sexta-feira, 6 de julho de 2018

A SINAGOGA DE BUDAPESTE


 Pela primeira vez, entrei em uma sinagoga, na Hungria. Na porta de entrada, eram fornecidos kippats (cone branco, de papel, contendo a estrela de David). Meu marido pegou um deles e o colocou sobre a cabeça. Tentei pegar o meu. O porteiro me disse algo ininteligível. Pela reação e pelos gestos dele, percebi minha gafe. O kippat era destinado apenas ao sexo masculino, não sei por quê. Soube também que, segundo a tradição judaica, mulheres e homens ocupam lugares distintos dentro dos templos. Evidentemente, o melhor espaço é destinado ao sexo masculino, considerado prioritário por eles.


O interior da sinagoga é magnificente, como se vê na foto. Um templo tão grandioso e majestoso quanto as grandes catedrais europeias. A Sinagoga de Budapeste é a maior da Europa e a segunda maior do mundo, com capacidade para três mil fiéis assentados. O estilo arquitetônico é neomourisco ou neoislâmico, com elementos inspirados na arte bizantina e gótica.

Duas torres se destacam, na fachada, com relógios oitocentistas e cúpulas ricamente ornamentadas. O conjunto arquitetônico, além do templo, consta de um memorial do holocausto, um museu e um cemitério. Hoje, além de principal templo da comunidade judaica, é um dos marcos da cidade e ponto de atração turística.
No pátio interno, há uma bela escultura, que representa a caminhada dos judeus para a morte, durante o holocausto húngaro, no qual cerca de 600 mil perderam a vida, durante Segunda Grande Guerra. Nesse período, segundo estatísticas, houve um extermínio mundial de mais de seis milhões de judeus.


 Na área externa existe um jardim transformado em cemitério durante a ocupação nazista, entre 1944 e 1945. Diferentemente dos templos cristãos, não se enterram mortos dentro dos templos, pelo fato de os cadáveres serem considerados impuros. Em vez de flores, colocam-se pedras nos túmulos (ver fotos). A justificativa é bem plausível: flores têm vida curta, enquanto pedras são eternas, como a morte.  



No mesmo pátio externo, há uma interessante obra de arte, em alumínio, chamada Árvore da Tristeza por alguns, e Árvore da Vida por outros. Em cada folha, consta um nome. Não entendi bem se se trata de nomes dos judeus mortos no holocausto, ou de nomes daqueles que ajudaram a salvar vidas judias.
Tal árvore metálica tem o formato de um salgueiro chorão (salixbabylonica), ícone muito bem escolhido para simbolizar o pranto pelas vítimas do holocausto.
Junto à árvore, há outra escultura representando as tábuas da lei. Estranhamente, tais tábuas são ocas, para demonstrar que não há lei em tempos belicosos.

 Muitas perguntas ficaram sem respostas. A língua húngara, totalmente incompreensível para mim, foi uma barreira de muitos conhecimentos que poderiam ter sido adquiridos por meio do contato com a população local. Agrada-me muito mais o contato com os habitantes, que o simples turismo. Gosto de comparar hábitos, usos e costumes dos diversos povos. Para isso o acesso ao idioma local é muito importante. Em Budapeste, desisti de pedir informações. A grande maioria da população só fala a língua local. Aos poucos descobri que era possível obter alguma informação em inglês, junto aos jovens. Eles têm acesso ao estudo de idiomas, o que provavelmente não aconteceu com seus pais e avós, que viveram durante o regime comunista.

Quem não conhece a língua húngara, mesmo tendo dificuldades de comunicação, deve visitar Budapeste. Aliás, a famosa tríade do Leste Europeu (Viena, Praga e Budapeste) é imperdível. Impossível dizer qual das três é mais bela e interessante.

Jô Drumond

sexta-feira, 22 de junho de 2018

COPA DO MUNDO – COMOÇÃO NACIONAL


O clima da Copa, em 2018, remeteu-me a lembranças de Copas passadas. A primeira, bem nítida em minha memória, foi a de 1970, no México. O Brasil, em plena ditadura militar, conquistou o tricampeonato. Os ânimos se exaltaram sobremaneira no dia da vitória, justamente devido ao regime ditatorial. Era a válvula de escape de que todo brasileiro precisava para sair às ruas, aos brados. Não havia risco de repressão, pois a manifestação não tinha nuances subversivas. Pelo contrário, demonstrava o ufanismo, em rede nacional. Isso era bom para os governantes.

Recém-chegada do interior à capital mineira, eu nunca havia imaginado a comoção popular de uma grande cidade, em dia de finalíssima, e, além do mais, em dia de jogo tenso e de inesperada vitória. Lembro-me de que fui convidada por amigos a assistir ao jogo decisivo em casa de um desconhecido, que gostava de assistir à peleja em grande estilo, com a casa repleta de convidados e cerveja a rodo. Ironicamente, o dono da casa não podia ter grandes emoções. Como sempre há riscos de colapso cardíaco durante os jogos da Copa, ele tomou as devidas precauções. Contratou um cardiologista munido de todo o aparato necessário para os primeiros socorros. A cada gol ou ameaça de gol, ele realmente passava mal e dava muito trabalho ao pobre médico, que se desdobrava para salvá-lo. No primeiro tempo, a Itália vencia de 1 X 0. 

A equipe brasileira, ancorada em Pelé, Rivelino, Gérson, Jairzinho e no capitão Carlos Alberto Torres, reagiu e derrotou o adversário por 4 X 1, numa vitória histórica, que culminou com o recebimento da taça Jules Rimet. A explosão de alegria após cada gol era seguida do hino da Copa, que ficou também na história, cantado a plenos pulmões por todos, ao mesmo tempo.”Noventa milhões em ação/ pra frente Brasil / do meu coração / todos juntos vamos / pra frente Brasil, / salve a seleção / de repente é aquela corrente pra frente/ parece que todo o Brasil deu as mãos/ todos ligados na mesma emoção / tudo é um só coração / todos juntos vamos/ pra frente Brasil, salve a seleção!”
Após o término do jogo, nós nos dirigimos ao “bochicho noturno” de Belo Horizonte, na região da Praça da Savassi, para o prolongamento da comemoração, noite adentro.

COPA DE 1998 NA FRANÇA
Guardo ótima lembrança também da Copa de 1998, apesar de nossa derrota para os franceses. Na época, eu já morava em Vitória (ES) e conhecia grande parte da comunidade francófona da capital, pelo fato de trabalhar na Alliance Française. Um casal de franceses, que morava temporariamente na cidade, disse-me que gostaria de assistir aos jogos do Brasil, cercado de brasileiros, para conhecer a reação dos torcedores durante a partida. Lembrei-me de minhas primeiras emoções em dia de jogo, em BH, e convidei-os a me acompanhar durante todos os jogos. Íamos em grande grupo para o Triângulo das Bermudas, local de maior concentração de bares e restaurantes e de maior movimentação. Eles ficavam boquiabertos pela emoção e pelo entusiasmo da torcida. Por coincidência, a final da temporada seria uma disputa entre França/Brasil. Eu lhes disse que não poderia levá-los porque seria muito arriscado. Um casal torcedor da equipe adversária, entre milhares de torcedores fanáticos e embebedados, seria uma temeridade! Poderia até mesmo haver linchamento. Os dois decidiram então ver o jogo em casa, juntamente com outros compatriotas. Continuei com meus amigos, no local de sempre.
Naquele dia, a equipe brasileira, bem superior à francesa, foi marcada por um acontecimento nebuloso que até hoje me intriga. Foi noticiado que, pouco antes do jogo, Ronaldo, estrela do time, teve uma convulsão. Foi levado ao hospital e liberado, sem diagnóstico preciso. Seria substituído por Edmundo, mas fez questão de entrar em campo. O técnico Zagallo aquiesceu. Fiasco total de nossa equipe. Ronaldo, com atuação completamente decepcionante, às vezes, parecia um sonâmbulo correndo atrás  da bola. Os anfitriões, contando com a atuação espetacular de Zinedine Zidane, conquistaram o título por 1 a 0.

Ao final do jogo, desapontamento geral, tristeza e choro. Preferi sair daquele ambiente de velório. Decidi procurar os amigos franceses para as devidas felicitações. Ao chegar à casa deles, havia cerca de dez pessoas brindando e festejando. Entrei no clima de festa e comemorei a vitória da França, já que não podia comemorar a nossa. Em frente ao prédio, havia um barzinho, repleto de gente desapontada com o a que acabara de assistir. Um dos franceses sugeriu que nos deslocássemos para o bar, visto que a cerveja havia acabado. Fiquei apreensiva e avisei-os do risco que correriam. Poderiam ser maltratados, ouvir palavrões e até mesmo ser atacados por algum fanático. Fui voto vencido. Lá fomos nós. Quando lá chegamos, houve uma reação inusitada. Um vizinho, que os conhecia, se levantou e os felicitou, alto e bom som, para que todos ouvissem. Acrescentou que a atuação da seleção brasileira naquele dia havia sido um fiasco e que a seleção francesa era merecedora do título. Ao terminar, começou a cantar La Marseillaise, o hino nacional da França. Todos se levantaram e cantaram juntos. Pelo menos parte do refrão, a maioria sabia de cor. “Allons enfants de La patrie / Le jour de gloire est arrivé / contre nous de la tiranie / l’étandard sanglant est levé... ». Depois, os clientes fizeram um brinde à equipe francesa. Eu jamais imaginaria tal confraternização por parte dos capixabas.

A última Copa do Mundo, a de 2014, deve ser esquecida para sempre, ou melhor, deve ser bem lembrada para que o malogro não se repita. No estádio do Mineirão, apagou-se a chama da torcida brasileira com a goleada de 7 x 1 da seleção alemã sobre a nossa, o que a eliminou da esperada finalíssima. Segundo comentários, à boca pequena, no intervalo entre os dois tempos, a seleção alemã combinou de desacelerar o jogo e de não aumentar a goleada, para amenizar o constrangimento dos anfitriões, conhecidos mundialmente como “bons de bola”. Melhor esquecer tamanha derrota e mudar de assunto.

Jô Drumond
Junho 2018

quinta-feira, 14 de junho de 2018

JEITINHO BRASILEIRO OU LUSITANO?

por: Jô Drumond

Desde crianças, ouvimos piadas de portugueses, que os caracterizam como patetas, distraídos ou pouco inteligentes. Depois de ter passado uma temporada em Portugal, convenci-me de que isso não passa de simples clichê, destituído de fundamentação. Seria, talvez, uma simples vingança que remonta à época da colonização, um tipo de ranço colonizatório.

Como se sabe, o colonizador é sempre visto como opressor pelo colonizado. Na impossibilidade de enfrentar o mais forte, resta ao oprimido fazer galhofas e chistes para mostrar que é superior a ele nos quesitos inteligência, rapidez de raciocínio, perspicácia, engenhosidade... de forma a desqualificá-lo.

Referir-se aos colonizadores ou aos invasores de forma jocosa não é privilégio nosso; é uma atitude comum em diversas partes do mundo. Os portugueses, por exemplo, fazem anedotas a respeito dos espanhóis, pelos quais foram dominados, em certa época. Esse tipo de sátira é uma doce vingança, pacífica e, ao mesmo tempo, ferina.

Percebi claramente, in loco, que o clichê do “português burro”, contido nas usuais piadas brasileiras, é falso. Trata-se de um povo inteligente, astuto, alegre e acolhedor.

Sempre ouvimos falar do “jeitinho brasileiro”, como se fôssemos astutos, matreiros, sagazes, ardilosos e até mesmo velhacos. Tal jeitinho consiste em soluções criativas para resolver problemas ou situações difíceis, mas é controverso. Pode ser bom ou ruim. Tanto pode revelar astúcia, habilidade, flexibilidade, quanto o caráter duvidoso de quem gosta de "levar vantagem em tudo”. A malandragem consiste justamente em se beneficiar, em detrimento dos outros.

Há estrangeiros que nutrem grande admiração pela flexibilidade e inventividade do brasileiro para improvisar soluções em situações problemáticas, com humor e perspicácia. O propalado “jeitinho”, tão presente em nossa cultura, pode variar de um simples favor de um amigo à corrupção, dependendo do grau do favor e do posto ocupado pelo amigo. Destarte, no que se refere à criatividade, é positivo, mas no que concerne à malandragem, é altamente negativo.

Seria o jeitinho brasileiro uma herança lusitana? Ao visitar recentemente a cidade do Porto, alguns detalhes me alertaram para essa possibilidade.


Vejamos exemplos históricos da astúcia do povo lusitano. A demonstração mais inusitada do jeitinho português aconteceu justamente no clero, que deveria primar pela retidão de caráter e pelo respeito às normas pré-estabelecidas. Na cidade do Porto, que deu nome a Portugal (Portus Cale - Condado Portucalense), a Igreja do Carmo, geminada à das Carmelitas (séc. XVIII) corresponde a uma das mais belas edificações do Barroco Rococó da cidade. Em um primeiro golpe de vista, percebe-se um só bloco, mas o bom observador perceberá que se trata de duas igrejas. Segundo informações de nosso guia turístico, a Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo recebera, como doação, um terreno para a construção de sua igreja. Em respeito à clausura das freiras, tal ordem teria que construir duas igrejas: uma para os homens (a Igreja do Carmo) e outra para as mulheres (a das Carmelitas). Um problema se interpunha entre ambas. Havia uma lei do Vaticano que proibia a construção de duas igrejas contíguas. Como resolver a questão? Novamente emergiu a astúcia lusitana. Foram construídas duas igrejas (veja foto) entre as quais se edificou a provável menor casa do mundo, com cerca de um metro de largura, duas janelas e uma porta, separando o que não poderia ficar unido. A função da casa foi tão somente a de burlar a lei. Não se pode afirmar que as duas igrejas sejam interligadas, pois há entre elas essa casinha, que, de tão pequenina, passa despercebida por aqueles que desconhecem a história da construção.


As moradias próximas a tais igrejas têm uma característica especial. As construções, todas elas interligadas, como as de Ouro Preto, têm fachadas estreitas e uma só porta de entrada, porque o valor do imposto predial, na época da construção, era proporcional ao tamanho aparente do imóvel. Cada andar correspondia a um amplo apartamento, apesar das pequenas fachadas. Dessa forma, diversas famílias podiam viver em grandes moradas, de modo a burlar o fisco, pagando um imposto irrisório.

Outra história que ouvi no Velho Mundo aponta para a mesma questão da sagacidade portuguesa. No início da Inquisição, o Rei de Portugal não via ingerência papal com bons olhos, porque a presença dos judeus era importante para a economia do país. Fazia vistas grossas às ordens do Vaticano, até que, certa vez, foi intimado pelo Papa a tomar uma posição radical. Teria que expulsar todos os judeus de Portugal ou então teria que convertê-los ao catolicismo. O Rei não se deu por vencido. No intuito de não expulsá-los, convocou todos eles à corte, numa determinada data. Estando todos reunidos em grande praça pública, o Soberano fez o sinal da cruz, dizendo: eu vos batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ide em paz e o Senhor vos acompanhe. Logo após, enviou um mensageiro ao Vaticano, afirmando que todos os judeus de seu país tinham se convertido ao catolicismo. Por algum tempo, conseguiu burlar a vigilância papal.

Na época da iminente invasão do território português pelas tropas de Napoleão, a Família Real se transferiu para o Brasil. Todas as igrejas, cujos retábulos eram cobertos de ouro, tiveram diversas demãos de cal em seu interior, com o intuito de encobrir a riqueza da decoração. A suntuosidade barroca acabou passando em “brancas nuvens” pelas tropas napoleônicas. Os invasores, ludibriados, não atinaram para a perspicácia portuguesa. Destarte, preservou-se o ouro e a beleza da ornamentação sacra tal qual permanece até os dias atuais.

A decisão estratégica de transferir toda a corte para o Brasil, para se livrar do jugo napoleônico, foi muito benéfica à colônia. Juntamente com ela vieram as escolas, as bibliotecas, as universidades, o requinte arquitetônico, as Belas Artes, a construção de teatros, a imprensa... enfim, devemos tudo isso, indiretamente, a Napoleão Bonaparte.

Como vimos, o clichê jocoso que todos nós conhecemos desde a infância sobre os portugueses e que, no Brasil, foi passado de geração em geração, não corresponde aos fatos. Pelo visto, é bem provável que tenhamos herdado tal “jeitinho” justamente de nossos ancestrais lusitanos.

Jô Drumond
Junho 2018