Próximo à cidade de Castelo (ES), tive a oportunidade de
conhecer a antiga Fazenda Centro, construída por mão de obra escrava, em 1854,
cuja senzala abrigava cerca de 600 escravos. O belíssimo casarão, em estilo
colonial, com mais de mil metros quadrados, foi tombado pelo Patrimônio
Histórico do ES. Além de ter sido uma fazenda muito produtiva e um grande marco
para o desenvolvimento econômico da região, foi também palco de manifestações
históricas e culturais, transformando-se mais tarde em seminário, e, depois, em
noviciado.
Além da indiscutível beleza e imponência do imóvel, o que me
atraiu a atenção foram as histórias que o envolvem desde sua construção, e que
incitam a imaginação do visitante. Ao percorrer os cômodos dos dois andares, eu
imaginava quantas pessoas ali tinham nascido, vivido, amado, sofrido,
trabalhado e morrido. Quanta gente havia se debruçado naquelas 79 janelas para
respirar o ar puro, para apreciar a paisagem, para vigiar os escravos ou para
averiguar ao longe, na estrada de chão batido, se algum convidado se
aproximava.
Segundo consta, o primeiro proprietário, latifundiário e
escravocrata, diferentemente dos demais de sua categoria, apreciava as artes,
em geral. Destarte, teve uma iniciativa
benfazeja. Criou, para seu bel-prazer e para o entretenimento dos visitantes e
de todos que ali viviam, um grupo de teatro e uma banda de música, ambos
compostos por escravos. Os integrantes da “troupe” e da banda se sentiam
importantes pela participação e adquiriam novos aprendizados referentes à sua
atuação.
Os demais escravos se vangloriavam de viver na única fazenda
da região a possuir tais privilégios. Os visitantes, surpresos e encantados
pela performance dos atores e músicos, se esmeravam em sentenças elogiosas. O
anfitrião não cabia em si de contente pelo reconhecimento. Muitas festas eram
ali organizadas, com o intuito de divulgar a inovação e a grandiosidade desse senhor
de escravos que amava e difundia as artes. Poder ele já tinha de sobra.
O que almejava era a glória. Via nas festas um modo de
alcançá-la. Os que por ali passavam poderiam divulgar seu grande feito Brasil
afora. Ele se sentia mais liberal que os demais escravocratas; os escravos, por
sua vez, sentiam menos o peso dos +grilhões. Tal inovação amenizava, de certa
forma, o aspecto sombrio da escravidão: restrição da liberdade de ir e vir,
desconforto das senzalas, trabalho não remunerado, má alimentação, submissão
total aos patrões, punições, torturas, enfim, as péssimas condições de vida.
Considerando as devidas proporções, pode-se fazer um
paralelo entre os grilhões da Fazenda Centro e os do Palácio de Versalhes.
Ambos os locais serviram de cenário para o grande espetáculo da vida, mas de
uma vida cativa, à mercê de dois diferentes tiranos.
Na corte mais cobiçada de todos os tempos, a de Luís XIV
(França – século XVII), vivia-se com grande luxo e ostentação. O Palácio de
Versalhes era invejado e copiado por outros reinos, devido à sua beleza e
magnificência. No entanto esse Palácio nada mais era que uma imperceptível
prisão dourada. O Rei Sol fazia questão de manter toda a aristocracia girando a
sua volta. Atraiu da província para a corte os grandes e poderosos, com as
respectivas famílias, e os manteve sob sua mira, numa vida festiva e luxuosa.
Para o entretenimento dessa gente, investiu no mecenato artístico, atraindo
para a corte os melhores e mais variados artistas, assim como grandiosos
espetáculos de teatro, de dança e de música. Seu falso objetivo de entreter
escondia outro menos nobre: o de reduzir o poder dessa classe e de torná-la
incapaz de uma nova revolta de aristocratas, como a Fronde, ocorrida anteriormente (1648/1653), que
acarretou muitos dissabores.
Em Versalhes, era impossível sentir-se preso nos artísticos
jardins a perder de vista, projetados pelo famoso arquiteto Le Nôtre, nas
imensas galerias barrocas decoradas a ouro, nos maravilhosos bailes na Galeria
dos Espelhos, nem nos gastronômicos banquetes regados com os melhores vinhos do
reino. No entanto, para manter a soberania, o intuito absolutista do rei era
justamente o de amordaçar invisivelmente seus súditos pelos sentidos (paladar,
audição e visão), pelo luxo, requinte e magnificência das festas e eventos
culturais.
Em todo tempo e lugar, em todas as comunidades, há grilhões
sociais com grande poder de cerceamento da liberdade, alguns deles quase
imperceptíveis: religião, família, casamento, trabalho, escola, hierarquias… Às
vezes eles são camuflados. Por exemplo, a união matrimonial, por mais feliz que
seja, carrega seu fardo opressor, sobretudo o da fidelidade. Atualmente, há
escravos até mesmo das novas tecnologias. Há quem não consiga mais viver sem
smartphone, sem internet, sem redes sociais… Desejamos todos que a “Liberdade
abra a asas sobre nós”, mas, na realidade, estamos inexoravelmente presos às
teias sociais.
Jô Drumond