domingo, 28 de setembro de 2014

ESTELIONATO CLERICAL

*Jô Drumond

Há algum tempo, nas pequenas aglomerações e vilarejos espalhados pelo coração do Brasil havia pouca circulação de dinheiro vivo. Parte do comércio funcionava na base da troca de mercadorias. Serviços prestados eram quitados pelo que se tinha para pagar: cachos de bananas, sacos de mantimentos (polvilho, farinha, feijão, arroz, entre outros), galináceos, suínos, bovinos ou terrenos, dependendo da vultuosidade do negócio.
Jesuíno Badão, morador da zona rural, deslocou-se até o lugarejo mais próximo, para contrair núpcias com sua amada Filomena, bem mais velha que ele, mas ainda bem “sacudida”. Levou consigo uma pequena manada vacas leiteiras, para oferecer à paróquia, em troca do ministério sacramental. O pároco não poderia recusar tão vultosa doação, bem acima dos honorários normais dos ministros de Deus. Daria para cobrir a tão desejada reforma da igrejinha, já quase ruindo pela mão do tempo.
A primeira providência do pároco foi o preenchimento de uma ficha com os dados dos nubentes: ambos lavradores, brasileiros, domiciliados na Fazenda do Angico, perto da encruzilhada da Tronqueira.
̶  Nome completo, por favor!
̶  Jesuíno Badão dos Reis.
̶  Idade?
̶  23 anos
̶  O nome da noiva, por favor!
̶  Jesuína Badão dos Reis
̶   Idade?
̶  40 anos
̶   Vocês são parentes?
̶   Sim sinhô, seu padre, ela é minha mãe.
̶   O quê? Sua mãe? Você está louco? Isso é um sacrilégio!
̶   O que é sacrilégio?
̶   É um pecado muito grave! Gravíssimo! Não haverá casamento algum. Podem voltar pra casa.
Cabisbaixo, Jesuíno coçou a cabeça timidamente e disse:
̶  Oh Mãe! Vamo tê que levá de vorta a manada de vaca que nois trouxe pra igreja.
Ao ouvir o “abre-te sésamo”, o pároco decidiu voltar atrás. Porém, não ficaria bem aceitar a doação em troca de um sacrilégio. Pediu aos noivos que pacientassem um pouco. Foi à sacristia e voltou com um livro grosso e pesado. Colocou-o sobre a mesa, folheou-o atentamente, como se estivesse procurando algo. Os dois analfabetos, recolhidos à ignorância, só faziam observar. Nunca haviam imaginado um livro com tantas letras. Dentro de uma batina preta, grande crucifixo no peito, o entendido em letradices parecia-lhes o dono da verdade. A palavra escrita era lei. Após meio quarto de hora, o veredicto final:
̶  Ah! Finalmente, achei o que estava procurando. Jesuíno, aqui diz o seguinte: pelas leis naturais, você não pode se casar com outro homem. Portanto, você não pode ser casar com seu pai, mas com sua mãe, tudo indica que sim! E não carece de testemunhas.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
(AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

ESPERANÇA



(Uma das três virtudes teologais: Fé, Esperança e Caridade)

Por: Jô Drumond

Tive a oportunidade de acompanhar algumas voluntárias que promovem jogos de bingo e passa-tempos diversos nos ambulatórios de quimioterapia e de hemodiálise, de um grande hospital, com o intuito de alegrar os pacientes e amenizar o peso das horas.

 Entramos primeiramente na ala da quimioterapia, onde fomos muito bem recebidas pelos pacientes. Todos participaram animadamente da brincadeira, interagiram o tempo todo demonstrando contentamento. Antes de nossa saída, um deles chegou a fazer um pequeno discurso laudatório enfatizando os benefícios da presença das voluntárias.


De lá, passamos ao ambulatório de hemodiálise. A recepção foi quase nula. Poucos quiseram participar da brincadeira. Houve quem  recusasse abertamente, quem  demonstrasse desgosto pela nossa presença e houve também quem fizesse ouvidos moucos, fingindo ignorar o que se passava. Era como se fôssemos um bando de invasoras saudáveis e alegres  apoderando-se abusivamente de um ambiente doentio e triste. Nossa presença parecia ressaltar a contraposição entre saúde e doença. Senti-me assaz constrangida, como indesejável intrusa.


Saí do hospital sem entender a disparidade de acolhimento e de participação das duas alas. Soube então, por meio de uma voluntária veterana, que a diferença entre ambas se chama simplesmente ESPERANÇA. Na quimioterapia, os pacientes se submetem ao tratamento, na expectativa de recuperação e/ou de cura. 

Na hemodiálise, eles têm consciência da impossibilidade da realização de seus desejos. Terão que se submeter ao tratamento compulsório e vitalício, sem vislumbre de melhoras. Suas vidas dependem da filtragem do sangue por um rim artificial, três vezes por semana, num processo que dura cerca de 4 horas.

Segundo Santo Agostinho, “enquanto houver vontade de lutar, haverá esperança de vencer”. Eu inverteria a sentença: “enquanto houver esperança de vencer, haverá vontade de lutar”. Os pacientes renais crônicos, cientes da impossibilidade de cura, às vezes perdem a vontade de lutar e, quiçá, o prazer de viver.


Para Thomas Hobbes, “o desejo, acompanhado da idéia de satisfazê-lo, chama-se esperança; despojado de tal idéia, chama-se desespero.” No caso focalizado não se trata de desespero, mas de apatia. Tais doentes não precisam de outro remédio senão de esperança. Somente ela lhes trará o pássaro azul da felicidade. Com o avanço da medicina, espero que um dia ele pouse nesse ambulatório, traduzindo sonhos em realidade.


*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)

Membro de 3 Academias de Letras

 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES

sexta-feira, 25 de julho de 2014

O MALFADADO CITY TOUR EM TIRADENTES



*Jô Drumond
Normalmente, ao visitar uma cidade desconhecida, o turista começa por um city tour guiado, para ter ideia do todo. Posteriormente, escolhe os locais a ser revisitados, a seu bel prazer. É o que sempre faço em minhas andanças mundo afora, e foi o que aconteceu na cidade Tiradentes (MG), berço do inconfidente Joaquim José da Silva Xavier, fundada por volta de 1702, quando se descobriu ouro na região. 

Em meu primeiro dia nessa charmosa cidade, ao sair do hotel, situado na principal praça da cidade, fui abordada, juntamente com meus companheiros de viagem, por um jovem que oferecia um city tour, numa charrete cor-de-rosa, de quatro assentos, forrada com tapete artesanal e puxada por um belo cavalo. 

Embarcamos nesse deleite. Outro rapaz juntou-se a nós, tomou as rédeas e se pôs a repetir como uma matraca, com péssima dicção, o texto que havia decorado para mostrar a cidade aos turistas. O fato de não articular bem as palavras dificultava nossa compreensão. Pedíamos em vão, que diminuísse a velocidade da fala. O que mais nos incomodava nele era um cheiro nauseabundo de suor que emanava de seu corpo; uma fedentina insuportável capaz de provocar enxaqueca em turistas de olfato sensível. Ao chegarmos à principal igreja pudemos descer, pela primeira vez, para visitar o interior o monumento, segundo ele, o segundo templo mais rico em ouro, do Brasil. 

Ao retomarmos os assentos cor-de-rosa, fomos surpreendidos pela troca de guia. Sentimo-nos aliviados, livres do mau cheiro, e esperávamos que esse se expressasse mais claramente que seu colega. Ledo engano! Tinha um dos maiores problemas para alguém que escolhe esse tipo de trabalho. Era completamente gago. Ao ouvi-lo, olhamo-nos discretamente uns aos outros com ares de troça. Nada perguntamos, para evitar constrangimento. Ele pouco falou. Diferentemente do primeiro, batia vigorosamente no traseiro do animal com uma vara. O guia anterior apenas balançava a rédea, emitia um ruído com a voz, e era prontamente atendido.

Catinga e gagueira foram apenas pequenos incidentes de percurso, comparados a algo mais sério, que merece a atenção da sociedade protetora dos animais. O antigo calçamento das ruas, feito com pedras irregulares, é impróprio para ferraduras. O cavalo avançava aos tropeços, escorregando a cada passo e, às vezes, caindo de joelhos nas descidas escorregadias. Esforçava-se ao máximo puxando a pesada charrete ladeira acima e freando com o próprio corpo, ladeira abaixo. Além disso, havia a punição das varadas sobre o lombo, após cada escorregão. Uma verdadeira tortura.

Não me contive. Sugeri ao “charreteiro” que colocasse uma proteção de borracha, ou de qualquer outro material antiderrapante em volta da ferradura, para evitar o sofrimento do animal. Respondeu-me que seria inviável devido ao rápido desgaste do material em atrito com as pedras.
Fica aqui um apelo para que se criem, o mais rapidamente possível, resistentes capas antiderrapantes para ferraduras de quadrúpedes obrigados a subir e descer ladeiras carregando peso, naquele tipo de pavimentação.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras
 (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES