domingo, 24 de setembro de 2017

FESTA DA MÚSICA


Em Paris há um grupo amigos de longa data, que passam as férias de verão sempre juntos, em Saint Tropez. No dia em que chegamos àquela cidade, acompanhados por um casal de amigos parisienses, fomos apresentados a esse grupo, na casa de veraneio um deles. Num varandão que dava para o mar, uma grande roda se formou em torno de uma mesa, para bebericar e jogar conversa fora.  Num dado momento, alguém sugeriu que cada um cantasse ou declamasse algo. Quando chegou minha vez, eu disse que iria cantar o refrão de uma longa canção infantil, que eu havia aprendido quando criança, mas da qual me lembrava apenas algumas estrofes. Comecei então:

Il  était un petit navire

Il était un petit navire

Qui n’avait ja ja jamais navigué

Qui n’avait ja ja jamais navigué

Ohé, ohé !

Ohé ! Matelot !

Num piscar de olhos, todos resgataram, do fundo da memória, essa canção que haviam aprendido também na infância, e cantaram entusiasmados, a plenos pulmões, as dezesseis estrofes. Foi uma espécie de congraçamento muito emocionante! Um deles, comovido, chegou a me agradecer por ter-lhe trazido de volta os bons “tempos que não voltam mais”.

Saint Tropez é cidade de gente grã-fina. No cais ficam ancorados os maiores e mais chiques iates dos magnatas europeus. A diária, dependendo das dimensões da embarcação, custa alguns milhares de euros, ou seja, mais do que a diária de qualquer hotel cinco estrelas. É um universo muito distante do nosso.

Por coincidência, chegamos a essa cidade às vésperas da tradicional Festa da Música. Tal tradição, começada em Toulouse (França), em 1976, acontece anualmente em uma centena de países, no dia 21 de junho, no qual se comemora o solstício de verão do hemisfério norte, quando a duração do dia é a mais longa do ano.

Tivemos a oportunidade de presenciar in loco a movimentação que a festa acarreta. Estávamos de férias em Saint Tropez, como foi dito, com um casal que havia sido convidado para comemorar o Dia da Música, em grande estilo, numa mansão próxima à cidade, incrustada na vertente de uma mata virgem. Pelo fato de sermos amigos dos amigos dos anfitriões, meu marido e eu acabamos sendo convidados para a noitada gastronômica regada a bons vinhos e embalada por boa música.

Durante a festa, à medida que íamos sendo apresentados, muitos se aproximavam para fazerem perguntas sobre o Brasil. Únicos estrangeiros no local, tornamo-nos foco de curiosidade, como se fôssemos espécie exótica da terra do samba, do sol e do futebol. Lá pelas tantas, quando o teor etílico no sangue estava mais alto que os decibéis musicais, conversa vai, conversa vem, acabaram nos perguntando se podíamos fazer uma demonstração de samba.

Sabendo que estaria na França no dia da Festa da Música, eu havia colocado na bagagem, por precaução, CDs com ritmos de nossa terra. Com a alegria e animação características de nosso “patropi”, prontificamo-nos a lhes mostrar o que havíamos aprendido em anos de academias de dança. Fomos vivamente aplaudidos. Ao notar o interesse geral, perguntei se gostariam de aprender o passo básico de samba no pé. Todos se interessaram. Fizeram então uma grande roda em torno de nós dois. 

Começamos lentamente o passo contando 1,2,3, que aos poucos ia se agilizando para alcançar o ritmo do samba. Antes de atingir o gingado, eles perdiam totalmente o ritmo. Recomeçamos lentamente por diversas vezes, em vão. Percebi a inutilidade do esforço. Eu me dei conta de que eles jamais conseguiriam conciliar o passo ao molejo do corpo, em poucos minutos. O passo básico, apesar de aparentemente simples e fácil, corresponde a uma difícil harmonia de movimento dos pés, dos braços e do quadril, sem perder a cadência.

Sugeri então, mostrar-lhes como se dança outro ritmo nosso, o forró, desconhecido por todos. Logo após a apresentação do forró, coloquei um CD de swing, com músicas internacionais, e convidei a todos para a pista de dança. Foi uma soirée inesquecível, na qual demos, prazerosamente, nossa efetiva contribuição para animar a festa, fazendo de certa forma a contrapartida ao gentil convite dos anfitriões.

Sob o slogan “Faites de la musique” (faça música), que tem exatamente a mesma pronúncia de “Fête de la musique” (festa da música), tal festividade encoraja músicos amadores e veteranos a se apresentar voluntariamente, o que permite à população o acesso a diversos tipos de música. Trata-se de um evento eminentemente popular. Um em cada dez franceses dá sua contribuição, tocando ou cantando. 

Nesse dia, em todo o país, muitas ruas são fechadas para a instalação de palcos. As apresentações musicais, todas gratuitas, acontecem por toda parte: logradouros, praças, bares, estádios de esporte e outros espaços. As grandes salas de concertos abrem suas portas gratuitamente. O Ministério da Cultura da França organiza para esse dia cerca de dezoito mil concertos em todo o território. Milhões de espectadores são brindados por milhares de músicos e cantores profissionais e amadores em todos os cantos do hexágono francês.


Jô Drumond

IRMÃS CARMELITAS

 Certo dia, telefonaram-me solicitando o trabalho como professora   num convento da Ordem das Carmelitas, “as servas dos pobres”. Eu deveria ensinar a língua francesa a duas irmãs que iriam para o Mosteiro de Nossa Senhora do Monte Carmelo, fundado no século XI, em Israel, no qual se usa esse idioma para as orações. 

Fiquei curiosa. Eu nunca havia visto uma carmelita, pelo fato de viverem enclausuradas.
Eu teria que me deslocar todos os dias até o convento, e enfrentar o trânsito do centro da cidade, num percurso que duraria, no mínimo, uma hora de ida e outra de volta. Tive que recusar o convite, devido a outros compromissos assumidos anteriormente.

 Dias depois, recebi outro telefonema. Como o tempo urgia, o convento decidira abrir uma exceção. Elas poderiam se deslocar até minha casa, para o aprendizado. Um dos voluntários, que ajudavam a ordem, havia se oferecido para levá-las de carro. Esperaria estacionado à porta, e as levaria de volta, sãs e salvas.
A mais jovem era alegre, sorridente e brincalhona. A outra, séria e compenetrada. Duas personalidades totalmente opostas. Com o tempo, percebi que a convivência entre elas não era de todo pacífica. Frequentemente, a mais idosa policiava e repreendia, com o olhar, as atitudes espontâneas da mais jovem.

Ambas usavam o tradicional e incômodo hábito escuro, mantendo apenas o rosto à vista, vestimenta imprópria para  aquele verão escaldante. Num dia de altas temperaturas, eu usava uma blusa branca em tecido fino, transparente, sobre uma camiseta de alças. Encalorada, pedi licença, tirei a blusa em plena aula e lhes disse que ficassem à vontade para se livrar de tantos panos. Não sei se eu disse alguma besteira. O fato é que elas riram descontraidamente. A mais jovem disse: Ah! Como você é engraçada! Quando eu contar isso para as outras irmãs elas nem vão acreditar!

Ficamos amigas, na medida do possível. Nossos encontros linguísticos eram muito prazerosos. Elas estavam ansiosas para aprender falar e rezar em francês. Elas diziam que eu era um anjo caído do céu, para lhes ensinar a língua que usariam no convento, em Jerusalém.

Aos poucos, a notícia se espalhou pela vizinhança. Nos horários de aula, minha casa parecia ponto turístico. Discretamente, todos queriam ver, mesmo de longe, por instantes, as duas “desenclausuradas”. Os curiosos se mantinham discretos, para não assustá-las. Alguns fingiam estar varrendo a calçada, outros passeando com o cachorro ou lavando o carro. Havia também aqueles que se disfarçavam dentro dos carros, de modo que elas não se sentissem foco das miradas.  

Certo dia elas me disseram que as pessoas, em geral, são extremamente bondosas, gentis e generosas. Prova disso é que no convento, elas vivem da caridade alheia, sem necessidade alguma de pedir algo a quem quer que seja. O padeiro fornece-lhes gratuitamente o “pão de cada dia”; o açougueiro faz-lhes a estocagem semanal de carnes; os feirantes são pródigos em frutas e legumes; o merceeiro também fornece sua cota semanal. Assim sendo, nada lhes falta. Perguntei-lhes se o motorista as conduzia também gratuitamente, até minha casa.  − Claro que sim, disse a mais jovem. Ele é um amor de pessoa! Está com a mãe muito doente e pede sempre que oremos por ela. 

Num piscar de olhos matei a charada de tanta generosidade. Tanto o padeiro, quanto o açougueiro, o verdureiro, o merceeiro e os demais que atendem às necessidades básicas do convento são recompensados por orações. Há uma crença de que a oração de uma Carmelita vale mais que a do cidadão comum, pelo falo de ela estar quase sem contato com o mundo, em estado de graça e, por conseguinte, mais perto do céu. É como se tivesse linha direta com o Criador. Seus pedidos são mais facilmente acatados pela divindade. Essa intermediação é o preço pago por elas aos generosos voluntários, todos eles com graves problemas na família, a serem resolvidos, sobretudo de saúde.

Delicadamente, fiz–lhes ver, com muita cautela, para não decepcioná-las, que o mundo e o ser humano não são tão bons, nem tão generosos quanto parecem. O que se faz em prol do convento é uma simples permuta: provisões em troca de orações.

JÔ Drumond


FESTAS JOANINAS OU JUNINAS?



Quando criança, algo me intrigava nas festas juninas. Por que razão tínhamos que usar indumentária de verão, se a festa acontecia em pleno inverno, ao ar livre? Vestidinho de chita, manguinhas curtas, sem nenhuma proteção nas pernas… que judiação! Deixava de ser prazeroso. “Ir a uma festa junina”, naquela época, em Patos de Minas, era sinônimo “tiritar de frio”.

A resposta é simples. Os vestidos, geralmente, são de chita, por ser um dos tecidos mais baratos, usados por camponeses. O modelito típico feminino de mangas curtas e saia rodada é originário de uma festa campesina, no hemisfério norte, para comemorar o solstício de verão, ou seja, o dia mais longo do ano, que, contrariamente, em nosso hemisfério, coincide com o solstício de inverno.

Outra coisa carecia de explicação para minha cabecinha infantil. Se a festa era em homenagem a São João deveria ser “joanina” e não “junina”. O que eu não sabia, e que muita gente talvez não saiba, é que tal evento com dança, música, folguedos e foguetório, em tempos idos, era uma espécie de culto ao Sol, em agradecimento às boas colheitas. Mais tarde, o cristianismo transformou a festa pagã, que já acontecia nessa data, em festa religiosa, aproveitando o ensejo da data natalícia de São João. O termo original “joanina” foi posteriormente substituído por outro mais abrangente, “junina”, para abarcar outros santos cujas festividades acontecem no mês de junho (São Pedro e Santo Antônio). Como muitas vezes, no Brasil, as festividades se estendem pelo mês de julho, eventualmente ouve-se até mesmo “festa julina”. A flexibilidade linguística nos permite tais adaptações.

Em cada região brasileira, essas festividades têm nuances diferentes, no que se refere aos quitutes, aos aperitivos e à música. Apesar da diversidade, há elementos tradicionais em todas elas: balões, fogos de artifício, mastro enfeitado, fogueira, casamento caipira, entre outros.

Os balões, hoje proibidos no Brasil devido ao risco de incêndio, sobem aos céus para anunciar o início das festividades. A explosão dos fogos de artifício, segundo a tradição, é para acordar São João. O mastro atual, com três bandeirolas na extremidade superior, é uma homenagem aos três santos. A fogueira, símbolo de proteção contra maus espíritos, nocivos à colheita, faz parte das comemorações, desde a Idade Média. O casamento caipira é uma sátira aos casamentos tradicionais.

Outra coisa que me intrigava, na infância, era a marcação da coreografia, feita parcialmente em uma língua incompreensível para mim. O comando mais frequente, “balancê”, era repetido ao término de cada passo. Quando havia outro comando específico para os cavalheiros, as damas permaneciam no passo do balanço. Por que “balancê” em vez de “balançar”? Havia outros comandos ainda mais complicados: “anavan” (en avant = para frente); anarriê (en arrière = para trás); tur (tour = dar a volta); returnê (retournez = retornar); “vizavi” (vis-à-vis = face a face, um diante do outro).

No Brasil, a quadrilha se tornou uma tradição, nas festas de junho. Praticamente nos quatro cantos do país, ela acontece em clubes, praças e escolas (desde as creches até as universidades). O interessante é que, na França, onde se fixou tal tradição, ela inexiste nos dias de hoje. O divertimento popular ao ar livre, herdado por nós, acabou descambando para o can-can. Salvo engano, a única quadrilha popular que resta em terras gaulesas, é numa possessão francesa, a ilha da Córsega.

Surgida na Europa, na Idade Média, a quadrilha, originariamente uma dança campesina, caiu nas graças da nobreza e foi prontamente adotada pela França, tornando-se usual nos grandes palácios, por volta dos séculos XIII e XIV. De lá, expandiu-se para as demais cortes europeias. Foi trazida para o Brasil no século XIX, onde se mesclou a outras tradições culturais. Diferentemente da dança que conhecemos hoje, a quadrilha francesa era uma dança elegante, com diversas modalidades específicas para cada tipo de evento: quadrilha do príncipe imperial, quadrilha de variedades francesas, quadrilha das abelhas, quadrilha dos Incas, quadrilha russa ou americana, e assim por diante. Na França, genericamente, o termo masculino “le quadrille” designa uma dança comum nos grandes salões da aristocracia, durante o Segundo Império ou Restauração. Tratava-se de uma coreografia com um determinado número de participantes, a título de entreato, durante os bailes. Tal dança se caracterizava pela “elegância das vestimentas, harmonia das cores e perfeição do conjunto.”



Jô Drumond