sexta-feira, 26 de junho de 2020

ESPERANÇA NA TERRA DA AFLIÇÃO

Durante meu confinamento covídico, nas montanhas capixabas, recebi de um jovem vizinho chamado Pedro Henrique Serrano Léllis (Pedrim Pescador), também sitiante na Mata Atlântica, um conto de sua autoria, intitulado Na terra da aflição morreu Esperança. Achei o título bastante instigante, sobretudo em época de pandemia. Como a morte anda solta, ceifando milhões de vidas mundo afora, esperamos todos que a esperança não morra. No conto, Esperança é o nome de um personagem que nasce na Terra do Aconchego e morre na Terra da Aflição. O texto é uma bela alegoria que proporciona prazerosa leitura.

Comecemos com uma breve resenha da fabulação: A história se passa há três mil anos, em um lugar inóspito, desértico, de grandes lonjuras. No entanto, entre montanhas, resguarda-se um verdadeiro oásis, chamado Terra do Aconchego, considerado divino e protegido pelos anjos. O solo é propício à agricultura, com fartura de frutas e cereais, assim como de flores, pássaros, e águas límpidas. Trata-se de um lugar tranquilo, pacífico e de clima ameno. À noite, fazem-se rodas para se tocar música e se contarem histórias.

Seus produtos são comercializados em um lugar totalmente oposto, chamado Terra da Aflição, de clima árido, onde reinam medo, tensão e toda sorte de violência. Esperança, um dos comerciantes mais prósperos de Aconchego, é escolhido pelo conselho comunitário para atuar como representante comercial na Terra da Aflição. Teria que se mudar com a família e abrir um mercado para comercializar os produtos da terra. Meio a contragosto, pai, mãe e dois filhos rapazes empreendem, durante muitos dias, uma árdua travessia do deserto, sobre o dorso de camelos e cavalos, correndo risco de ataques de malfeitores, de pilhagens, de tempestades de areia e de picadas de escorpiões. Chegando ao destino, procuram o conterrâneo Iraldo, que reside com a esposa e duas filhas, na Terra da Aflição. Por meio de contatos prévios, Iraldo já havia conseguido morada para a família imigrante, em frente à sua. A partir de então, começam as peripécias da família em local totalmente díspar daquele a que estava habituada, convivendo com pessoas competitivas, ásperas, sanguinárias, cujo comportamento é, muitas vezes, assustador. No texto em questão, duas particularidades atraem a atenção do leitor: a onomástica e a polarização.

ONOMÁSTICA

Comecemos, portanto, com duas vertentes onomásticas: a toponímia e a antroponímia. Os topônimos indicam o que se pode encontrar pela frente, naquela comunidade. O movimentado e confuso centro comercial da Terra da Aflição se chama Balbúrdia.
Nessa terra sem lei, há grupos de criminosos e de justiceiros, conhecidos como Cavaleiros da Ordem do Massacre. Trata-se de homens armados e encapuzados que estupram, torturam, matam e estripam como bem lhes apraz. Os mortos são jogados no Vale dos Ossos Secos, e seus corpos servem de alimento às aves de rapina.

A única parte alta da cidade se encontra sobre uma rocha, a beira-mar, chamada Alto da Penha da Morte. É um local dedicado à divindade local, de onde se jogam oferendas e até mesmo corpos humanos, em sacrifício. Há também devotos que se jogam do Alto da Penha, por motivos diversos.

Beira do Precipício é um local miserável, uma espécie de subúrbio, de pobreza absoluta. Há também bolsões de pobreza, na periferia, em contraposição ao luxo e à magnificência do Alto da Penha.  
Maior ênfase é dada pelo autor à antroponímia. Cada nome próprio já caracteriza de antemão o perfil do personagem: a família de Aconchego era composta de Esperança (pai) Doçura (mãe) Força e Coragem (filhos do sexo masculino). A família anfitriã, em Aflição, era composta de Iraldo (pai – “irado”), Maustratos (mãe) e duas filhas: Covardia Fraqueza. Os nomes próprios falam por si.
No final da história, ao voltar para Aconchego, após a morte do marido e dos filhos, Doçura, que amargara bastante naquela terra, é recebida pelas amigas Saudade Perseverança. Fica hospedada temporariamente, na casa de Consolo, até conseguir nova morada. O Deus de Aconchego se chama Deus Eterno; o de Aflição, Deus Carrasco.

DIVINDADES

Doçura recorre ao Deus Eterno em busca de alegria, energia, força, coragem e principalmente a esperança de melhores tempos. Sua vizinha, Maustratos, recorre ao Deus Carrasco em busca de dinheiro, fama e poder. 
Todas as casas em Aconchego têm um pequeno santuário dedicado ao Deus Eterno. Doçura mantém essa tradição, na Terra da Aflição. Diariamente ela se posta diante do santuário, rogando a intercessão do Todo Poderoso para o bem-estar de sua família. 

O autor faz uma espécie de apologia ao Deus Eterno, como sendo único, verdadeiro, inigualável, onipotente, onisciente ... Pela lógica, o Todo Poderoso deveria proteger a família da devota Doçura. Todavia, isso não acontece. Seu marido morre em um naufrágio, e seus dois filhos são brutalmente assassinados. Há certa incongruência entre o que é apregoado no texto e o desfecho da fabulação. Protegida por seu Deus Eterno, espera-se que a família supere todos os percalços de percurso, consiga atingir os objetivos propostos e volte incólume para a terra natal. No entanto doçura recebe como recompensa aflição, tristeza e luto pela perda da família. Esse nonsense pode ter sido um lapso, por parte do autor, mas também pode ter sido intencional.

A FESTA DA PRIMAVERA
Os habitantes da Terra da Aflição veneram a deusa da Primavera, chamada Leviana, para a qual é organizada uma grande festa anual, com muita permissividade:

“Quando os primeiros raios de Sol irromperam por detrás do casal real sentado na pracinha, as bailarinas despiram-se totalmente, juntamente com a multidão, e todos começaram a se acariciar, nus, sem regras ou limites, numa verdadeira orgia a céu aberto. Doçura ficou estática, de boca aberta e olhos arregalados.
A festa da primavera, dedicada à Santa Leviana, durava o dia todo e se adentrava em mais uma noite, sendo celebrada a céu aberto, com as pessoas transando de todas as formas possíveis, não havendo limites para o prazer, tesão e orgasmo. A cada hora mais pessoas chegavam, se despiam e se lançavam àquele ritual obsceno.”

Tal festa pagã tem ligação com os antigos rituais a cada mudança de ciclo da natureza. Sabe-se que, na Antiguidade, os rituais de primavera eram valorizados por celebrarem a fertilidade, por marcarem o início de um período de abundância e generosidade da Mãe Natureza. Para os seres humanos também é um tempo de recarregar as energias, absorver a força da natureza, revigorar e rejuvenescer.  

Consta na mitologia que Perséfone, filha de Deméter, deusa da fertilidade, é sequestrada por Hades, deus do reino do inferno. Devido à dor da mãe, interrompe-se na Terra o crescimento das plantas e dos cereais. Um dia, graças ao riso da deusa, provocado por um gesto obsceno de uma serva, a natureza revive e a primavera retorna em todo esplendor. Desse mito originam-se as procissões fálicas da Antiguidade, cujo objetivo era despertar o riso, a alegria e, por conseguinte, suscitar a fecundação do solo e o reflorescimento da natureza, propiciando assim uma colheita abundante. Tais rituais visavam a atrair pelo riso a benevolência dos deuses.

POLARIZAÇÕES

O maniqueísmo perpassa todo o conto. Tal termo, popularizado hoje em dia, vem de Mani ou Maniqueu, pensador persa que pregou uma doutrina baseada na existência de um dualismo entre dois princípios opostos, basicamente entre o bem (reino da luz) e o mal (reino das trevas), ou entre Deus e o Diabo.
A ordenação das oposições existentes no reino da natureza em duas classes existe desde os pré-socráticos. Parmênides (530-460 a.C.) distinguia as qualidades positivas (o ser) como luz, e as negativas (o não ser) como obscuridade. Seu método consistia em remeter os opostos ao modelo preconcebido (claro/escuro - ser/não ser), estabelecendo assim uma polarização. O mundo empírico se cindia em duas esferas, sendo uma a negação da outra.  No conto de Pedrim Pescador há diversas polarizações: Terra da Aflição / Terra do Aconchego; Deus bondoso / Deus carrasco; pobreza / riqueza; bondade / malvadez; força / fraqueza...

Seu contemporâneo Heráclito (540-470 a.C.) tinha outra visão completamente díspar. Para ele, o ser e o não ser são o mesmo, em constante transformação. É dele o axioma de que não se pode banhar duas vezes no mesmo rio devido ao constante fluir das águas. A seu ver, nada é firme; tudo muda. Ser e não ser estão contidos um no outro, de modo que o todo deve ser determinado pelo devir ou vir a ser. Algumas doutrinas orientais reiteram o caráter relativo e funcional dos opostos: "isto" e "aquilo" são interdependentes; há um ponto em que os opostos se imbricam. No conto em questão, veem-se ambas as tendências. Há a polarização, mas há também a articulação dos opostos, geradora de equilíbrio: o rapaz chamado Força se casa com a donzela chamada Fraqueza, e seu irmão Coragem se casa com Covardia. Nesse caso, prevalece o meio-termo em lugar dos extremos. A união dos contrários gera a harmonia.

Concluindo, Doçura faz a nefasta travessia dos opostos e volta para a terra natal, acompanhada de sua nora Fraqueza, única pessoa a lucrar com a ida da família de Esperança para Aflição. Trata-se de um personagem aparentemente irrelevante:  tímida, medrosa, antissocial, caseira, calada, solitária e triste, exatamente o oposto de sua irmã Covardia. Não gosta de sua terra natal, não interage com as pessoas de lá e é sempre maltratada por Maustratos e Covardia.

Seu perfil vai mudando à medida em que ela se apaixona pelo jovem Força. Casa-se, muda-se para a casa da sogra, assume com prontidão a administração do lar, enquanto todos trabalham no mercado familiar, e ganha a admiração de Doçura, com quem parte para Aconchego, após a tríplice tragédia. Habituada à paisagem desértica, ao se aproximar de Aconchego, encanta-se com a paisagem. “Nunca havia visto tanto verde, tantos pássaros coloridos e tanta água.” Destarte, consegue trocar o inferno pelo paraíso.

Enfim, Fraqueza ganha vitalidade e se fortalece com a mudança de vida. Doçura, ao contrário, se enfraquece pela perda de Esperança, Força e Coragem,  e se torna insossa:  perde o gosto pela vida e o sabor de tudo.
                                                                                                                                                                                                                      Jô Drumond – 24 de junho de 2020


COMENTÁRIO DO LEITOR

Gostei da análise sobre o texto da esperança na terra da aflição. Foi interessante ver as referências a tempos mais antigos, o que ajuda a lembrar o quanto nosso pensamento é moldado pela cultura judaico-cristã da Europa ocidental, ainda que não sejamos religiosos. Achei bem interessante a referência à primavera por uma questão puramente da minha experiência pessoal. Depois de morar no nordeste dos EUA por um bom tempo, entendi melhor porque as pessoas por aqui curtem tanto essa estação. Após cinco meses de inverno rigoroso, com dias curtos e a vegetação hibernando, sem folhas, a exuberância da primavera é um espetáculo deslumbrante. Para quem cresceu no Brasil, com um inverno quase inexistente e plantas que nunca perdem o verde, achava a primavera legal, mas nada demais. Enfim, sempre achei interessante essa “tensão” entre a maioria das coisas que li e o que de fato eu vivi.
Bruno Brant ( New York)


Ei Jô.
Boa noite, tive que ler duas vezes.
Um texto bem complexo, mas resumindo, os extremos são sempre ruins em todos os sentidos, os excessos nunca fizeram bem a ninguém, o importante é o equilíbrio. A base de tudo!
Um grande abraço
Lola  (ES)

Oi, Jô, não é que a fábula do Pedrim Pescador imita a vida?!
No final das contas, no Aconchego ou na Aflição, não há solução, a não ser a sabedoria de Heráclito, que sacou a dualidade da unidade, difícil de ser entendida e vivida.
Abraço.
Chico Brant (BG – MG)

Oi Jô! Sua análise sobre o texto do vizinho está super interessante, até mesmo para leigos em literatura, como eu. O autor é criativo, e você, além de criativa, mostra grande capacidade e conhecimento literário. Porém, não disponho de elementos e conhecimento para o comentário que esse texto merece. Acho que é um “prato especial” para estudiosos de literatura.
Francisca (BH – MG)

Fiquei encantada como você, de um simples conto, escreveu essa crónica tão interessante. Lembrou-nos também passagens da mitologia! É sempre um prazer ler seus escritos. Continue a nos presentear com suas crônicas! Um abraço.
Jaçanan (ES)

Bom Dia, amiga Jô!
Bela, ampla e erudita resenha (as inserções várias dos maravilhosos personagens da mitologia grega conferem brilho especial à sua análise, amiga!) vc realizou sobre o conto do seu vizinho, Pedrim Pescador. Sacrossanta terapia consolatória é a leitura & escrita...“A sonhar eu venci mundos/ minha vida um sonho foi // F.Pessoa.
Bjs 💋💋💋e excelente semana para vc ora “autoexilada” na “Montanha 🏔 Mágica” (rsrs)
Jeanne Bilich (ES)

Amiga, há um tempo escrevi no Informativo “As Acadêmicas” que o escritor se inspira em outros autores para crescer no ato da palavra escrita, e que é sadio ter até uma certa inveja de um autor que é sucesso porque escreve bem. Realmente acredito. Eu invejo você porque seus escritos são muito enriquecedores. Seus exemplos, suas citações me deixam orgulhosa de poder usufruir de sua amizade e seus escritos são aulas de criatividade para mim. ESPERANÇA NA TERRA DA AFLIÇÃO, na realidade é o caminho percorrido pela humanidade em sua luta entre o bem e o mal.
Amei. Parabéns! Você é sucesso!
Regina Menezes (ES)

Muito bom...adoro....dá um pouco de alento no confinamento 👍🏼👍🏼😘 continue enviando. Aguardo.
Rosarinha (MG)

Jô, que trabalho bonito, interessante... lembrou-me As Brumas de Avalon... e outras leituras deliciosas de Druidas e povos pagãos. O maniqueísmo persa é incontestável e rege nossas vidas...


Scheise (ES)


Olá a todos! Aqui é o Pedrim Pescador, hahah, autor do livro! Queria agradecer à Dona Jô! Gratidão! Muito bom saber dessa repercussão de NA TERRA DA AFLIÇÃO MORREU ESPERANÇA! Eu não esperava por isto!

Apesar de o título ter ESPERANÇA e aparentemente ele ser o protagonista, a personagem principal é FRAQUEZA, pois ela consegue romper suas dificuldades para vencer na vida.

Que vocês, através deste livro, encontrem dentro de vocês mesmos: Esperança. E que ainda que esta morra, e ainda que você perca a força e a coragem, que você nunca perca a Doçura no falar, no viver, no agir. QUE VOCÊ NUNCA SE TORNE UMA PESSOA AMARGURADA, oka?


E que aquilo que é Maustratos, Covardia e Ira, voce deixe para trás, junto com toda a sua terra de aflição, e que mesmo que voce tenha nascido(a) em terra de aflição, existe uma terra de aconchego para você. Esta historia, apesar da violencia, é uma historia de amor, de perseverança e principalmente de VITÓRIA! DA FORÇA SOBRE A FRAQUEZA! Escrevam-me, respondo a todos: pedrimpescador@gmail.com