Jô Drumond
(abril 2016)
Em abril de 2016, fui a Minas com o
intuito de assistir à Procissão das Almas, em
Mariana. Por coincidência, a procissão sai de um ponto próximo ao hotel
reservado, na Rua das Mercês, próximo à Igreja
Nossa Senhora das Mercês. A saída não se dá à meia-noite, como todos dizem, mas
pontualmente aos cinco minutos do Sábado de Aleluia. Antes da saída, há uma
concentração para o preparo psicológico dos participantes. Dona Hebe,¹
uma das organizadoras, no centro da aglomeração, falava em voz alta a respeito
das lendas da Procissão do Miserere, na época do padroado2 português (a partir de
1456), em que a atual se inspira. Seu objetivo era relembrar a origem e as
simbologias da procissão aos veteranos, e ensiná-las aos novatos. Contou as
duas lendas, em que se baseia o cortejo. Falou também sobre a marcha
fúnebre, “Um lamento”, de autoria de Aníbal Walter, tocada pela banda durante o
cortejo, sobre as cantorias repetitivas, em português, e sobre o Agnus Dei, em latim.
A procissão desceu uma ladeira
íngreme, em direção ao centro histórico e percorreu a cidade, parando diante
dos diversos cemitérios da cidade, para reverenciar os mortos. Abrindo o
cortejo, um tipo de estandarte composto por uma grande cruz, da qual pendia um longo tecido preto, cujas
pontas eram seguradas, nas laterais, por dois participantes. As primeiras
“almas” seguravam caveiras humanas.
As demais tinham uma vela acesa na mão esquerda, e um osso humano
(fêmur) na direita. Todos usavam túnicas e capuzes brancos, exceto a figura da
negra morte, esguia e macérrima, que circulava vestida de preto entre as almas,
empunhando sua foice fatal. A organizadora era a única que não usava capuz, mas
uma mantilha branca rendada, cobrindo o rosto e os cabelos. Carregava uma
espécie de cesto coberto de branco, de onde tirava penas brancas que iam sendo
jogadas para o alto e espalhadas pelo caminho. Ouviam-se os sons das matracas3 e as lamúrias das almas penadas, em
tons plangentes, como se estivessem sofrendo. Um bumbo compassado dava um ar
mais lúgubre. De vez em quando a banda tocava a Marcha Fúnebre (Requiem Aeternam), em homenagem aos mortos. Tudo muito lúgubre,
tétrico, mas interessantíssimo.
As ruas de Mariana estavam apinhadas
de gente naquela madrugada. O horário tardio é explicado diferentemente. Há os
que dizem que, na Sexta-Feira da Paixão, a partir da meia-noite, as almas
pagam suas penas.
...muito se falava sobre seres horrendos a vagar pelas ruas da cidade após
a meia-noite da Sexta-Feira da Paixão. Ninguém saía com medo do que
poderia encontrar. Procissões eram realizadas de madrugada. Penitentes se
supliciavam, fazendo seus gemidos ecoarem nas noites escuras. Tochas
acesas iluminavam as ruas. Havia batida de bastões nas calçadas, correntes eram
arrastadas, e os participantes usavam roupas medievais compridas e esvoaçantes.
Impressionavam e provocavam medo, regando muitas lendas. Era perigoso não só
sair às ruas, mas postar-se à janela (XAVIER, Angela. Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto. Ouro
Preto: Ed. do autor, 2007, p.209)
Recomendava-se portanto, em tempos
idos, não sair de casa, para evitar surpresas desagradáveis. Outros justificam a escolha do horário
tardio, dizendo que teria como objetivo não causar conflitos com a Igreja
Católica.
Quanto à razão das fantasmagóricas
túnicas, o branco pode simbolizar tanto o absoluto quanto a morte. Sabe-se que
tal cor era associada ao luto nos países eslavos, na Ásia, assim como na
corte francesa. Há quem diga que, devido à precariedade da iluminação
pública, o branco destacaria mais o cortejo à luz de archotes e velas.
O interessante é que a cada relato das lendas, algo se modifica, com discretas variantes. As lendas a que
tive acesso, sobre a origem desse cortejo (que remonta, salvo engano, ao século
XVIII), são variadas. A cada relato elas se modificam. É a velha história de
que “quem conta um conto aumenta um ponto”.
Segundo dizem, a Procissão do Miserere não podia ser vista pelos
viventes. Todos deviam manter-se recolhidos e de janelas
fechadas. Quem a visse morreria.
Vejamos pois, em linhas gerais, as
duas lendas em que se baseia a atual procissão de Mariana:
Era uma vez uma senhora muito maledicente chamada Maricota
de Todos os Santos, que vivia à janela de sua casa vigiando a vida alheia, para
trançar mexericos. Depois de aprontar muita confusão, devido às suas
maledicências, no bairro São Gonçalo, mudou-se para a Rua Dom Silvério. Receosa
de ser novamente expulsa, só vigiava a rua depois que o sino da Casa da Câmara
tocava às 21h, sugerindo que todos se recolhessem. Com calos nos cotovelos, de
tanto se debruçar no parapeito da janela, observava o ir e vir dos transeuntes.
Em uma Sexta-Feira Santa, depois da meia-noite, percebeu a aproximação de uma
procissão. Como era frequentadora assídua da igreja, e como participava de
todas as procissões, estranhou o fato de não ter sido informada antecipadamente
daquele evento. Observou o cortejo. Todos, de velas na mão, usavam túnicas bracapuzes. O
primeiro da fila segurava uma enorme cruz preta. Ouvia-se o som pausado e
fúnebre de um bumbo, matracas, gemidos, gritos lancinantes e a cantoria:
“Reza mais,
reza mais, reza mais uma oração; Reza mais, reza mais pra alma que morreu sem
confissão”
“Reza mais,
reza mais, reza novena e trezena; Reza mais, reza mais pra alma que morreu sem
cumprir pena”.
Assustada com a estranheza do evento continuou na janela a
observar. Um passante aproximou-se dela, com a vela acesa e pediu-lhe que a
guardasse até sua volta. Maricota colocou a vela sobre seu criado mudo e voltou
ao posto de observação. Na volta, o participante parou para pegar a vela, mas
antes lhe disse:
“Mulher, amanhã estaremos juntos em outras paragens. Guarde
sua língua. A noite é dos mortos”.
Ao entrar em seu quarto, sobre o criado-mudo, ela deparou
com um osso humano, mais ou menos com as mesmas dimensões da vela. Temerosa, ao
entregar o osso, ouviu do encapuzado, cujo rosto não se via:
“Que isto te sirva de lição. A Procissão das Almas não é
para ser vista pelos viventes”.
Maricota sentiu-se
mal e veio a falecer naquele dia.
A outra lenda, que se mescla à primeira, veio à luz por meio de Hebe
Maria Rôla Santos, preservadora do patrimônio cultural de Mariana.
Era uma vez uma senhora que ajudava o padre nos serviços
paroquiais. Com a contratação de
uma moça recém-formada, para ajudar nas escrituras da paróquia, ela sentiu-se
enciumada e começou a espalhar boatos a respeito da novata, dizendo que ela era
mulher do padre (mula sem cabeça). Como ninguém acreditava em tal disparate,
ela arquitetou um falso flagrante. Pegou os sapatos do padre e colocou-os sob a cama da moça,
indiciando que ele os teria esquecido ali após ter dormido com sua auxiliar.
Foi um escândalo, na pequena cidade. A moça foi expulsa da casa dos pais,
abandonada pelo noivo e foi-se embora, como andarilha. Anos depois retornou
maltrapilha, faminta, e acabou morrendo na calçada, sem ter sido socorrida por
viva alma. Durante o velório, quando a senhora maledicente se adentrou no
recinto, a defunta se sentou no caixão e disse:
“Está aqui entre nós quem me levantou um falso.”
Todos saíram correndo, apavorados. Tal senhora, sentindo-se
culpada, procurou então o padre para confessar seu malfeito e recebeu uma
penitência inusitada: Ela teria que recolher todas as penas dos quintais de
Mariana. Como não havia abatedouro municipal, as pessoas abatiam suas aves em
casa. Depois de longo tempo recolhendo-as de casa em casa, a duras penas,
pensou ter pago a penitência. No entanto, era apenas o início de sua pena.
Agora – disse-lhe o padre - leve todas as penas até o alto do morro do Galego,
espere que um vento forte as espalhe. O dia em que você catar a última delas,
estará remida de seus pecados.
Em outras palavras: pecado sem remissão. Dizem que até hoje seu fantasma
anda por aí, catando as penas espalhadas pelo vento. A cada relato das lendas comporta discretas variantes. Verdades ou inverdades, o
importante é que esse culto aos mortos mescla folclore, lendas, religião e fé, mantendo viva uma das
tradições da mais antiga cidade de Minas Gerais, sua primeira capital.
Vale a “pena” conferir.
NOTAS :
¹ HEBE RÔLA -
Hebe Maria Rôla dos Santos, nascida em 1932 (84 anos), professora emérita do Departamento de Letras da UFOP
(Universidade Federal de Ouro Preto) e preservadora do patrimônio
cultural. Faz parte dacoordenação da Procissão
das Almas, em Mariana (MG).
² PADROADO - O padroado foi uma
negociação da Santa Sé, firmada por meio de bulas pontifícias, com o
objetivo de delegar poderes aos monarcas de Portugal e Espanha no que se refere
à administração e organização da Igreja Católica. O rei “padroeiro” arrecadava
e geria os proventos oriundos dos dízimos eclesiásticos. Tinha também o dever
de construir igrejas, o poder de nomear os párocos e propor nomes de
bispos. Dessa forma, ambos os reinos tinham, ao mesmo tempo, dimensão política,
administrativa e religiosa. A Inquisição, por exemplo, funcionava mais como
entidade policial que religiosa. No Brasil o padroado durou até a
Proclamação da República.
³ MATRACA - A matraca é um
instrumento de percussão constituído por tabuinhas móveis contendo
um pedaço de ferro. Quando agitadas, produzem uma série de estalidos secos,
parecidos com o disparo de
uma metralhadora. É usada na Igreja Católica, na Semana Santa, quando não é
permitido o toque de sinos das igrejas, nem de campainha durante atos
litúrgicos.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3
Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGE