Desde tenra idade, sempre tive um carinho muito especial por idosos. Órfão aos dois anos, fui criado por meus avós e acarinhado por seus amigos, todos de idade avançada. Eu sempre dizia que, quando crescesse, gostaria de trabalhar com algo que me permitisse contato com idosos. Depois de adulto, decidi fazer assistência social com especialidade em apoio a anciãos. Fazia atendimento em asilos e em residências particulares, na capital mineira. Foi um trabalho gratificante e prazeroso. Após a aposentadoria por tempo de serviço, retornei à minha terra natal, no interior de Minas, e continuei na mesma linha de assistência a idosos. Enquanto puder, continuarei meu voluntariado vitalício. Há muito mais idosos solitários do que se imagina, incluindo aqueles que moram com seus familiares. Filhos sempre às voltas com a criação dos rebentos, trabalho e estudos, não dispõem de tempo para dar atenção aos velhos. Muitos deles têm certa resistência a asilos comunitários. Habituados a seu cantinho e a seus objetos de estimação, gostariam de ali permanecer, com toda razão, até os últimos suspiros.
Semanalmente, visito dezenas de idosos. Meu voluntariado é salutar para ambas as partes. Sinto-me útil ao ajudar o próximo, como se fosse missão de vida. Imprevistos acontecem. Às vezes encontro casas fechadas porque o morador já foi levado pela indesejada das gentes.
Um dia não fui atendido, sem quê nem por quê. Sondei a vizinhança. Ninguém tinha notícia do idoso solitário. Entrei em contato com alguém da família. Nada de novo. Fiz contato com a autoridade competente para autorizar o arrombamento da residência e encontrei o corpo nauseabundo em vias de putrefação.
Certa vez, não fui atendido, mas tudo indicava que havia alguém em casa. As plantas estavam viçosas, flores na janela, roupas no varal... Como sempre, a primeira providência foi contatar os vizinhos. Tentativa infrutífera. Além de acionar a campainha, bati à porta e chamei a cliente pelo nome. Percebi que o portão lateral, que dava acesso ao quintal, estava apenas encostado. Tentei visualizar algo pelas vidraças das janelas. Nada vi, mas ouvi gemidos e uma voz rouca, quase inaudível: ─ Ajude-me! Socorro! Não chamei ninguém, arrombei a porta, imediatamente. Encontrei Dona Cremilda no chão, com fraturas em ambas as pernas. Ali estava havia dois dias, sem se alimentar, longe do telefone e sem condições de se locomover. Tomei as devidas providências e contatei seus familiares.
Bem, deixemos de lado os casos tristes. Gostaria de registrar uma história de companheirismo e solidariedade de um casal de idosos, que lutou contra o tempo e ultrapassou o centenário, por uma nobre causa, até cair de maduro. Seu Jacintho e Dona Isaura viveram uma existência sem grandes contratempos. Viram nascer, crescer e partir filhos, netos, bisnetos e já contavam com uma chusma de trinetos cujos nomes nem sabiam. Ficaram a sós, como se diz, um servindo de bengala ao outro. Ir à casa deles era-me motivo de contentamento. Recebiam-me com café coado na hora e pãozinho de queijo quente, um dos meus quitutes preferidos. Conversava com ambos, à mesa e, depois, conversava com cada um, separadamente, para uma atenção especial. Os dois já apresentavam indícios de breve sobrevida. Ela ia remediando um câncer que aos poucos lhe corroía as entranhas. Seu “Jacintim”, coração de “passarim”, como se pronuncia na região, tinha insuficiência cardíaca a cada dia mais acentuada. Às vezes eu tinha a impressão de que ele ficava ofegante apenas ao falar, como se fosse por esforço físico.Ele se dizia sempre preocupado com sua Isaura. Não podia morrer e deixá-la sozinha naquela casa enorme. Seria perigoso.
─ Há muitos malfeitores hoje em dia ─ dizia ele, como se tivesse condições de enfrentar bandidos. ─ Ela pode cair, sofrer alguma fratura, sem ninguém para socorrê-la. Além do mais, anda muito esquecida. Não se lembra de tomar os remédios certos nas horas certas. A pobre coitada carece de mim.
Ele estava realmente convencido de que não podia morrer antes dela, para não deixá-la ao desamparo. Por sua vez, Isaura tinha o mesmo tipo de angústia. Não se dava o direito de morrer, porque ninguém saberia cuidar tão bem do maridinho quanto ela. Conhecia seus gostos, manias e ranzinzices. Preparava seus quitutes preferidos, cuidava de tudo para que a vida lhe fosse mais agradável e ditosa. Não podia sequer imaginá-lo num asilo, convivendo com todo tipo de gente e tendo que suportar regulamentos, contra sua vontade. Não poderia jamais deixá-lo à mercê disso. O medo de abandoná-lo ao deus-dará dava-lhe forças para sobreviver, apesar da força da gravidade, que a atraía cada vez mais para o chão, ou melhor, para alguns palmos abaixo dele.
A cada virada de ano, ao visitá-los, eu pensava que seria a última vez que lhes transmitia votos de um Feliz Ano Novo. Qual nada! Entrava ano, saía ano e eles estavam lá firmes e fortes, sempre sorridentes ao me receber. No entanto as leis da mãe natureza são mais fortes que a força de vontade. Algum dia, quer queiramos ou não, teremos que trilhar, mesmo a contragosto, o caminho sem volta, rumo à grande incógnita.
Certo dia, Isaura levou uma queda e fraturou o fêmur, ou vice-versa. A fratura pode ter precedido a queda. Isso acontece, depois de certa idade. Teve que ser levada a um pronto atendimento, em época de pandemia. Como era de se esperar, no hospital, foi infectada pelo coronavírus, e sucumbiu à covid 19, como tantos milhares no mundo todo. Passou a ser apenas um ponto a mais nas estatísticas de baixas, causadas pelo flagelo que assola a humanidade. Ao tomar ciência de seu passamento, Seu Jacintho. teve um mal-estar instantâneo. Seu coração parou, em solidariedade ao da companheira.
Família reunida, velório duplo, redobrados prantos e duas covas, lado a lado, como sempre estiveram em vida. Seja lá onde for, imagino que um continue velando pelo outro ad aeternum.
Jô Drumond