domingo, 24 de setembro de 2017

GRILHÕES


Próximo à cidade de Castelo (ES), tive a oportunidade de conhecer a antiga Fazenda Centro, construída por mão de obra escrava, em 1854, cuja senzala abrigava cerca de 600 escravos. O belíssimo casarão, em estilo colonial, com mais de mil metros quadrados, foi tombado pelo Patrimônio Histórico do ES. Além de ter sido uma fazenda muito produtiva e um grande marco para o desenvolvimento econômico da região, foi também palco de manifestações históricas e culturais, transformando-se mais tarde em seminário, e, depois, em noviciado.

Além da indiscutível beleza e imponência do imóvel, o que me atraiu a atenção foram as histórias que o envolvem desde sua construção, e que incitam a imaginação do visitante. Ao percorrer os cômodos dos dois andares, eu imaginava quantas pessoas ali tinham nascido, vivido, amado, sofrido, trabalhado e morrido. Quanta gente havia se debruçado naquelas 79 janelas para respirar o ar puro, para apreciar a paisagem, para vigiar os escravos ou para averiguar ao longe, na estrada de chão batido, se algum convidado se aproximava.

Segundo consta, o primeiro proprietário, latifundiário e escravocrata, diferentemente dos demais de sua categoria, apreciava as artes, em geral.  Destarte, teve uma iniciativa benfazeja. Criou, para seu bel-prazer e para o entretenimento dos visitantes e de todos que ali viviam, um grupo de teatro e uma banda de música, ambos compostos por escravos. Os integrantes da “troupe” e da banda se sentiam importantes pela participação e adquiriam novos aprendizados referentes à sua atuação.

Os demais escravos se vangloriavam de viver na única fazenda da região a possuir tais privilégios. Os visitantes, surpresos e encantados pela performance dos atores e músicos, se esmeravam em sentenças elogiosas. O anfitrião não cabia em si de contente pelo reconhecimento. Muitas festas eram ali organizadas, com o intuito de divulgar a inovação e a grandiosidade desse senhor de escravos que amava e difundia as artes. Poder ele já tinha de sobra.

O que almejava era a glória. Via nas festas um modo de alcançá-la. Os que por ali passavam poderiam divulgar seu grande feito Brasil afora. Ele se sentia mais liberal que os demais escravocratas; os escravos, por sua vez, sentiam menos o peso dos +grilhões. Tal inovação amenizava, de certa forma, o aspecto sombrio da escravidão: restrição da liberdade de ir e vir, desconforto das senzalas, trabalho não remunerado, má alimentação, submissão total aos patrões, punições, torturas, enfim, as péssimas condições de vida.

Considerando as devidas proporções, pode-se fazer um paralelo entre os grilhões da Fazenda Centro e os do Palácio de Versalhes. Ambos os locais serviram de cenário para o grande espetáculo da vida, mas de uma vida cativa, à mercê de dois diferentes tiranos.

Na corte mais cobiçada de todos os tempos, a de Luís XIV (França – século XVII), vivia-se com grande luxo e ostentação. O Palácio de Versalhes era invejado e copiado por outros reinos, devido à sua beleza e magnificência. No entanto esse Palácio nada mais era que uma imperceptível prisão dourada. O Rei Sol fazia questão de manter toda a aristocracia girando a sua volta. Atraiu da província para a corte os grandes e poderosos, com as respectivas famílias, e os manteve sob sua mira, numa vida festiva e luxuosa. Para o entretenimento dessa gente, investiu no mecenato artístico, atraindo para a corte os melhores e mais variados artistas, assim como grandiosos espetáculos de teatro, de dança e de música. Seu falso objetivo de entreter escondia outro menos nobre: o de reduzir o poder dessa classe e de torná-la incapaz de uma nova revolta de aristocratas, como a Fronde,  ocorrida anteriormente (1648/1653), que acarretou muitos dissabores.

Em Versalhes, era impossível sentir-se preso nos artísticos jardins a perder de vista, projetados pelo famoso arquiteto Le Nôtre, nas imensas galerias barrocas decoradas a ouro, nos maravilhosos bailes na Galeria dos Espelhos, nem nos gastronômicos banquetes regados com os melhores vinhos do reino. No entanto, para manter a soberania, o intuito absolutista do rei era justamente o de amordaçar invisivelmente seus súditos pelos sentidos (paladar, audição e visão), pelo luxo, requinte e magnificência das festas e eventos culturais.

Em todo tempo e lugar, em todas as comunidades, há grilhões sociais com grande poder de cerceamento da liberdade, alguns deles quase imperceptíveis: religião, família, casamento, trabalho, escola, hierarquias… Às vezes eles são camuflados. Por exemplo, a união matrimonial, por mais feliz que seja, carrega seu fardo opressor, sobretudo o da fidelidade. Atualmente, há escravos até mesmo das novas tecnologias. Há quem não consiga mais viver sem smartphone, sem internet, sem redes sociais… Desejamos todos que a “Liberdade abra a asas sobre nós”, mas, na realidade, estamos inexoravelmente presos às teias sociais.

Jô Drumond