quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

OS NEFELIBATAS



Desde pequenina, eu sempre ouvia: “fulano vive nas nuvens”. Não entendia o sentido metafórico da expressão. Eu me perguntava por que viver nas nuvens se é bem mais prático viver em casa, com calefação no inverno, condicionador de ar no verão, comidinha gostosa... Além do mais, dormir na nuvem deve ser bem mais desconfortável que em caminha macia. Decididamente, os adultos têm cada ideia!

Com o passar do tempo, comecei a entender as falas enviesadas dos mais velhos. Entendi que ninguém vive nas alturas. Trata-se apenas de uma espécie de qualificativo para pessoas distraídas, sonhadoras, meditativas, idealistas, enfim, para aqueles que procuram se esquivar da realidade circundante, ou, como se diz popularmente, para aqueles que não têm os pés no chão.

Em Literatura, o termo nefelibata, de origem grega (grego "nephele" e "batha" = aquele que anda nas nuvens), é usado para tachar os que desobedecem às regras literárias, sobretudo os poetas que, geralmente, têm tendência inata ao nefelibatismo. No entanto, há poetas que deixam eventualmente a cabeça voejar, sem nunca tirar os pés do chão. São engajados socialmente e não aderem à concepção da Arte pela Arte. Não privilegiam a Estética em detrimento de outras funções tendenciosas do fazer artístico (morais, pedagógicas, religiosas, políticas, entre outras).

Mas isso não vem ao caso. O que importa é que descobri casualmente, na França, uma cidadezinha
medieval literalmente nefelibata, onde todos os moradores vivem não apenas com a cabeça nas nuvens, mas com o corpo todo, inclusive seus bens móveis e imóveis. Foi uma descoberta inesperada e deveras impactante.

Ao aceitar o convite de uma amiga parisiense para uma estada em Toulouse, aceitei prontamente. Minha intenção, na verdade, era conhecer uma cidadezinha próxima dali, chamada Albi (80 Km de Toulouse), terra natal do artista plástico Toulouse Lautrec (1864-1901). Após ter vivenciado o dia a dia dos idosos em um asilo (descrito na minha crônica “O luxo e o laxo”), seguimos de carro para Albi. Durante o percurso, Monique sugeriu uma visita a um vilarejo construído sobre as nuvens. Eu quis logo saber que disparate era aquele. Tratava-se de uma fortaleza medieval construída no cocuruto de um monte. Devido à altitude, as construções se mostram quase sempre entre ou sobre as nuvens (veja fotos). Convite irrecusável. Desviamo-nos um pouco do roteiro previsto, e nos dirigimos à insólita cidadezinha. A cidadela foi construída no século XIII, no topo de uma montanha, como foi dito, devido às falésias que se prestavam à defesa natural. Para maior fortificação, foram construídas duas muralhas de proteção.

Não há circulação de veículos no local. Haja fôlego para subir, haja olhos para apreciar tanta beleza e
haja câmeras para registrar as labirínticas ruelas, assim como os charmosos casarios de pedra escalando as ladeiras. Qualquer ângulo se presta a um “clique”. A beleza é tamanha que o cansaço físico passa despercebido pelos subintes. No alto do penhasco, uma vista inigualável, além de bares, restaurantes, artesanatos, museus, adegas e, evidentemente, uma igreja. Para guardião da fortaleza, o padroeiro escolhido foi o santo guerreiro Saint Michel (São Miguel), considerado defensor e protetor do povo.

Na culinária, uma das mais nobres e apreciadas iguarias locais, é o inigualável “paté de foie gras”, um dos melhores do mundo, e muito apreciado em todo o “hexágono” francês.
O inesperado dessa viagem superou todas as expectativas referentes às outras localidades visitadas. Diz a canção de Caetano Veloso, ... “talvez quem sabe, o inesperado faça uma surpresa...” Data vênia, aproveitando a licenciosidade poética do compositor, reitero seu pleonasmo afirmando que o inesperado me fez uma grande surpresa. Uma surpresa tão inesperada quanto subir ladeira acima e descer ladeira abaixo, no inusitado Cordes-sur-ciel, considerado o mais belo vilarejo daquele país.