Por: Jô Drumond
Em um de meus estágios no Centro de Linguística
Aplicada (C.L.A.) da Universidade de Franche Comté (França), participei do
curso “Formateurs des formateurs”, que preparava profissionais estrangeiros
para atuarem na formação de professores em seus respectivos países. O objetivo
era aperfeiçoar, didática e linguisticamente, pessoas vindas dos quatro cantos
do mundo, responsáveis em difundir a língua francesa em seus países de origem.
Naquele ano, havia oitenta participantes
muçulmanos, originários de diferentes países. Os homens se trajavam
normalmente, mas as mulheres se submetiam aos trajes usuais de seus respectivos
países. Algumas mantinham apenas a cabeça coberta por um lenço chamado khimar;
outras, apesar do verão escaldante, usavam burca preta, cobrindo todo o corpo,
acompanhada de um nigab, que cobre a cabeça e o rosto, deixando apenas uma
pequena fresta ou uma tela, na altura dos olhos.
Fiz amizade com uma colega paquistanesa chamada
Saeqa, nome que significa “relâmpago”. Cabelos negros, soltos ao vento, tez
morena, porte altivo e esguio. Usava calça jeans, camiseta e tênis, como as
ocidentais.
Muito me surpreendi ao saber que ela também era
muçulmana. Soube então que 96% dos paquistaneses são muçulmanos.
Aproveitei a amizade já selada, para bombardeá-la com perguntas referentes
ao way of life das mulheres muçulmanas. Descobri que o fato de
ser mulher, em certos países, é um verdadeiro pesadelo.
Quis saber, primeiramente, por que ela não usava
os atributos das adeptas do Islamismo. Ela me disse que, estando em seu país,
usava as roupas convencionais, mas, no exterior, dispensava distintivos
indumentários.
Seu procedimento se devia ao fato de ter vivido
em diversos países, aprendido diferentes idiomas e assimilado outras culturas.
Seu pai era diplomata e, como tal, tinha uma posição privilegiada em seu país.
Graças a isso, ela pôde estudar, transpor fronteiras geográficas e culturais,
diferentemente da grande maioria das compatriotas, cujo universo se restringe,
ainda hoje, ao lar e à família.
Como era professora de idiomas, sua válvula de
escape consistia em estágios de aperfeiçoamento linguístico em diferentes
países, nas férias de verão e de inverno. Dessa forma, conseguia voar, literal
e metaforicamente, rumo ao desconhecido, mantendo-se, no entanto, presa às
raízes. Gostava de viajar, mas a vivência no exterior não a impedia de se
manter atada às peias religiosas e culturais. Estava fadada a se casar com
alguém de sua religião, escolhido pela família. Perguntei-lhe o que
aconteceria, se, casualmente, ela se apaixonasse por um estrangeiro. Ela me
disse que não aconteceria absolutamente nada, pois jamais agiria contra os
princípios de seu povo.
Perguntei-lhe também o que aconteceria se sua
família escolhesse para ela um marido que lhe causasse repulsa. Respondeu-me
que isso já havia acontecido. Seu pai havia oferecido sua mão a um excelente
rapaz, pelo qual ela não sentia atração alguma. Na impossibilidade de
desobedecer às ordens paternas, ela encontrou uma única saída: greve de fome.
Preferia morrer a se casar com aquele pretendente. Seu pai, fragilizado pela
recente morte da esposa, apavorou-se com a ideia de perder a única filha. Como
ele se encontrava afetivamente vulnerável e como se tornara mais flexível pelo
fato de ter tido contato com outras culturas, em outros continentes, acabou
cedendo ao capricho da filha. Além disso, fazia vistas grossas quanto às suas
frequentes fugas para fora do país, justificadas pelo aprimoramento
profissional.
Saeqa me disse que, mesmo pertencendo à classe
privilegiada, sofria com a intolerância à ascensão da mulher na sociedade. Por
exemplo, certa vez, foi contratada para ensinar determinado idioma a um grupo
de engenheiros que pretendiam se especializar no exterior. Ao entrar em sala de
aula, no primeiro dia, foi rejeitada pelos alunos, pelo simples fato de ser
mulher.
Segundo ela, as mulheres das classes
desfavorecidas padecem de total submissão ao sexo masculino e de cerceamento à
liberdade de expressão, assim como a outros tipos de liberdade. Os clubes
funcionam alternadamente: um dia para os homens, outro para as mulheres. Dessa
forma uma família reunida jamais poderá desfrutar de uma piscina pública.
Em sua grande maioria, as mulheres muçulmanas,
criadas dentro de certos preceitos religiosos, se curvam aos ditames civilizatórios,
sem nenhum tipo de questionamento ou de revolta contra o regime opressor. Ao
contrário da filha do diplomata, elas não conhecem outros estilos de vida.
Aprendi muito com minha amiga muçulmana sobre a
condição da mulher em seu país, e, por conseguinte, em muitos outros países
islâmicos. Soube, por exemplo, que a grande maioria das mulheres é impedida de
trabalhar fora do lar. A mentalidade dominante é a de que elas não carecem de
educação formal nem de nenhuma atuação fora da esfera doméstica. Quarenta por
cento delas, entre 15 e 20 anos, são analfabetas, em seu país. Apenas dezesseis
por cento são economicamente produtivas. Outro dado estarrecedor: entre
70% e 90% das mulheres sofrem violência doméstica, fato que é praticamente
“institucionalizado” e que conta com a permissividade do Estado. Há os chamados
“homicídios de honra”, cometidos em família, contra aquelas que ousam querer
romper com um casamento indesejado ou que são violadas. Outro fato que muito me
impressionou: cerca de 50% dos casamentos em todo o país envolvem menores de
idade do sexo feminino.
Mas nem tudo são espinhos. No Paquistão há
períodos mais opressivos e outros mais liberais, dependendo da visão de cada
governante. Há também regiões mais violentas e outras menos. "Há sensível diferença da condição feminina entre a zona rural e a cidade, assim como entre os estamentos sociais."
Ao final de nosso estágio, combinamos manter
contato, via postal. Naquela época, não havia internet. Enviei-lhe algumas
correspondências, a que ela não respondeu. Suponho que
nunca lhe tenham chegado às mãos. Certamente esse tipo de censura era mais um
dos inconvenientes do determinismo social, do qual não havia escapatória.
No mesmo estágio do C.L.A., uma de minhas
colegas de classe me inspirou grande curiosidade. Nunca ousei me aproximar
dela. Aliás, em quarenta dias de estágio, nenhum outro colega se aproximou
dela. Usava burca e andava sempre escoltada por dois homens, um de cada lado.
Mesmo em sala de aula, ela se sentava entre ambos. Eu gostaria muito de ter
sabido algo sobre ela, mas minha timidez bloqueava toda e qualquer aproximação.
Talvez a jovem fosse filha de algum sultão, ou de gente muito importante.
Talvez os dois brutamontes a estivessem apenas acompanhando, impedindo seu
contato com outras pessoas, protegendo sua integridade física, garantindo sua
virgindade... Talvez o objetivo fosse evitar a perniciosa influência dos
ocidentais, ou, quem sabe, evitar que ela denunciasse os maus-tratos e a
precária condição feminina em seu país. Pensei até mesmo que a acintosa
vigilância visava a evitar uma eventual fuga ou pedido de asilo. Nunca saberei
ao certo.
Após ter tido contato universitário com
diversas muçulmanas no CLA, fiquei mais atenta ao movimento de liberação
feminina, que avança a passos lerdos, em países islâmicos. Mesmo em tempos
perigosos e altamente repressivos, eventualmente, movimentos reivindicatórios
de liberação feminina movimentam algumas ruas. Raras feministas se celebrizaram
por meio da mídia, como a paquistanesa Malala Yousafzai (prêmio Nobel da Paz
2014), ícone da resistência feminina; algumas, menos afortunadas, perderam não
apenas a luta, mas suas vidas, no afã de se livrar da opressão masculina,
religiosa e governamental.
De vez em quando ainda me lembro de Saeqa.
Gostaria de saber o que lhe aconteceu nessas duas décadas que se passaram.
Tentei localizá-la pela internet, em vão. Não sei nem mesmo seu nome completo.
Separadas por um enorme oceano e por um vasto universo cultural, certamente
jamais nos reencontraremos.