Na década de 90, passei uma temporada em Ouro Preto, como
aluna do curso de pós-graduação em Arte e Cultura Barroca do Ifac (Instituto de
Filosofia Arte e Cultura) da Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto).
Há certa magia e muita história nos tortuosos becos e
ruelas da antiga Vila Rica: ladeiras escorregadias, casarões históricos,
igrejas suntuosas, calabouços, lendas, mistérios e fantasmas. No inverno, a
cidade se torna mais envolvente, revestida de densa neblina. O nevoeiro mal
deixa entrever as pontas das torres iluminadas, cutucando o firmamento. Quantos
poetas e pintores foram conhecer a cidade e por lá permaneceram por toda a
vida!
Durante minha permanência na antiga Vila Rica, fiz questão
de voltar no tempo: Parei de andar de carro, de ler jornais e de ver
noticiários televisivos. Não queria saber de conflitos internacionais, querelas
políticas, tragédias, acidentes, desastres, nem de violência urbana. Alijei-me
do cotidiano e mergulhei no clima do século XVIII.
A estada ouro-pretana superou minhas expectativas. O curso intensivo oferecia oito horas de aulas diárias, que se estendiam em bate-papos noturnos nos bares da cidade sobre filosofia da Arte e estética do Barroco na arquitetura, pintura, escultura, literatura e música, assim como sobre costumes da sociedade mineira colonial. Tínhamos tours culturais, guiados por professores, pelas ladeiras, pelos casarios, pelas igrejas da cidade e pelas capelas do município. Cada tour era uma incursão no mundo barroco, em ótima companhia.
Alojei-me, juntamente com duas colegas, Eliane e Aline, em
uma simpática pousada (que hoje não existe mais), ao lado do Museu da
Inconfidência. Devido à duração do curso, o valor da hospedagem ficaria bastante oneroso. Fomos incitadas, por preços convidativos, a trocar a pousada
por uma república de estudantes chamada Pulgatório, situada na rua Direita.
Gastaríamos apenas um décimo da diária habitual. Minhas colegas se
entusiasmaram com a ideia. Eu era a única reticente. Preferia continuar onde
estava. Era mais confortável, mais silencioso e mais propício aos estudos.
Havia morado em Ouro Preto vinte anos antes. Conhecia portanto o ritmo
frenético das repúblicas. Os estudantes anfitriões nos prometeram que, enquanto
estivéssemos hospedadas lá, a boîte,
localizada no porão, funcionaria apenas nos finais de semana, para não nos
importunar. Não houve meios de convencer minhas colegas a permanecerem na
pousada. Fui voto vencido.
Ao chegarmos à Pulgatório, elas ficaram encantadas com a
gentileza dos alunos da Escola de Minas, com a amplitude do casarão, com a
limpeza dos banheiros, com o aconchego da lareira, diante da qual um grupo de
jovens tocava violão e cantava... Uma delas me perguntou: − Por que essa
República se chama Pulgatório? Aqui tudo é tão limpo! Não deve ter pulgas!
— Aguarde! — respondi.
Minhas colegas estavam radiantes. Tudo certo! Tudo ótimo,
às mil maravilhas! Somente eu me mantinha contrariada com a mudança. De
qualquer modo — pensei com meus botões —, barulho não atrapalha meu sono de
pedra, e pulga não me pica.
Na década de 70, quando eu frequentava o único cinema
ouro-pretano, o Cine Vila Rica, sempre infestado de pulgas, descobri que elas
não me picavam. Durante as projeções, as pessoas próximas a mim se coçavam o
tempo todo enquanto eu assistia tranquilamente aos filmes.
Minha noite na Pulgatório foi repousante. Dormi
profundamente. Acordei-me de
manhã com um grito de pavor de uma das colegas. Ao se despir, no banheiro,
descobriu diversas pulgas em seu corpo. Entrou em pânico. Gritava e sapateava, passando
as mãos freneticamente pelo corpo, na tentativa de se ver livre dos insetos.
Fiquei então sabendo que elas não haviam dormido, por
dois motivos: os estudantes, descumprindo o prometido, haviam ligado o som da boîte, a todo volume, até às
4h00 da matina. Além do barulho,
as pulgas que não lhes deram trégua.
Eliane e Aline disseram-me que não ficariam lá nem mais um
minuto. Como os inconvenientes alegados não me incomodavam, foi minha vez de
tripudiar, jocosamente.
— Vocês insistiram em vir para cá. Agora sou eu que não
quero sair daqui. Terão que ficar aqui comigo até o final do curso! E aí, Eliane? — perguntei. — Encontrou justificativa para o nome da república?
— Seria melhor trocar o “l” pelo “r” — disse-me. —
Purguei todos os meus pecados esta noite.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3
Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)
Dezembro 2015