quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

A ERA DIGITAL

Jô Drumond


O acesso à internet mudou totalmente os hábitos dos cidadãos. Prescinde-se hoje de ir ao correio para postar correspondências. A comunicação se faz em questão de segundos, via satélite, nos quatro cantos do mundo.  O jornal impresso é quase obsoleto. Tornou-se uma espécie “re-vista”, pois não apresenta nada mais em primeira mão. A internet traduz, automaticamente, notícias escritas em outros idiomas para a língua materna do leitor. Evidentemente, não se trata de boa tradução, mas eficiente na divulgação de informações importantes, em tempo real.

 Antigamente, se alguém dissesse que, no futuro, se poderia, ao mesmo tempo, visualizar e falar com alguém que se encontrasse do outro lado do planeta, arriscar-se-ia a ser condenado à fogueira. Sabe-se que em 1633, preso pelas garras da inquisição, o grande matemático, físico, astrônomo e filósofo Galileu Galilei teve que “desdizer” o resultado de suas pesquisas para evitar a morte. Obrigado a se retratar, na questão do heliocentrismo, ele se viu na contingência de afirmar, durante o julgamento, que a Terra não girava em torno do Sol. Mas murmurou entre dentes: “eppur si muove” (e, no entanto, ela se move).


Nos dias de hoje, o poder constituído se sente perdido, sem saber como controlar o vento que sopra em diversas direções. A classe política se encontra (ou se perde) nos dédalos do labirinto virtual. O povo, mais informado, está mais atento ao que se passa nos bastidores do governo. A turba deixou de ser apática e passiva, facilmente forjada pelos poderosos. Atualmente, a opinião pública pode ser manipulada em tempo recorde. Isso é verdade, mas o povo está aprendendo, a duras penas, a “separar o joio do trigo”.

Minha geração, nascida em meados do século passado, criada antes do advento da revolução tecnológica, tem sofrido substanciais interferências em seu way of life, adaptando-se ao novo modus vivendi. Os pais, muitas vezes, se sentem indefesos e impotentes para controlar os filhos que têm acesso a uma infinidade de informações, boas ou nefastas, que podem interferir em sua formação. Atualmente há, por exemplo, um jogo de desafios que acontece na calada da noite, longe da vigilância paterna. Os jovens postam os desafios aos quais são submetidos. No jogo da Baleia Azul, o último desafio, como se sabe, é o suicídio, muitas vezes filmado e divulgado virtualmente, em tempo real, uma espécie de “Big Brother” macabro. É difícil impedir aos jovens o acesso à internet. O que fazer para salvaguardar nossos filhos e netos? Essa questão está sendo amplamente debatida nos dias de hoje.

Por outro lado, as redes sociais proporcionam momentos de grande contentamento e nostalgia, uma espécie de retorno ao passado, por meio de grupos de ex-colegas que se reencontram décadas após a formatura e que relembram com saudosismo os anos de juventude sem televisão, sem telefone “sem lenço, sem documento”. As redes sociais resgatam antigas amizades, antigos amores e possibilitam novos relacionamentos. Os idosos e as pessoas que moram sozinhas, tendo o mundo diante de si, sentem menos o peso da solidão.  Expressam-se quando bem entendem, com retorno instantâneo de seus interlocutores.

 Parece um contrassenso ter saudades da falta de conforto, da falta de rádio e televisão, da falta de celular, da falta de computador, da falta da internet.... No entanto, isso acontece. Durante a juventude de nossos avós, não havia carro, avião, nem energia elétrica. Eu mesma me lembro com nostalgia das rodas de contação de histórias, à luz de lamparina, na fazenda onde fui criada, numa época em que não existia eletrificação rural. O que se fazia, naquelas noitadas míticas, era a genuína literatura oral. Depois, numa cidade de interior, onde estudei, antes do advento da televisão, faziam-se rodas de vizinhos, à noite, com cadeiras na calçada, para brincadeiras típicas da época, com a criançada, ou para um dedo de prosa, enquanto não vinha o sono.

Deve ser impensável para as futuras gerações uma vida sem acesso à tecnologia. Nossos descendentes só saberão de nosso estilo de vida, se alguém se dispuser a registrar os usos e costumes da época em que viveu. Eles terão, certamente, outros divertimentos mais interessantes, que talvez não propiciem a convivialidade de antes, cada vez mais escassa em nossos dias. Cada um se diverte sozinho, diante do laptop, de um tablet, ou tendo às mãos um telefone conectado com o mundo.
No futuro, com o devido distanciamento crítico, muitos estudiosos, sobretudo  sociólogos e antropólogos, se debruçarão em pesquisas sobre a mudança dos aspectos consuetudinários de nossa geração. Conhecemos ambas as faces da moeda e vivenciamos o “antes” e o “depois” dos recursos advindos com as novas tecnologias.

Aconteceu recentemente, num grupo de whatsApp do qual participo, algo que se presta a reflexões quanto ao comportamento atual do ser humano. Trata-se de um grupo numeroso, com uma postagem diária próxima a uma centena de mensagens. Certo dia, tal grupo parou de funcionar espontaneamente, sem nenhum consenso prévio. Nenhuma mensagem durante todo o dia. Silêncio. Branco total. Naquele dia um dos integrantes do grupo cometera suicídio. Estranhamente, em vez de usarem a rápida e eficiente ferramenta de comunicação de que dispunham para a divulgação da notícia, os usuários optaram por ligações telefônicas, relegadas, há muito tempo, a segundo plano. O branco na caixa de mensagens foi uma espécie de luto, em respeito à dor dos que ficaram e à decisão de quem optou pela partida.

Há pessoas mais conservadoras que resistem tenazmente às mudanças dos meios de comunicação. Em breve, não haverá mais analfabetos digitais. A internet veio para ficar. Não se pode mais viver sem a praticidade, a facilidade e a agilidade desse tipo de comunicação. Evidentemente, como tudo neste mundo, ele comporta aspectos positivos e negativos. Cabe a cada usuário escolher e trilhar seu caminho virtual, como melhor lhe convier.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

CIDADE DAS ORQUÍDEAS

Certo dia, dentro de um orquidário, na cidade de Marechal Floriano (ES), ouvi uma criança, de cerca de dez anos, perguntar à mãe por que nomes de flores são usados para mulheres e não para homens.

Eu nunca havia atinado para isso. Comecei então a puxar da memória nomes de ex-colegas, amigas e parentes: Margarida, Rosa, Verônica, Perpétua, Angélica, Gláucia, Hortênsia, Celestina, Dayana...  Todos os que estavam por perto, funcionários e clientes, entraram na brincadeira. Cada um ia citando o que lhe vinha à cabeça. Em cidade pequena, o contato humano é muito mais rápido e direto. Em pouco tempo, parecia uma roda de amigos. Outros nomes menos comuns vieram à baila: Camélia, Dália, Íris, Lília (ou Lílian), Magnólia, Yasmin(e), Lélia (ou Laelia... Aos poucos emergiram do fundo da memória outros ainda mais raros como Lis, Amarilis... Lembrei-me de Açucena, nome afetivo da personagem Doralda, do conto Dão-la-la-lão, de Guimarães Rosa. Alguém disse que Daisy, nome bastante comum no Brasil, significa margarida, em inglês.

AMARÍLIS
Após ter citado todos os nomes que me vinham à memória, pedi que tentassem se lembrar de conhecidos do sexo masculino com nomes de flores. Ninguém conseguia se lembrar. Realmente, não se vê nenhum homem chamado Antúrio, Cravo, Crisântemo, Girassol, Lírio, Amaranto, Hibisco, Junquilho... Lembrei-me do poeta simbolista capixaba Narciso Araújo. Expliquei ao menino, e, por conseguinte, aos presentes, que a palavra “narcisismo”, desconhecida dele, mas conhecida dos adultos, está relacionada a essa flor, que floresce à beira da água e se inclina para baixo, como se quisesse ver a própria imagem para apreciar-lhe a beleza. Os “narcisos”, de carne e osso, se apaixonam pela própria imagem. Por isso se comprazem diante de um espelho.

ANGÉLICA
 Lembrei-me também de um tio meu chamado Jacinto, que é nome de uma flor um tanto masculina, de formato meio fálico. Meu curtíssimo repertório já tinha se esgotado. A mãe do menino disse então que conhecia um vizinho chamado Alisson, cuja família lhe dissera que esse nome pode ser usado indistintamente para ambos os sexos, e que pode ter diversas grafias (Allison, Alisson, Alyson, Allisson, Allyson, Alysson e Allysson).  Disse também que é um nome bastante comum em países de língua inglesa, para nomear pessoas do sexo feminino.

GLÁUCIA
Veio-me à cabeça, naquele momento, o nome da cidade onde estávamos: Marechal Floriano. Perguntei quem era o tal Marechal. Ninguém do grupo sabia nada a respeito dele. Minha eterna mania de professora obrigou-me a lhes dizer que Marechal Floriano Peixoto havia sido nosso primeiro Vice-Presidente da República, no governo Deodoro da Fonseca. Com a renúncia deste, Floriano assumiu o cargo de Presidente do Brasil. Sua esposa Josina (minha xará), de cujo nome nunca me esquecerei, assumiu o posto de primeira dama do País, no início do século passado.

ÍRIS
 Um rapazinho me interrompeu para retrucar:

 - Péra aí! Floriano não é nome de flor!

 - Realmente não é, mas significa aquilo que floresce, que prospera -  E continuei, em tom professoral: Nosso Marechal floresceu tanto que o nome da cidade de Desterro, em Santa Catarina, foi mudado, malgrado seus habitantes, para Florianópolis. E não parou por aí. Em 1900, durante uma rápida visita a esta cidade, onde estamos, chamada antigamente Braço do Sul (referência ao afluente do rio Jucu, que corta a cidade), ela teve o nome
JACINTO
trocado, em sua homenagem. A meu ver, o nome mais apropriado para esta cidade seria Orquidópolis. Olhem em todas as direções! Vejam que maravilha! Orquídeas, orquídeas e mais orquídeas. Essas lindas flores encontram aqui, na Mata Atlântica, altitude e clima propícios. Por isso existem em grande quantidade e variedade. Despedi-me e saí, carregando nos braços diversas mudas de orquídeas.

Justamente devido ao clima ameno e à topografia da região, escolhi um pedacinho desse paraíso, com o intuito de curtir a aposentadoria. É num recanto dessa mata que tenho passado meus melhores momentos. Cuido do orquidário, do jardim, leio, pesquiso e escrevo meus livros, longe da azáfama da metrópole. No “meu recanto” troco o alarido da cidade pelo silêncio; a poluição pelo ar puro; a água tratada por nascentes; a frieza do asfalto pela
NARCISO
exuberância da mata; a iluminação noturna pelas estrelas; o relógio digital pelo biológico; a correria pelo sossego; a multidão pela solidão benfazeja.

O silêncio reinante, às vezes, é quebrado apenas pelas vozes da mata: cicios dos insetos, gorjeios dos pássaros, o assovio do vento e o rangido do bambuzal, que se verga em deferência à sua passagem.

Troquei de bom grado as caminhadas matutinas da Praia de Camburi, ao som de buzinas, com trânsito pesado e ar poluído, por monóxido de carbono, por caminhadas ecológicas, bem mais aprazíveis. Em todos os percursos, sentem-se
VERÔNICA
fragrâncias de flores silvestres e o cheiro de mato verde. Entre folhagens e ramagens, farfalhejos provocados pela fuga de micos, preás, pacas, tatus e veados-mateiros, assustados com a presença humana.

Esse foi o estilo de vida de minha infância, na fazenda de meus pais, no sertão de Minas Gerais, e hoje é o estilo de vida escolhido por mim, para a maturidade, na Mata Atlântica do Espírito Santo.

Devido à brincadeira onomástica, no orquidário, incitada pela criança, acabei descobrindo, mais tarde, acepções florais ignoradas por mim, em alguns nomes muito usuais, como: Lúcia (ou Luíza), Cássia, Dalva e Emília.

Cada flor tem simbologias diversas, que variam no espaço e no tempo, assim como de cultura para cultura. No entanto, sabe-se que, grosso modo, a flor é, sobretudo, um símbolo antigo e universal do princípio passivo (feminino), do nascimento e do ciclo vital. Está ligada à beleza, à juventude, à paz, à primavera, à pureza... Tanto é que se usa o verbo “deflorar” (perder a flor) para indicar a perda da pureza vir(a)ginal.

ORQUÍDIA