segunda-feira, 7 de março de 2016

SIMPLESMENTE MULHER

*Jô Drumond

A pioneira, focalizada na nesta crônica, 
Guilly Furtado, teve sua obra analisada 
por Jô Drumond e publicada em 2014, 
sob o título “Esmaltes de camafeus:
 retratos de mulher”

No início o século XX, época em que ainda se cultuava a mulher com o epíteto de “rainha do lar”, ela era, na realidade, uma rainha-escrava, prisioneira de uma fortaleza calcada no concreto da moralidade e erguida com pilares de preconceitos. Aquelas que não se aclimatavam em seus domínios, fossem elas, mães, esposas ou filhas, e que ousavam se evadir, faziam-no qual borboleta triste abatida à saída do casulo, mesmo antes de criar asas. Preparadas desde tenra idade para atuar apenas dentro de seus domínios, mesmo que fossem detentoras de grandes pendores artísticos, franziam-se às minudências do cotidiano.

Quando uma delas se revoltava ou caía em tentações amorosas, era normalmente expulsa de casa, para não desonrar a família. Tais rainhas ou futuras rainhas tão logo abandonavam seus reinos, vislumbravam diante de si apenas duas vias: a da virtude, nos escuros claustros de um convento, ou a do pecado, nas brilhantes alcovas de um prostíbulo. Outros eventuais caminhos eram por demais temerosos, como os da personagem Dolores, do livro Esmaltes e camafeus, de Guilly Furtado. 

Ao perambular pelas invernosas ruas de Madri com um bebê pendurado no seio murcho, morreu de inanição e de frio, à porta de uma catedral, sem que nenhuma alma caridosa dela se apiedasse. Dolores não teve a mesma ventura de Georges Sand, que embora vivesse em Paris, considerada na época como capital cultural do mundo, viu-se obrigada a se trajar como homem, para freqüentar os redutos literários e publicar suas obras sob um pseudônimo masculino.

Nesse contexto mundial, as filhas da burguesia brasileira, que ousavam romper a viseira doméstica e os dogmas religiosos, como fez Guilhermina Tesch Furtado, deveriam ser combatidas ou, pelo menos, contidas.

Foi o que ocorreu com a livre-pensadora capixaba, que conseguiu se destacar no meio intelectual e jornalístico paraense e transpor, em 1913, os “umbrais do templo dos imortais”, a Academia de Letras do Pará, reduto estritamente masculino. No ano seguinte, aos 24 anos, conseguiu publicar um livro de contos, por uma editora francesa (Garnier), e lançou seu alter ego aos quatro ventos, sob a máscara de personagens e narradores. 

Deixou registradas, em prosa-poética, idéias revolucionárias a respeito da condição da mulher, da infidelidade conjugal, dos anseios sexuais femininos, dos problemas das classes menos privilegiadas, das incongruências religiosas e dos desmandos políticos.

No mesmo ano da publicação dessa obra casou-se com um militar (que certamente não havia lido o livro antes do matrimônio), e mudou-se para o Rio de Janeiro. Assim findou a carreira de uma mulher que poderia ter sido grande escritora. Talvez a circulação desse livro tenha sido impedida. Sabe-se que nem mesmo seus familiares têm o privilégio de possuir um exemplar de tal edição. Um único foi encontrado na Biblioteca Nacional, cuja edição fac símile foi providenciada pela Prefeitura de Vitória (ES), em 2011.

Segundo o pensamento medieval, o ser humano, tal qual um tonel de vinho, deve ter válvulas de escape para não explodir, devido à fermentação. Por conseguinte, no medievo, o clero permitia festividades profanas paralelamente às religiosas.

Uma válvula foi concedia à Guilly; a de publicar eventualmente suas crônicas na revista Vida Capichaba, criada por um primo seu. Não se vê nessas esparsas publicações a mesma verve da autora do livro. Até os 90 anos, foi escritora de um só livro, e viveu recuada, no seio da doxa, protegida contra os paradoxos do mundo, provavelmente sem grandes tristezas, sem grandes alegrias, mas com muito tédio, tema esse recorrente em seus contos. Como diria Cecília Meireles não foi alegre, nem foi triste: foi poeta.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

A DESCONSTRUÇÃO DE UM MITO

Jô Drumond

“O martírio de Tiradentes” – Óleo sobre
 tela, de Francisco Aurélio Figueiredo
 e Melo (1854 – 1916) 
Tudo que se aprende nos livros escolares de História corresponde à visão oficial do poder constituído. O livro de autoria de Júlio José Chiavenato, As várias faces da Inconfidência Mineira, foi concebido com o intuito de desmitificar a Inconfidência Mineira. Faz parte da coleção “Repensando a História”, coordenada por Jaime Pinsky e Paulo Miceli. Tal coleção tem como objetivo desmitificar visões consagradas, ao desenvolver a visão crítica, a análise e a reformulação de temas históricos.

A leitura do livro soou, para mim, como advertência: cuidado com o que se ouve e com o que se aprende nos bancos escolares! A verdade tem muitas faces!

Chiavenato faz um retrato irônico, muito bem fundamentado, do aspecto consuetudinário da antiga Vila Rica, com suas mazelas sociais, políticas e financeiras.

Focalizaremos aqui apenas a figura do mártir da Inconfidência. O autor começa abordando a embromação ideológica da historiografia oficial, ao forjar heróis como exemplo de boa conduta. Foi o caso de Tiradentes, herói criado no ensejo da Proclamação da República, como símbolo da luta pela liberdade e pela dignidade republicana. A ditadura militar de 1964 oficializou o herói e tornou-o patrono da nação brasileira, pela lei 4897. A partir de então, por meio do decreto 58.168, sua imagem passou obrigatoriamente a representá-lo de barba longa. Sabe-se que ele, como alferes, não podia usar barba. Sabe-se também que morreu careca, pois os prisioneiros tinham a cabeça raspada. Sua imagem oficial, de túnica, barba e cabelos longos, assemelha-se a uma santidade qualquer, não à imagem de um beberrão que falava pelos cotovelos e que gritava “Viva a República!” pelas ruas de Vila Rica. Alvo de chacotas, passava pelas boticas de Vila Rica falando da rebelião (que deveria ser mantida em segredo). Tanto é que o governador Cunha de Menezes não deu atenção à primeira denúncia do levante, ao ser informado que tais boatos procediam de Tiradentes.

– Só se for um levante de putas! – disse ele.

Tiradentes foi considerado também homem de caráter duvidoso, por ter engravidado a menor Antônia Maria do Espírito Santo, que o processou por ter sido seduzida com promessas de casamento. Segundo consta, aos quarenta anos, usou da violência para retirar a menina de casa, o que não caracteriza “arroubo de juventude”. Com ela teve uma filha de nome Joaquina. Segundo o autor, uma “fraqueza moral” o fazia cair de amores pelas mulatinhas faceiras de Vila Rica. Na historiografia oficial consta que ele teria tido com Eugênia Maria de Jesus um filho chamado João de Almeida Brandão.

Tiradentes era também considerado meio louco devido a planos mirabolantes e inviáveis para o Rio de Janeiro, como, por exemplo, a solução para o problema de abastecimento de água, a construção de moinhos populares, movidos a água, e também a construção de armazéns para guardar mercadorias desembarcadas.

Tinha dois apelidos: o de “Gramaticão”, pelo fato de andar sempre com dois livros debaixo do braço: um dicionário de francês e a tradução francesa da Constituição dos Estados Unidos; e o de “O República”, pela mania de gritar “Viva a República!” a qualquer momento.

Chiavenato retrata o lado torpe de Tiradentes, não para denegrir o herói, mas para mostrar que ele era simplesmente um homem “demasiadamente humano”, sujeito a todas as vicissitudes dos simples mortais. Por outro lado, afirma que Tiradentes pode ser considerado, sim, herói da Inconfidência, pelo fato de ter enfrentado tudo com dignidade e por ter-se apresentado como único culpado, para inocentar seus companheiros. Além de não se defender, clamou para si toda a culpa do levante.

Segundo o autor, a Inconfidência é considerada por alguns como um movimento libertário relevante, e por outros, como movimento de pouca importância, pelo fato de não ter modificado a estrutura política. Apesar de não ter modificado a estrutura política, ela foi importante porque a repressão fortaleceu o domínio de Portugal e criou novas relações políticas entre a colônia e a metrópole.

Os inconfidentes podem ser considerados tanto idealistas quanto sonegadores oportunistas. De todos eles Tiradentes era o mais frágil. Não era rico, não tinha latifúndio, nem família importante. Era apenas um idealista inconsequente e um ótimo “bode expiatório”. Sua morte serviria de exemplo, sem causar nenhum problema aos poderosos.

O autor pinta os três célebres poetas Alvarenga Peixoto, Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manoel da Costa, grandes nomes em prol de uma causa heroica, como conspiradores da República, mas também como corruptos. Além de sonegar impostos, eram traidores da coroa portuguesa. Contrabandeavam riquezas e atuavam como intermediários para negociatas com o governo colonial.
Atualmente circula na internet um texto assinado por Guilhobel Aurélio Camargo, que pode despertar o interesse dos pesquisadores quanto à suposição de um (falso) enforcamento.
Sabe-se que Tiradentes era maçom assíduo às reuniões e que há evidências documentais, nos Autos da Devassa, da participação da Maçonaria na Inconfidência. Segundo consta, os maçons brasileiros foram encorajados, na tentativa de libertação, pela história dos Estados Unidos da América, onde saíram vitoriosos George Washington, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson.  Alega-se que a Maçonaria, muito forte naquela época, provavelmente não admitiria que um de seus membros fosse enforcado em praça pública, o que seria uma indignidade para a entidade. Com base nisso, afirma-se que quem foi enforcado, no lugar de Tiradentes, foi um ladrão comum, condenado à forca.

Em 21 de abril de 1792, com a ajuda de companheiros da Maçonaria, foi trocado por um ladrão, o carpinteiro Isidro Gouveia. O ladrão havia sido condenado à morte em 1790 e assumiu a identidade de Tiradentes, em troca de ajuda financeira à sua família, oferecida a ele pela Maçonaria. Gouveia foi conduzido ao cadafalso e testemunhas que presenciaram a sua morte se diziam surpresas porque ele aparentava ter bem menos que seus 45 anos. No livro, de 1811, de autoria de Hipólito da Costa ("Narrativa da Perseguição") é documentada a diferença física de Tiradentes com o que foi executado em 21 de abril de 1792. O escritor Martim Francisco Ribeiro de Andrada III escreveu no livro "Contribuindo", de 1921: "Ninguém, por ocasião do suplício, lhe viu o rosto, e até hoje se discute se ele era feio ou bonito..." (Informação extraída da internet. Acesso em 13/12/15 http://spfc.terra.com.br/comunidade2.asp?nID=371 ) 

 Tiradentes era pouco conhecido no Rio, onde foi enforcado, de modo que não seria difícil montar a farsa. Sua cabeça, que deveria ficar exposta na praça central de Vila Rica desapareceu misteriosamente na primeira noite, o que teria impossibilitado o reconhecimento por parte dos amigos e familiares.

Há quem acredite tê-lo visto na Europa, após a Inconfidência. Não há nada de concreto nessas especulações. Não se faz história com suposições, mas, de qualquer forma, elas incitam a busca de novas descobertas que possam mudar os registros históricos.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)


quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

RODA CARIOCA

Jô Drumond

Após exaustivo dia de turismo sob o sol escaldante do Rio de Janeiro, decidi visitar o Palácio do Catete, antiga residência dos presidentes da República. Como já passava das 17h00, o palácio estava fechado, mas os jardins se descortinavam com palmeiras imperiais, árvores frondosas, lagos e gruta com cascata. Logo na entrada, fui atraída pela cadência de samba de uma roda composta exclusivamente de idosos, todos eles de cabelinhos de algodão. A cada momento chegava novo músico, instrumento à mão, e se alojava junto aos demais.

Após cansativas andanças, nada melhor poderia acontecer. Tomei assento para apreciar o som e o frescor da tarde. Ao término de cada música um dos presentes se levantava e puxava outra, no que era prontamente acompanhado pelos instrumentistas de plantão. Percebi que todos se conheciam. Parecia amizade antiga. A chegada de cada um era motivo de júbilo para os demais. A faixa etária ultrapassava a casa dos setenta. Alguns, apesar de bem velhinhos, com dificuldade de locomoção, pareciam voltar no tempo. Arriscavam gingados e passinhos de samba. 

Conversei com um deles. Soube que se reúnem diariamente no mesmo local e no mesmo horário, com a única finalidade de passar o tempo cantando e ouvindo música. Fiquei encantada com a ideia. Em vez de ficarem em casa remoendo as dores e os achaques da idade diante de um televisor, optam por algo que faz bem à alma, em todas as idades. As amizades me pareciam sólidas, oriundas de antigos carnavais. 

O repertório variava segundo o participante da vez, que puxava a música de sua preferência: serestas, chorinhos, mas, sobretudo samba. Afinal estávamos em plena cidade maravilhosa. “Eu sou o samba, (puxou um o pandeirista) natural daqui do Rio de Janeiro... sou eu quem leva a alegria, para milhões de corações brasileiros.”

No dia seguinte, estando próxima ao palácio do Catete no final da tarde, resolvi conferir se estavam lá. Como era de se esperar, as mesmas pessoas da véspera “batiam o ponto” na roda musical com a mesma alegria e descontração. Porém, o grupo estava bem maior. Cerca de cinquenta ou sessenta participantes. Puxei uma cadeira e fiquei um bom tempo observando as expressões e as reações de cada um. Pareciam estar todos de bem com a vida.

Quando chegar à idade deles, gostaria de participar de algo similar. Bom seria se a ideia desse grupo se espalhasse pelo mundo, “levando a alegria para milhões de corações” cansados, combalidos ou descompassados. Cada minuto dessa “vida besta”, que pode ser bela,  vale a pena ser bem vivido.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)

Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)