segunda-feira, 17 de outubro de 2016

QUESTIONAMENTOS RELIGIOSOS

*Jô Drumond

Oriunda de família extremamente religiosa, fui batizada, catequizada e crismada. Repetia como papagaio o que me havia sido ensinado pelas freiras, durante a catequese. “Quem é Deus? Deus é um espírito perfeitíssimo e eterno, criador e redentor do Céu e da Terra”. Na minha ingenuidade, repetia aquilo de cor, sem saber o que era “espírito”, o que era “redentor” e muito menos quem era “Deus”. A distinção entre Céu e Terra era simples. Sabia que o céu era azul; e a terra, marrom; que o primeiro ficava sobre minha cabeça; e a segunda, sob meus pés.

Minha primeira Comunhão, aos 7 anos
Quando criança, eu me ajoelhava semanalmente num confessionário, em vista da comunhão dominical. Toda boa menina tinha que mostrar sua pureza no ato da comunhão. Lembro-me que, como não tinha pecados, fiz uma lista de eventuais deslizes, considerados por mim faltas graves, como, por exemplo: eu me esqueci de rezar antes de dormir; ataquei a despensa sem pedir permissão à mamãe (a despensa de minha casa era repleta de guloseimas); falei palavras feias; desejei mal ao próximo; tive maus pensamentos...  Recitava a mesma listinha todos os sábados, diante de um confessor que nada dizia. Apenas passava a penitência, que pouco variava: rezar um Pai Nosso e duas ou três vezes a Ave Maria. Um belo dia ele me perguntou que mal eu havia desejado ao próximo. - Desejei que minha coleguinha tropeçasse e caísse - respondi. A penitência não mudou. Pensei que fosse me perguntar também quais eram os maus pensamentos. Certamente ele não se animou. Seria pura perda de tempo inquirir os pecados de uma garotinha de sete ou oito anos de idade. Além do mais, a fila tinha que andar.

Na adolescência, fui membro efetivo da Legião de Maria. Fiz trabalhos legionários em enfermarias de hospitais e em favelas. Rezava diariamente, antes de dormir, a catenas legionis, cuja antífona ainda permanece em minha memória: “Quem é essa que avança como a aurora, formosa como a Lua, brilhante como o Sol, terrível como o exército em ordem de batalha?” Naquela mesma época, como catequista, continuava repetindo aos pimpolhos o que havia aprendido no ensino religioso.

Aos 17 anos, todas as normalistas deveriam comungar durante a missa de formatura. Minha classe era numerosa. Fomos juntas, cerca de sessenta colegas, à igreja dos padres capuchinhos, em Patos de Minas, para a confissão. O padre, ao se dar conta da quantidade de moçoilas, não se animou a atender uma a uma. Disse que faríamos uma confissão comunitária. Eu nunca havia ouvido tamanho disparate. O que seria confissão comunitária? Teríamos que dizer publicamente, em voz alta, nossos pecados?

Ele fez uma pequena pregação, solicitou alguns minutos de silêncio para que pensássemos,  nos arrependêssemos de nossos pecados e pedíssemos perdão, em linha direta com o Todo Poderoso. Depois de algumas orações, abençoou-nos e nos liberou. Não entendi a razão pela qual ninguém nunca havia mencionado essa possibilidade de ser perdoada pela divindade, sem me ajoelhar diante de um confessor. Fiquei revoltada por ter-me submetido inutilmente ao rito semanal de ir à igreja, durante tantos anos, desde a primeira comunhão. Enfrentava fila todos os sábados, repetia minha inútil lista fictícia diante do confessor, pagava penitência em falso alto de contrição, visto que os pecados eram inventados, para poder comungar durante a missa dominical, usando mantilha branca, símbolo da pureza.
Diziam no catecismo que, ao recebermos a hóstia consagrada, na ponta da língua, ela deveria ser colada no céu da boca até à dissolução completa. Como se tratava do corpo de Jesus, se a mastigássemos, o sangue escorreria boca abaixo. Eu tinha ao maior cuidado para que a hóstia nem tocasse os dentes. Não queria aparecer com a boca suja de sangue, dentro da igreja. Após a “famosa” confissão comunitária, comecei a duvidar desses disparates. Certo dia, em ato de rebeldia, fiz questão de mastigar a hóstia. Nada aconteceu.

Aos 18 anos, mudança radical de vida. Entrei para uma Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, na capital do Estado. Tive então oportunidade de conhecer jovens de minha idade, leitores de Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, entre outros existencialistas. O universo das Letras e da Filosofia se descortinava para a crédula provincianinha, que começava a questionar tudo o que lhe havia sido inculcado até então.

Toda noite, em vez de rezar, eu matutava. Se matar é pecado capital,  como e por que dizimar cidades inteiras em nome de Deus? Em Sodoma e Gomorra apenas uma parte da população masculina era pecadora, por que a mortandade geral de velhos, mulheres e crianças? E as guerras? Se “Deus é amor”, como justificar as guerras santas, feitas em Seu nome, desde tempos idos? Sabe-se que a religião foi a causa da maioria das guerras, em todo o mundo. O Islamismo e o Cristianismo, ambos monoteístas, se envolveram na origem das primeiras guerras “ditas” santas. A Bíblia relata milhões de mortes em nome de Deus. Só o dilúvio matou vinte milhões, salvo engano. E as pragas divinas? As sete pragas do Egito foram justas? E as pestes que assolaram o mundo? Acrescente-se a isso a morticínio das Cruzadas e a da Santa Inquisição. Se Deus é um “espírito perfeitíssimo”; Ele deve ser justo. Como explicar tantas injustiças, doenças, catástrofes, acidentes, crueldades e tanta dor? A resposta já vinha pronta: “é castigo!”. Não, não pode ser! Sendo Ele um pai bondoso e amoroso, não poderia castigar, mas sim orientar e conduzir seus filhos, sobretudo protegê-los.

Recai então, sobre nós, a questão do livre-arbítrio. O Pai, nesse caso, “lava as mãos” e deixa os filhos agirem por conta própria, vulneráveis aos males do mundo, ou seja, “ao deus-dará”. Isso seria justo? Sendo onisciente e onipresente, Ele sabe de antemão tudo o que vai acontecer. Por que então não evita terremotos, furacões, inundações, acidentes, guerras, pestes, doenças, desastres (sejam eles físicos, morais, materiais, emocionais), enfim, todos os revezes causadores de sofrimentos?

As pessoas religiosas são naturalmente fatalistas. Para elas, quando algo de bom ou de ruim acontece, é porque “estava escrito”. Escrito onde, quando, por quem e por quê? Como poderíamos ser responsáveis por nossos atos, se houvesse um destino pré-existente já traçado para cada um? Tudo que fizéssemos recairia na responsabilidade de quem o traçara? Para quem acredita em destino, o livre-arbítrio cai por terra. Não tem razão de ser. Desde o nascimento, caberia ao destino definir se o indivíduo seria crédulo ou incréu.

Nos dias de hoje, sabe-se que ter fé não é questão opcional. Com a ajuda da ciência, prova-se que o fato de ter fé não acontece por vontade própria, nem pelos ditames do destino. No início deste terceiro milênio, pesquisas científicas confirmam que os indivíduos portadores do gene VMAT2 são intuitivos e mais religiosos. Os que não possuem tal gene são mais reflexivos, têm raciocínio lógico e dificuldade em acreditar em algo impreciso. Sabe-se que esse gene “é responsável pela regulação das chamadas monoaminas, que têm papel importante na construção da realidade e na percepção das alterações da consciência, situações comuns em experiências místicas.” Ter fé significa crer prontamente, sem exigir comprovação científica. Os místicos, diferentemente dos racionais, preferem acreditar a perscrutar. Destarte, bem-aventurados sejam os portadores do VMAT2, pois crer dói menos que não crer.
Isso nos remete às reflexões de Nietzsche, contidas em O livro do filósofo: “O fato de acreditar na verdade é precisamente loucura [...] Ninguém pode, sem um pouco de loucura, acreditar tão firmemente possuir a verdade: o ceticismo não tardará a chegar [...] Até o ceticismo contém em si uma fé: a fé na lógica.”

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias

de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

O ALPINISTA ESCALAFOBÉTICO

 Jô Drumond

Distraidamente abro o jornal A Gazeta (ES), e deparo, na primeira página, com um desenho de um dorminhoco roncando no topo de uma pedra. À primeira vista, pensei que se tratasse de uma charge. O título era assaz sugestivo: “Sono na rocha; mistério em Rio Bananal”.

Na pequena nota, que remetia o leitor à matéria completa da página 13, constava, em poucas palavras, que o pedreiro Odair Berti, de 35 anos, após uma repousante noite de sono, acordara a 300 metros de altura, no topo inacessível de uma pedra, sem saber como fora parar naquele local.
Mais que depressa, folheei o jornal em busca da matéria citada. É incrível como o mistério aguça a curiosidade do leitor; fenômenos inexplicáveis atraem e ao mesmo tempo atordoam. Após ter lido a matéria completa, minha curiosidade aguçou-se ainda mais.

Segundo consta, ao se dar conta de que estava no alto de um penhasco rodeado por verdejante mata, o cidadão se desesperou. Pôs-se a gritar aos quatro ventos, e, com o braço erguido agitava nervosamente sua camisa, tal qual bandeira desfraldada, para que alguém o acudisse. Um morador da região o teria avistado e acionado o corpo de bombeiros. Segundo os  bombeiros que participaram do resgate, o acesso ao topo da pedra é extremamente difícil até mesmo com uso de equipamentos. Afirmaram que é praticamente impossível escalar a pedra sem recursos técnicos. O árduo trabalho de resgate, usando técnica de rapel, durou 12 horas.

Sem explicação lógica, Odair, apenas de bermuda e chinelos, não apresentava nenhum arranhão no corpo. Depois de esperar 17 horas nas alturas, o alpinista escalafobético mantinha-se no ápice do atordoamento. A insensatez do destino o havia colocado não se sabe como nem por que, no cume do penhasco. Seria loucura? A família assegura que não. Ele nunca havia apresentado sintoma de distúrbio mental. Seria sonambulismo? Mesmo que fosse, como teria galgado os 300 metros do paredão vertical apenas com os recursos que a natureza lhe deu, sem ferramenta alguma? Mistéeeerio...
Segundo o escritor Guimarães Rosa, “a lógica é a corda com a qual, o cidadão, um dia, há de se enforcar”. Situações inusitadas, como essa, desafiam todo e qualquer raciocínio lógico e suscitam as mais contraditórias especulações. Sem nenhuma explicação plausível, o fato veiculado na mídia acabou criando um clima de atordoamento. Cada um, à sua maneira, empenha-se em desvendar o enigma. Estudiosos e especialistas em alpinismo perdem-se num emaranhado de elucubrações. Ovniólogos apressam-se em buscar marcas da aproximação de alguma nave interplanetária. Os carolas, mais que depressa, atribuem o milagre ao santo de sua devoção. As comadres bisbilhoteiras põem-se a trançar uma rede de fuxicos. Místicos das mais variadas tendências louvam o poder do sobrenatural em detrimento das leis da física. Os lógicos queimam seus neurônios, na tentativa de desvelar o enigma.

Enquanto todos se apoquentam com a bizarria do “sono na rocha”, o poeta embarca no devaneio, alça voo até o cume do penedo, onde a inspiração o aguarda, e, com uma leva de maviosos versos, aproveita o ensejo para esculpir novos poemas.


*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias

de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

SINHÁ OLYMPIA E AS BRUMAS DE VILA RICA

* Jô Drumond

Dona Olympia fotografada com os filósofos
e escritores franceses, Sartre e Simone
de Beauvoir.
 Remonto ao início da década de 70, do século XX, período em que tive o privilégio de residir numa das mais encantadoras e envolventes cidades que conheci, elevada hoje a patrimônio histórico da humanidade. Deixei-me cativar pelo bruxuleio das brumas nos campanários, pelos fantasmas históricos que ainda povoam os tortuosos becos, pelos rangentes degraus das sombrias moradas, pelas pedras escorregadias das ladeiras, pelo nevoento lusco-fusco, pelo frio enriquecedor das invernadas, enfim, pela atmosfera singular impregnada de mistérios de antanho.


Naquela época, uma figura emblemática, atualmente engavetada sob alguma lápide barroca, perambulava pelos becos de Ouro Preto. Vívida na memória popular, como patrimônio folclórico ouro-pretano, Dona Olympia, ou Sinhá Olympia, presença festiva e colorida, enfeitava as ruelas da cidade, com longas saias rodadas, recheadas de anáguas engomadas, cores vivas, grandes chapéus floridos, rendas, colares, pulseiras, brincos e o inseparável batom carmim, para realçar a alvura de sua tez. 

         Habituada a uma vida pendular, vivia ora “aqui-agora”, ora na Corte lusitana, ou simultaneamente nas duas épocas. Louquejava pelas ladeiras suas histórias mirabolantes, fruto de sandice ou de esperteza – talvez de ambas ao mesmo tempo -, para subtrair alguns tostões dos turistas. Fazia-se fotografar ao lado deles - com a indumentária do Império - como descendente direta da antiga nobreza. Enfatizava suas origens, listando nomes de ilustres ancestrais; criava histórias ao sabor do momento. Destarte, angariava de turista em turista seu ganha-pão cotidiano.  Residia cerca de 50 metros da Matriz Nossa Senhora do Pilar, uma das mais requintadas igrejas do barroco brasileiro, cujo interior ostenta mais de quatrocentos anjos esculpidos em talhas de madeira cobertas por 400 quilos de outro e 400 quilos de prata.

Todas as manhãs, Dona Olympia escalava a íngreme rua da escadinha, apoiada num cajado enfeitado com flores, penas, broches, fotografias e tiras de papel colorido (seu cetro). Percorria a tortuosa rua São José e subia a rua Direita até a Praça Tiradentes, onde se situava a antiga rodoviária, seu  “point” preferido, local de grande afluência turística. Nos percursos de ida e volta,  fazia paradas estratégicas para descansar ou prosear com forasteiros. Depois de idosa, sem condições de flanar pelas ladeiras, postava-se no largo da Matriz do Pilar, a mais visitada pelos forasteiros.

Eu me comprazia a ouvir seus “causos”. Às vezes, matava o tempo ao seu lado, embarcando em seus devaneios de nobreza. A garbosa anciã, sem se desviar do intento monetário, não se esquecia de cobrar pelo entretenimento que sua presença me propiciava, ao que eu retrucava:

 – Mas, Dona Olympia, eu não sou turista!

Ela voltava então a seu reino encantado, rodeada por curiosa plateia itinerante. Ao perceber minha permanência no local, retomava o objetivo proposto.

– Moça, só mil cruzeiros, por uma foto ao meu lado!

Segundo seus biógrafos, foi uma jovem de rara beleza. Estudou no Colégio das freiras Vicentinas, em Mariana. Falava latim, gostava de ler, escrever poesias e tocar piano. Foi professora até cerca de 22 anos de idade. Não se sabe ao certo o que desencadeou a sandice, aos 29 anos.

A singularidade dessa figura acabou levando sua fama muito além das fronteiras. Chegou a ser capa da revista Times e participou de programa televisivo. Foi retratada por pintores, fotógrafos e compositores. Teve contatos com celebridades políticas e artísticas, como Juscelino Kubitscheck, Tancredo Neves, Sartre, Simone de Beauvoir, Vinícius de Moraes, entre outros. Foi musa inspiradora do poeta Carlos Drummond de Andrade e do compositor Milton Nascimento. Foi tema de samba enredo da Mangueira, na década de 90. Em 1975, criou-se, em Ouro Preto, a Escola de Samba Sinhá Olympia, que sempre aborda  temas relacionados à história e à cultura ouro-pretanas.

Sinhá Olympia recebia chapéus, medalhas e diversos presentes de várias partes do mundo. Nunca perdia o hábito da desnecessária mendicância. Os proventos da célebre esmoler eram divididos com os menos favorecidos.

Dona Olympia pelas ruas de Ouro Preto
Os moleques de rua se divertiam com sua reação ao ser chamada de “homem” (devido à voz grave). Para provar sua feminilidade, levantava as saias rodadas, sob as quais não nada usava.

Não é fácil delimitar os lindes entre lucidez e loucura em uma mente nebulosa. Mais difícil ainda, quando se cria um alter ego com o qual se deve atuar para sobreviver. Os dois perfis, por vezes, se mesclam. Nunca terei ciência do grau de matreirice e de insanidade que coabitavam naquela cabeça adornada de bizarros chapéus. Dona Olympia viveu suas vidas e se foi, levando consigo um lampejo do Império. 

No entanto, ela permanece incólume na memória da cidade. Ouro Preto, a antiga Vila Rica das minas, hoje sem ouro, continua sob a vigilância do Pico Itacolomi, embalada pelos sonhos dos Inconfidentes, pelos recônditos tesouros de outras eras, pela esperança de reaver a cabeça de Tiradentes - desaparecida do pedestal na calada da noite - e pelas quimeras do escravo Chico Rei sem reino. 

Nas fantasmagóricas noites ouro-pretanas, há quem ouça, ainda hoje, o arrasto das correntes e a plangência de seus súditos que, marcados a ferro e fogo, banharam de suor as minas e de sangue o pelourinho. Dona Olympia era o outro lado da moeda: a face da nobreza, da beleza, da alegria, do glamour e dos sonhos de tempos idos. A exímia contadora de histórias Olympia Angélica de Almeida Cotta (1889/1990) viveu a realidade do século XX, mas soube viver, oniricamente, todo o esplendor dos séculos XVIII e XIX.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias

de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)