sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

O CARNAVAL DE OUTRAS ERAS


É interessante observar que, desde tempos remotos, as festividades carnavalescas sempre estiveram relacionadas à fecundação da terra e da espécie humana. Na Antiguidade, a terra era concebida como um organismo feminino; a colheita, como termo de uma gestação.

As procissões fálicas, em homenagem à deusa da fertilidade, Deméter, tinham o objetivo de despertar o riso e a alegria e, por conseguinte de suscitar fecundação, reflorescimento e colheita abundante na natureza, da qual fazemos parte. Isso sempre engendrou um fenômeno social conhecido como “os filhos do carnaval”. Trata-se do alto índice de natalidade nove meses após tais festividades populares, responsáveis por um grande número de filhos fortuitos, vindos ao mundo sem programação prévia.

As festas dionisíacas e saturnais (correspondentes ao atual carnaval) coincidiam com os rituais agrários. Todas elas mantinham a mesma linha de pensamento: o riso, a alegria e a licenciosidade desencadeavam um poder mágico sobre a natureza tornando-a fecunda. Houve época em que, durante as comilanças públicas, em dias festivos, comia-se e bebia-se a ponto de perder os sentidos. Não havia nenhum tipo de recriminação para tais atos. Pelo contrário, isso era visto como algo positivo. Essas comilanças eram acompanhadas por risos fragorosos, exultantes e plenos de satisfação, que influenciariam o florescer da terra. Considera-se, até hoje, que o riso alegre é vivificador. Elimina emoções negativas e estimula o desejo de viver.

Cerca de 560 anos a.C., havia manifestações populares, com diálogos, músicas, cantos, danças, fantasias e representações caricaturais do mito dionisíaco. Durante as procissões, os "Komastes" (homens fantasiados com falso ventre e falso traseiro) usavam enormes falos postiços, simbolizando a fertilidade, o crescimento e a abundância.

Em tempos de antanho, o carnaval (festa medieval popular), era a segunda vida do povo, na qual reinavam fantasia, liberdade, igualdade, abundância e alegria. Nas cidades, tais celebrações chegavam a durar três meses por ano. Ao contrário da festa oficial, na carnavalesca havia uma espécie de liberação temporária e abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Sua tônica era e ainda continua sendo a descontração por meio da subversão da ordem estabelecida. Um bufão era sagrado rei (rei Momo do carnaval de hoje), roupas eram vestidas pelo avesso, calças se punham na cabeça em lugar do chapéu...

Diferentemente da Antiguidade, na Idade Média, durante cerca de um milênio, o riso foi abolido da esfera oficial, em cultos religiosos e cerimônias feudais, mas era permitido em praça pública. Riso e seriedade correspondiam a uma moeda de duas faces: a oficial, relacionada à seriedade, à opressão, às restrições, às intimidações; e a outra face, da esfera popular, relacionada ao riso, ao amor, à renovação, à fecundidade, à abundância, à comilança e ao sexo.

Sacro e profano coexistiam, mas não se fundiam. Acreditava-se que apenas a seriedade podia expressar a verdade e o bem. Em compensação, paralelamente, ritos cômicos, tolerados pela Igreja cristã, degradavam ritos e símbolos religiosos. No início do cristianismo foi instituída, por exemplo, a festa dos loucos, na qual tudo era permitido: embriaguez, glutonaria e obscenidades de toda sorte. A justificativa dessas festas apoiava-se no fato de que o ser humano tinha duas naturezas: a da seriedade, cultivada e aceita oficialmente; e uma segunda natureza inata, contrária à primeira. O homem era comparado a um tonel de vinho que devia ser destapado de vez em quando, devido à fermentação. O vinho da sabedoria faria com que o homem explodisse, caso se mantivesse na constante fermentação da piedade e do temor divino. Destarte, as festas e os folguedos correspondiam à válvula de escape da rigidez imposta pelo poder constituído.

A igreja fazia com que algumas festas cristãs coincidissem com as pagãs, a fim de cristianizar os homens. A bufonaria era permitida para que os fiéis voltassem depois dela, com duplicado zelo, ao serviço do Senhor.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

PARENTESCO ATÍPICO

Numa determinada agência bancária no interior do Ceará, havia um cliente pretensamente acima de qualquer suspeição, porém bastante suspeito. Tratava-se de um Monsenhor, sério, honesto e de moral ilibada.

Um belo dia, chegou à cidade o inspetor Juarez, vindo do Sul do país para averiguar a situação do banco. Encontrou uma dívida enorme em nome de uma cooperativa criada pela paróquia e administrada extraoficialmente por um Monsenhor. Segundo o gerente, o religioso se recusava a pagá-la, alegando ser a dívida oriunda da cooperativa. Feita a auditoria, averiguou-se que se tratava de uma cooperativa fantasma. A relação entre banco e cliente andava cada vez mais tensa. De um lado, acirramento da cobrança; de outro, recusa peremptória.

Certo dia, a autoridade religiosa foi convidada a comparecer à agência bancária. Dirigiu-se à gerência, onde se encontravam o gerente e o inspetor. A conversa começou dentro da normalidade, mas, à medida que avançava, os ânimos se alteravam assim como o tom das vozes, cada vez mais audíveis por todo o ambiente. O entrevero foi causado evidentemente pela inadimplência e pela recusa sistemática do religioso em quitar a dívida. O desacordo cada vez mais tenso entre os interlocutores, e o consequente aumento do nível de intensidade em decibéis fizeram com que funcionários e clientes parassem para assistir à discussão. O Monsenhor, vendo-se obrigado a pagar o que devia, comunicou ao inspetor, em voz alta, que ele seria excomungado da Igreja Católica. Muito à vontade, em tom de deboche, o inspetor lhe respondeu, no mesmo tom, que, por sua vez, ele já excomungara o Monsenhor havia muito tempo. Ninguém conseguiu conter o riso. O religioso saiu acabrunhado e envergonhado devido à presença, no recinto, de muitos frequentadores da igreja.

Como havia muitos “abacaxis a descascar”, Juarez acabou alongando a inspeção naquela agência bancária. Casualmente, conheceu uma linda e meiga garota, chamada Juliana. Pediu a autorização dos pais da donzela para iniciar o namoro e, alguns meses depois, pediu solenemente sua mão em casamento. A cerimônia religiosa deveria ser realizada na catedral da cidade, onde o Monsenhor atuava.

Após a enrascada no banco, os fuxicos se multiplicaram assustadoramente. Não se falava em outra coisa, na pequena cidade. Isso complicou a vida dos noivos, cuja cerimônia religiosa foi sistematicamente recusada por todos os padres da cidade, em sinal de apoio ao colega ofendido. A cada dia procuravam um padre diferente. A resposta era sempre negativa. Apelaram então para o Bispo. Conseguiram, por meio dele, a autorização para o matrimônio na capital do Estado, longe de tudo e de todos.

Esse foi o primeiro empecilho a ser transposto pelo noivo. O segundo era de ordem familiar. Franciele, a mãe da noiva, gostava do pretendente, mas tinha certas restrições. Primeiramente pela grande diferença de idade. Juarez era viúvo, pai de seis filhos. Em segundo lugar, porque se tratava um desconhecido, vindo sabe-se lá de onde. Além do mais, pretendia levar a futura esposa para bem longe dali. Lamentava ter tido tanto esmero na educação da menina, para entregá-la em mãos desconhecidas, e, além disso, perdê-la de vista. Juliana era primogênita, criada com muito rigor, em internato de freiras, muito bem preparada para o papel de esposa.

Um dia, a futura sogra chamou o noivo em particular e lhe disse:

─ Veja bem! Eu queria ver minha filha formada e gostaria que ela continuasse a viver aqui junto à família. Você quer levá-la para bem longe, antes da formatura. Apesar de meu contragosto, esse casamento “é de gosto” para Juliana. Caso eu não o aceite, vou ter que ouvir a ladainha já esperada, por parte dela, pelo resto da vida. Façamos o seguinte: eu permito que você leve minha filha, mas com uma condição. Levará também uma de suas irmãs. Não gostaria que ela ficasse sozinha, sem alguém da família para lhe dar apoio.

Estando ambos de acordo, a mãe passou então à fase da preparação do enxoval. No dia da partida, Juliana foi surpreendida por um revólver calibre 38 dentro da mala. Questionada a respeito, a mãe lhe disse simplesmente:

─ É só pra caso de precisão, minha filha.

Juliana nunca precisou usá-lo. Ao chegarem ao destino, ela e a irmã Luciana foram muito bem recebidas pelos filhos de Juarez. Prova disso é que seu filho primogênito acabou se casando com Luciana. Anos mais tarde, um irmão de Juliana foi visitá-la e acabou se engraçando pela filha caçula de Juarez. O visitante conseguiu trabalho no Sul e acabou constituindo família por lá. Mais um casamento entre as duas famílias. O parentesco às vezes se embaralhava para as pessoas de fora. Os colegas e amigos faziam brincadeiras para decifrar a confusa parentela. Quando criança, o filho único de Juarez /Juliana teve dificuldade em entender que um de seus irmãos era também seu tio. O casal viveu em perfeita harmonia até que a morte de Juarez os separou, vinte e um anos depois.

Como diz o provérbio francês, “tout est bien qui finit bien”. A união das duas famílias ficou mais que consagrada, com os três desponsórios. Quanto ao Monsenhor, após o “famoso” episódio na agência bancária, ficou tão vexado junto aos fiéis, que solicitou transferência para outra cidade. Nunca mais foi visto pelos paroquianos.

domingo, 9 de fevereiro de 2020

POLARIDADES


Um fato inusitado chocou a opinião pública, há algum tempo, em Vitória (ES). Uma avó atravessava a ponte Florentino Avidos, na faixa de pedestres, de mãos dadas com seu netinho de cinco anos. Um malfeitor, de cerca de 35 anos, surgiu repentinamente, tomou a criança da avó e a jogou no mar. Um engraxate, de passagem para o trabalho, presenciou a cena. Ao se dar conta do desvario do meliante, jogou por terra a caixa de engraxate, a carteira, o celular, o relógio, e, em questão de segundos, se jogou na água para tentar salvar a criança. Êxito total. O bom samaritano virou celebridade da noite para o dia. Sua foto saiu estampada na primeira página dos jornais locais. Como prêmio pela intrepidez, ganhou um curso de primeiros socorros, salvo engano, oferecido pelo Corpo de Bombeiros. O malfeitor foi retido no local pelos transeuntes, e imobilizado até a chegada da polícia.

Relatos extraído dos jornais locais, na época

Relato da avó:  "Foi um momento desesperador. Pensei em pular, mas não sei nadar. Comecei a gritar e do nada apareceu esse rapaz, que eu não conheço. Ele pulou e salvou o meu neto. Quando meu neto afundou, pensei que nunca mais iria vê-lo. Não tenho nem palavras para agradecer. Ele foi maravilhoso. Ainda bem que existem pessoas como ele."

Relato do salvador: "Só vi quando ele suspendeu a criança e a jogou dentro da água. A avó ficou desesperada. Eu não pensei em mais nada, a não ser em pular para poder salvar o garoto. Só pensei em ajudar. Era a única coisa que eu podia fazer. Na hora, pensei também em minha filha, de um ano e quatro meses.”

Relato do malfeitor:  "Eu passei na ponte e de repente eu peguei o menino e joguei dentro da água. Não tenho explicação para isso, estou com a cabeça ruim."

Esse fato em que o “anjo bom” sobrepuja o “anjo mal”, nos remete à polêmica polarização existente  desde os tempos pré-socráticos. Parmênides (530-460 a.C.) distinguia as qualidades positivas (o ser) como luz, e as negativas (o não ser) como obscuridade. Seu método consistia em estabelecer uma oposição, de modo que o mundo empírico se cindia em duas esferas, sendo uma a negação da outra. Essas polaridades, como Yin-Yang e outras mais existem também nitidamente no cristianismo como bem/mal, virtude/pecado, céu/inferno...
Seu contemporâneo Heráclito (540-470 a.C.) tinha outra visão completamente díspar. As antinomias belo/feio, fácil/difícil, grande/pequeno, branco/preto, alto/baixo, passado/futuro... para ele não são contrárias e sim complementares. O “ser” e o “não ser” estão contidos um no outro, em constante transformação. É dele o axioma de que não se pode banhar duas vezes no mesmo rio devido ao constante fluir das águas. A seu ver, nada é firme; tudo está em constante mutação.
A nítida distinção parmenidiana conhecida como “mal da polarização” foi amplamente rejeitada por pensadores que reiteraram o caráter relativo dos opostos: o mel pode ser, ao mesmo tempo, doce, para a maioria, e amargo para os que sofrem de icterícia. “Isto” e “aquilo” são interdependentes. Troca-se a preposição pelo verbo: "isto" é "aquilo".
Faço coro com esses pensadores e corroboro com o mote reiterativo “tudo é e não é” contido ao longo do romance Grande sertão: veredas, de nosso mestre Guimarães Rosa.
A meu ver, o Bem e o Mal coexistem dentro e fora do ser humano. É inútil almejar céu e inferno, ambos metafóricos, para o post mortem.  Em vida, passamos ora por um, ora por outro, segundo as circunstâncias, sempre na expectativa positiva de que a luz ofusque as trevas.
No caso da ponte, como foi dito, o “anjo do bem” sobrepujou o “anjo do mal”, mas isso nem sempre acontece no dia a dia. O audaz engraxate ganhou “celebridade relâmpago” e caiu novamente no anonimato. No entanto, devido à sua boa ação, se imortalizou na memória dos capixabas.
(Ponte Florentino Avidos, conhecida como Cinco Pontes, composta de 5 vãos, liga a Ilha de Vitória ao Continente. Um sexto vão, à parte, liga Vitória e Ilha do Príncipe. Fabricada em aço (um raro exemplar nacional), foi construída na Alemanha, no início do século passado. Hoje é um marco do patrimônio histórico e ambiental urbano do Espírito Santo.)
                                                                                              Jô Drumond