Baseando-nos na mediania aristotélica, que consiste na busca
do equilíbrio, poderíamos traçar um paralelo entre o atual momento caótico da
pandemia causada pelo coronavírus e o momento caótico criado por José Saramago
em As intermitências da morte. Realidade
e ficção, de mãos dadas, contemplam juntas o caos dos extremos: no caso da
pandemia, causado pelo excesso de mortes; no segundo caso, ao contrário, por
sua ausência.
Segundo Aristóteles “a virtude está no meio”. A seu ver, em
todas as circunstâncias, devem-se evitar os vícios (os extremos) decorrentes do
excesso ou da deficiência, e buscar a virtude (o comedimento, o meio-termo).
Pode-se partir desse conceito de vício e virtude, para buscar, na obra de
Saramago, um contraponto para o momento atual de pandemia covídica, vivido em
todo o mundo.
Na obra As intermitências da morte, em um país fictício, a
partir da meia-noite do último dia do ano,
a morte suspendeu seus trabalhos por
prazo indeterminado. Ninguém mais morria. O ideal de vida eterna foi festejado
por milhões de habitantes. Finalmente, não temeriam mais a terrível “dama da
foice” que a todos persegue. Após a euforia da boa nova, começaram a surgir,
aos poucos, inúmeros questionamentos dela decorrentes. As pessoas
envelheceriam, mas não morreriam. Os moribundos ocupariam os leitos dos
pacientes que precisassem de tratamento. O sistema de saúde entraria em
colapso. Caso a morte não voltasse a prestar seus serviços, a seguridade social
se tornaria inviável. Os idosos continuariam a receber os benefícios ad
aeternum. Os jovens envelheceriam e passariam também a recebê-los. As empresas
funerárias e as seguradoras decretariam falência. As famílias não conseguiriam
mais cuidar de seus inúmeros idosos. Os hospitais e asilos ficariam
saturados...
Um clima de tensão, de insegurança e de medo se instalou por
toda a parte. Certo dia, alguém teve a ideia de cruzar a fronteira, levando um
vovozinho moribundo, para fazer uma espécie de teste mortífero. Tão logo
passaram a fronteira, o idoso “abotoou o paletó”. A iniciativa teve repercussão e foi
inicialmente condenada por todos, mas a cada dia mais e mais famílias seguiam o
exemplo da primeira. O poder público chegou a colocar fiscalização nas
fronteiras para impedir tal insanidade. Como os problemas se multiplicavam, o
governo passou a fazer vistas grossas. Quanto mais mortes, menos custos
públicos e menos transtornos para as famílias. Com o tempo, o ato de atravessar
a fronteira, moralmente condenado, passou a ser louvado e incentivado.
No desenrolar dos fatos, o autor mostra que a morte, sempre
malvista por todos, é um mal necessário. Saramago demonstra que a ausência dela
não significa uma benesse para os vivos.
Pelo contrário, as estruturas políticas, religiosas, sociais,
familiares... entram em colapso
O autor lança mão de um país fictício, que poderia
corresponder a qualquer país ocidental, para fazer sua crítica social. A ironia
perpassa toda a obra. Ele critica a classe política, a imprensa, a família, a
Igreja, a máfia, os filósofos, o sistema de saúde, enfim, não poupa
instituições econômicas, políticas e sociais.
Tanto no país fictício onde não se morre quanto num país
onde morrem milhares a cada dia, há superlotação em hospitais e sérios
problemas econômicos. A indefinição do futuro gera ansiedade e transtornos
emocionais. No primeiro caso, os coveiros ficam desempregados; no segundo, não
há mais espaço nos cemitérios. Caixões enfileirados aguardam valas comuns. Os
que permanecem vivos não terão um local preciso para cultuar seus mortos queridos.
Aguarda-se ansiosamente a descoberta da cura ou de uma vacina contra a Covid
19. Os óbitos se multiplicam dia após dia, e a tensão aumenta.
Enfim, ambos os casos se situam nos extremos aristotélicos.
Geram desequilíbrio, insegurança, inadequação social e toda sorte de
transtornos. É mister passar do “vício à virtude”, voltar do desequilíbrio à
normalidade. No caso de Saramago, após sete meses de caos, a morte, bem-vinda,
anunciou sua volta. No caso atual, espera-se que a morte dê uma trégua ou que,
pelo menos, saia de férias, por uns tempos, para que este festival mortífero
tenha um ponto final.
Jô Drumond 01-06-2020