para em pé”. Como poderia um bando de desempregados lutar por ideais, sem resolver, primeiramente, a questão básica da sobrevivência?

Não há uma só lógica nem uma só verdade. Finalizo repetindo um excerto de minha crônica “Questão de ponto de vista”, publicada no livro Tearte (2010). “Há algum tempo, circulou na internet a notícia de que a situação socioeconômica de Cuba estava tão desastrosa, que muitas universitárias estariam se prostituindo para sobreviver. Imediatamente Fidel Castro teria retrucado dizendo que, ao contrário, a situação de Cuba estava tão boa que até mesmo as prostitutas eram universitárias.”

Quem está certo? Quem está errado? Como se diz popularmente, “tudo nessa vida é questão de ponto de vista”.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

MINHA AMIGA MUÇULMANA

Por: Jô Drumond

Em um de meus estágios no Centro de Linguística Aplicada (C.L.A.) da Universidade de Franche Comté (França), participei do curso “Formateurs des formateurs”, que preparava profissionais estrangeiros para atuarem na formação de professores em seus respectivos países. O objetivo era aperfeiçoar, didática e linguisticamente, pessoas vindas dos quatro cantos do mundo, responsáveis em difundir a língua francesa em seus países de origem.


Naquele ano, havia oitenta participantes muçulmanos, originários de diferentes países. Os homens se trajavam normalmente, mas as mulheres se submetiam aos trajes usuais de seus respectivos países. Algumas mantinham apenas a cabeça coberta por um lenço chamado khimar; outras, apesar do verão escaldante, usavam burca preta, cobrindo todo o corpo, acompanhada de um nigab, que cobre a cabeça e o rosto, deixando apenas uma pequena fresta ou uma tela, na altura dos olhos.

Fiz amizade com uma colega paquistanesa chamada Saeqa, nome que significa “relâmpago”. Cabelos negros, soltos ao vento, tez morena, porte altivo e esguio. Usava calça jeans, camiseta e tênis, como as ocidentais.

Muito me surpreendi ao saber que ela também era muçulmana.  Soube então que 96% dos paquistaneses são muçulmanos. Aproveitei a amizade já selada, para bombardeá-la com perguntas referentes ao way of life das mulheres muçulmanas. Descobri que o fato de ser mulher, em certos países, é um verdadeiro pesadelo.

Quis saber, primeiramente, por que ela não usava os atributos das adeptas do Islamismo. Ela me disse que, estando em seu país, usava as roupas convencionais, mas, no exterior, dispensava distintivos indumentários.

Seu procedimento se devia ao fato de ter vivido em diversos países, aprendido diferentes idiomas e assimilado outras culturas. Seu pai era diplomata e, como tal, tinha uma posição privilegiada em seu país. Graças a isso, ela pôde estudar, transpor fronteiras geográficas e culturais, diferentemente da grande maioria das compatriotas, cujo universo se restringe, ainda hoje, ao lar e à família.

Como era professora de idiomas, sua válvula de escape consistia em estágios de aperfeiçoamento linguístico em diferentes países, nas férias de verão e de inverno. Dessa forma, conseguia voar, literal e metaforicamente, rumo ao desconhecido, mantendo-se, no entanto, presa às raízes. Gostava de viajar, mas a vivência no exterior não a impedia de se manter atada às peias religiosas e culturais. Estava fadada a se casar com alguém de sua religião, escolhido pela família. Perguntei-lhe o que aconteceria, se, casualmente, ela se apaixonasse por um estrangeiro. Ela me disse que não aconteceria absolutamente nada, pois jamais agiria contra os princípios de seu povo.

Perguntei-lhe também o que aconteceria se sua família escolhesse para ela um marido que lhe causasse repulsa. Respondeu-me que isso já havia acontecido. Seu pai havia oferecido sua mão a um excelente rapaz, pelo qual ela não sentia atração alguma. Na impossibilidade de desobedecer às ordens paternas, ela encontrou uma única saída: greve de fome. Preferia morrer a se casar com aquele pretendente. Seu pai, fragilizado pela recente morte da esposa, apavorou-se com a ideia de perder a única filha. Como ele se encontrava afetivamente vulnerável e como se tornara mais flexível pelo fato de ter tido contato com outras culturas, em outros continentes, acabou cedendo ao capricho da filha. Além disso, fazia vistas grossas quanto às suas frequentes fugas para fora do país, justificadas pelo aprimoramento profissional.

Saeqa me disse que, mesmo pertencendo à classe privilegiada, sofria com a intolerância à ascensão da mulher na sociedade. Por exemplo, certa vez, foi contratada para ensinar determinado idioma a um grupo de engenheiros que pretendiam se especializar no exterior. Ao entrar em sala de aula, no primeiro dia, foi rejeitada pelos alunos, pelo simples fato de ser mulher.

Segundo ela, as mulheres das classes desfavorecidas padecem de total submissão ao sexo masculino e de cerceamento à liberdade de expressão, assim como a outros tipos de liberdade. Os clubes funcionam alternadamente: um dia para os homens, outro para as mulheres. Dessa forma uma família reunida jamais poderá desfrutar de uma piscina pública.

Em sua grande maioria, as mulheres muçulmanas, criadas dentro de certos preceitos religiosos, se curvam aos ditames civilizatórios, sem nenhum tipo de questionamento ou de revolta contra o regime opressor. Ao contrário da filha do diplomata, elas não conhecem outros estilos de vida.

Aprendi muito com minha amiga muçulmana sobre a condição da mulher em seu país, e, por conseguinte, em muitos outros países islâmicos. Soube, por exemplo, que a grande maioria das mulheres é impedida de trabalhar fora do lar. A mentalidade dominante é a de que elas não carecem de educação formal nem de nenhuma atuação fora da esfera doméstica. Quarenta por cento delas, entre 15 e 20 anos, são analfabetas, em seu país. Apenas dezesseis por  cento são economicamente produtivas. Outro dado estarrecedor: entre 70% e 90% das mulheres sofrem violência doméstica, fato que é praticamente “institucionalizado” e que conta com a permissividade do Estado. Há os chamados “homicídios de honra”, cometidos em família, contra aquelas que ousam querer romper com um casamento indesejado ou que são violadas. Outro fato que muito me impressionou: cerca de 50% dos casamentos em todo o país envolvem menores de idade do sexo feminino.

Mas nem tudo são espinhos. No Paquistão há períodos mais opressivos e outros mais liberais, dependendo da visão de cada governante. Há também regiões mais violentas e outras menos. "Há sensível diferença da condição feminina entre a zona rural e a cidade, assim como entre os estamentos sociais."

Ao final de nosso estágio, combinamos manter contato, via postal. Naquela época, não havia internet. Enviei-lhe algumas correspondências, a que ela não respondeu.  Suponho que nunca lhe tenham chegado às mãos. Certamente esse tipo de censura era mais um dos inconvenientes do determinismo social, do qual não havia escapatória.

No mesmo estágio do C.L.A., uma de minhas colegas de classe me inspirou grande curiosidade. Nunca ousei me aproximar dela. Aliás, em quarenta dias de estágio, nenhum outro colega se aproximou dela. Usava burca e andava sempre escoltada por dois homens, um de cada lado. Mesmo em sala de aula, ela se sentava entre ambos. Eu gostaria muito de ter sabido algo sobre ela, mas minha timidez bloqueava toda e qualquer aproximação. Talvez a jovem fosse filha de algum sultão, ou de gente muito importante. Talvez os dois brutamontes a estivessem apenas acompanhando, impedindo seu contato com outras pessoas, protegendo sua integridade física, garantindo sua virgindade... Talvez o objetivo fosse evitar a perniciosa influência dos ocidentais, ou, quem sabe, evitar que ela denunciasse os maus-tratos e a precária condição feminina em seu país. Pensei até mesmo que a acintosa vigilância visava a evitar uma eventual fuga ou pedido de asilo. Nunca saberei ao certo.

 Após ter tido contato universitário com diversas muçulmanas no CLA, fiquei mais atenta ao movimento de liberação feminina, que avança a passos lerdos, em países islâmicos. Mesmo em tempos perigosos e altamente repressivos, eventualmente, movimentos reivindicatórios de liberação feminina movimentam algumas ruas. Raras feministas se celebrizaram por meio da mídia, como a paquistanesa Malala Yousafzai (prêmio Nobel da Paz 2014), ícone da resistência feminina; algumas, menos afortunadas, perderam não apenas a luta, mas suas vidas, no afã de se livrar da opressão masculina, religiosa e governamental.

De vez em quando ainda me lembro de Saeqa. Gostaria de saber o que lhe aconteceu nessas duas décadas que se passaram. Tentei localizá-la pela internet, em vão. Não sei nem mesmo seu nome completo. Separadas por um enorme oceano e por um vasto universo cultural, certamente jamais nos reencontraremos.