Vicentim, cabra honesto e trabalhador, morava com a família na zona
rural mineira, próximo a um arraial que nem constava nos mapas. Trabalhava de
sol a sol, labutando na agricultura para garantir o sustento da família. Em
meados do século XX, não havia eletrificação rural. As fazendas operavam sem
nenhum tipo de maquinário. Por conseguinte, careciam de braços fortes e
numerosos para a lida diária. Andava cansado de briquitar na lavoura. Não podia
contar com a ajuda dos filhos, ainda pequenos. Em épocas de plantio e de
colheita, via-se na contingência de contratar mão de obra temporária, o que
onerava muito seu ganha-pão.
Soube, por meio de um compadre, que o “negócio da China”, naquele momento,
seria a pecuária, devido à alta vertiginosa do preço do gado. Seria
investimento garantido e lucro certo. Vicentim vislumbrou a possibilidade de
fazer um bom negócio, mas não dispunha de fundos, para começar. Zanzou por
algum tempo, de fazenda em fazenda, levantando empréstimos com parentes e
conhecidos. Acabou comprando uma pequena boiada, em detrimento da lavoura,
relegada a segundo plano, ou a plano algum.
De vez em quando, Vicentim dava-se o direito ao maior de seus deleites:
passar horas a fio, à beira do rio, em silêncio, perscrutando os segredos das
funduras, à espera de que a isca atraísse peixes graúdos. Eram horas de
tranquilidade e de relaxamento total. Esquecia-se das mazelas domésticas, das
dificuldades financeiras, das encrencas com os vaqueiros e dos problemas
pendentes, que não eram poucos.
O padrão de vida da família melhorava a passos largos, com a pecuária.
Os preços do gado atingiram cifras até então inimagináveis. Era o melhor dos
mundos possíveis, até que veio a peste e, com ela, a desolação. Grande parte do
rebanho teve que ser sacrificada. Mais sacrificados ainda ficaram os
pecuaristas, com sérios problemas de caixa. Vicentim encontrava-se encalacrado
com seus credores, mas não deixava transparecer sua aflição. Era homem habitualmente
sisudo e calado. Sua mulher Don’Ana, ao contrário, era alegre e falante.
Envolvida nas lidas domésticas e na criação dos rebentos, dispunha de pouco
tempo para elucubrações, mas, mesmo assim, percebeu que seu marido andava cada
vez mais circunspecto. Evitava incomodá-lo com questionamentos. Certamente
tinha problemas que não lhe diziam respeito. Era esperto e inteligente o
bastante para se sair bem em qualquer empreitada.
Certo dia, Vicentim pegou seus apetrechos de pescaria e se dirigiu ao
rio, como de costume. Dessa vez, seu retorno estava demorando por demais. Já se
fazia tarde. A noite se avizinhava. Don’Ana pediu aos dois filhos maiores que
fossem chamá-lo, à beira do rio. Não o encontraram, talvez devido ao
lusco-fusco do fim do dia. Don’Ana não se preocupou. Podia ser que tivesse ido
tomar umas biritas na venda do Getulão, com algum pescador amigo. Serviu a
janta às crianças, ouviu mais um capítulo da radionovela preferida, em um rádio
a pilha e, entre dezenove e vinte horas, ouviu o noticiário radiofônico A Voz
do Brasil. Vicentim não perdia nunca tal emissão. Sentava-se ao lado do rádio,
expulsava para longe as crianças ruidosas e ficava atento a tudo que se passava
no País. Naquele dia, ele não chegou a tempo. Don’Ana, sempre encarregada de engambelar
as crianças durante a transmissão, para deixá-lo em paz, sentiu falta da rotina
e começou a cismar. Teria ele bebido em excesso e se esquecido do noticiário?
Seria bem possível. Tratou de colocar os meninos nas respectivas camas, rezou o
terço, o rosário, a novena… e nada de Vicentim. Encompridou a reza, apelando
para o santo protetor dos pescadores, São Pedro. Nada de Vicentim. Manteria a
lamparina acesa até sua chegada. Acabou perdendo o sono. Pegou a lamparina, foi
até à despensa, onde ficavam as latas de chimanguinho, broas e pães de queijo.
Passou um cafezinho no coador de flanela, fartou-se de quitandas e esperou o
pachorrento passar do tempo. Não tinha noção das horas.
O único relógio existente na casa, herança de família, não funcionava, havia
anos. A noite parecia não ter fim. Don’Ana acabou cochilando, assentada na
banqueta da cozinha, até o amanhecer. Antes que as crianças acordassem, foi até
o rio, na esperança de encontrar algum traço do desaparecido. Seus pertences
estavam sobre um toco, a rede, a vara de pescar e a caixa de iscas, no chão.
Teria ele se afogado? Pouco provável. Sabia nadar. Às vezes, redemoinhos
formados dentro d’água sugavam tudo que se encontrasse à superfície. Se ele
tivesse sido engolido pelo “redemunho”, não haveria volta. Don’Ana se assentou
no toco e começou a matutar: caso ele tivesse resolvido nadar, teria deixado
suas roupas à margem. Caso tivesse usado a canoa para pescar, estaria vestido.
Isso explicaria a ausência das roupas. A canoa poderia ter sido sugada. No
entanto, nesse caso, não teria deixado a rede e a vara e as iscas à margem.
Seguindo rio abaixo, encontrou a canoa, presa a um tronco de árvore. Dali foi
diretamente ao bar do Getulão, para obter notícias. Todos ainda dormiam. Ousou
bater à porta. Foi atendida com um grande bocejo e espreguiçamento, pelo dono
da cachaçaria. Vicentim não tinha dado as caras por lá, na noite anterior. Ana
voltou para casa, serviu o desjejum aos pimpolhos, pediu a um vaqueiro que ficasse
com eles, arreou seu cavalo baio e saiu a campear o marido sumido. Cavalgou de
fazenda em fazenda, tentando obter notícias. Esticou algumas léguas até o
arraial, sem obter êxito. Marido sovertido. Quem sabe abduzido?
Don’Ana pensou então em outra possibilidade. Poderia ter sido atacado por
uma onça. Organizou um mutirão de cavaleiros para vasculhar toda a área, em
busca de algum sinal. Caso ele tivesse sido atacado, haveriam de encontrar
pedaços de vestimentas ou de corpo, no matagal. A não ser que a onça o tivesse
arrastado até seu esconderijo, para alimentar os filhotes. Era por demais
doloroso divagar sinistramente em busca de possibilidades cada vez mais
tenebrosas. Todos os esforços foram inúteis. As línguas de trapo insinuavam
outros caminhos. Talvez ele tivesse se engraçado por uma lourona e se mandado
com ela para a cidade ou para os quintos dos infernos. Houve até mesmo quem
insinuasse sua partida com outro cabra macho, após ter resolvido, nunca se
sabe, “sair do armário”. Don’Ana ouvia os disparates, desolada, sem saber o que
fazer. Não entendia nada de negócios. Pediu aos vaqueiros que continuassem a
ordenha diária, chamada, por ela de “tiração do leite”, que mantivessem a
“fazeção” dos queijos, no horário de sempre, e a apartação dos bezerros, no
final do dia. Pediu a um cunhado que assumisse a administração dos peões e do
que se fizesse necessário, até a volta do marido.
Com o tempo, as coisas foram se ajeitando, os credores foram se
acalmando, as crianças crescendo… e nem sinal de Vicentim. Teria fugido? Isso
nunca! Não passaria tanto tempo sem dar notícias, nem sem ver os filhos. Era
homem honesto, pai extremoso e marido carinhoso. Com certeza estava morto.
Aguardariam os cinco anos de praxe, para oficializar o desaparecimento.
Don’Ana não era de se jogar fora. Mulher sacudida, de fibra, muito
bem-apessoada. Alguns pretendentes foram se aproximando, discretamente, com a
desculpa de obter notícias ou de oferecer seus préstimos. Ela os recebia com a
devida cortesia, mas em momento algum a substituição do marido lhe passava pela
cabeça. Caso alguém insistisse, ela faria como a Penélope da história que
ouvira contar. Enganaria a todos cosendo e descosendo desculpas esfarrapadas
até que o desaparecido aparecesse.
Quinze anos se passaram sem notícias. Certo dia, um compadre do casal
teve que ir à capital. Ao chegar à rodoviária, resolveu engraxar as botinas.
Havia cinco grandes cadeiras de engraxate, alinhadas. Ocupou uma delas para a
devida prestação do serviço. Foi atendido por um rapaz moreno e falante. O
engraxate da última cadeira, na extremidade oposta, era muito parecido com
Vicentim, mas, diferentemente dele, era bem mais magro, usava cabelos longos,
barba e bigodes. Assuntou com o engraxate tagarela e soube que o colega em
questão era originário da zona rural e se chamava Vicente. Caso fosse o
compadre, escondido atrás da barba e do bigode, evidentemente não queria ser
identificado. Antes de sair, aproximou-se discretamente para ouvir a voz do
suspeito. Era por demais parecida com a de Vicentim, para não dizer a mesma. Nada
disse. Nada fez. Voltou para o interior e expôs o ocorrido aos irmãos do
sumido. Por ora, não diriam nada à Don’Ana, nem a ninguém. Iriam à capital,
para se certificar, e, se fosse o caso, trazer de volta o fujão, mesmo que
fosse a laço. Dito e feito. Três deles embarcaram para a capital e apareceram
de surpresa, na rodoviária. Um deles assentou-se na quinta cadeira, diante do
suposto irmão desaparecido. Ao vê-lo, Vicente desviou o olhar. Começou a
engraxar cabisbaixo, sem mirar o cliente. Os outros dois ficaram de pé, ao
lado, a observar. Nada disseram. Vicente não sabia o que fazer. Não tinha
certeza de ter sido identificado. Resolveu manter a farsa. Ao terminar, seu
irmão lhe disse que não tinha dinheiro trocado e o convidou a acompanhá-lo até
à lanchonete, para trocar uma nota de cinquenta reais. Vicente ainda continuava
mantendo a esperança de não ter sido reconhecido. Ao se aproximarem da
lanchonete, os três o cercaram e acabaram com a farsa. Queriam uma
justificativa plausível para tamanho disparate. Como abandonar os pais, a
esposa, os filhos, os irmãos, os amigos, uma vida, sem mais nem menos. Vicente
se pôs a tremer e, logo após, a chorar. Disse que tinha sido obrigado fugir por
estar sendo ameaçado de morte por parte de Miguelão, a quem devia muito
dinheiro. O negócio do gado inicialmente ia bem, até a chegada da peste. Com a
enorme quantidade de baixas no rebanho, não havia meios de liquidar as dívidas.
Teve que fugir para não morrer.
Os quatro se dirigiram a um lugar mais reservado, para prosear à
vontade. Primeiramente fizeram o levantamento dos créditos e dos credores. O
irmão mais velho sugeriu que a família pagasse as dívidas menores. Quanto à
mais vultosa, causadora do transtorno, já havia sido liquidada naturalmente.
Com a morte de Miguelão, seus familiares haviam vendido tudo e se mudado para
outro Estado. Como dizia um jogador de futebol, “para cada problemática, uma
solucionática”.
Outro problema se interpunha. Como justificar sua prolongada ausência?
Como teria ele saído da beira do rio e ido parar na capital? Como teria vivido
todo esse tempo? Por que não havia feito contato com a família? Confabularam e
combinaram então de tapar o sol com a peneira. Esses e demais questionamentos
que surgissem seriam computados na conta de uma amnésia temporária. O mistério
permaneceria. Ele não se lembraria de nada, até segunda ordem. Quem sabe, um
dia, encontrasse alguma desculpa convincente ou tivesse hombridade de recobrar
a memória? A farsa deveria ser mantida até mesmo para seus pais, que não
mereciam tal desgosto, assim como para Don’Ana, que havia “penelopado”, durante
quinze anos, à espera de seu Ulisses.
Mais uma questão a ser resolvida. Como
seria seu retorno ao lar? Não poderia aparecer subitamente, do nada. Os três
irmãos decidiram preparar o espírito de toda a família e organizar uma festa de
recepção, com data e hora marcada, para que Vicentim fosse recebido em grande
estilo e, sobretudo, sem perguntas.
Jô
Drumond – 26/outubro/2019