Jô Drumond
Em Ouro Preto há um grupo de intelectuais que se reúne
mensalmente para discutir assuntos do momento, assim como para fazer
elucubrações literárias, boa música, poesia e gastronomia. A seleta confraria,
além do prazer da prosa, tem direito ao repasto “dos deuses”, servido ao final
de cada encontro. Enquanto os amantes da culinária se esmeram, na cozinha, os
demais degustam bons vinhos na sala de estar. A discussão se torna cada vez
mais acalorada, segundo o aumento do teor etílico no sangue.
Ouro Preto é uma cidade surpreendente. A cada visita
descobrem-se novos ângulos, novas miradas estéticas, novos amigos, novas
inspirações, e, por conseguinte, novos “causos”. Na última visita a essa cidade
que sempre me encantou, meu marido e eu tivemos o privilégio de ser convidados,
excepcionalmente, por amigos de longa data, a participar de tal tertúlia. A
anfitriã, como muitos artistas e intelectuais ali residentes, um dia foi
conhecer a cidade, apaixonou-se pelos ares ouro-pretanos e por ali foi ficando
até se radicar definitivamente, sem nenhuma intenção de voltar para sua terra
natal.
Do alto de uma vertente, pelas janelas do espaçoso casario
onde fomos recebidos, tínhamos ampla visão do barroquismo tortuoso e
assimétrico do perímetro urbano, com suas ruelas e becos centenários, repletos
de fantasmagorias. A visão panorâmica abarcava o bruxuleio da cerração nos
campanários iluminados das diversas igrejas.
Numa ocasião como essa, na qual todos gostam de se
manifestar e de expressar suas opiniões, acontece comigo o inverso. Atenho-me a
observar os participantes e as réplicas de cada um, como se estivesse num
teatro. Fico atenta a todos os detalhes: entonação e timbre de voz, ênfase das
réplicas, gesticulação, posição corporal, expressões fisionômicas, conhecimento
de causa... Enfim, observar, para mim, é mais divertido que participar.
Em um dado momento, naquela “soirée”, viajei no tempo.
Senti-me como se estivesse num encontro dos Inconfidentes, no século XVIII, sem
sedição, sem risco da famigerada derrama, sem ideal libertário, mas numa
acalorada discussão a respeito da conturbada vida política e econômica do país.
O perfil do grupo se aproximava sobremaneira do perfil dos inconfidentes:
cidadãos instruídos, intelectualizados e bem informados; maioria diplomada em
outras plagas, com alto poder aquisitivo e posição de destaque na
sociedade. Nas reuniões atuais,
discutem-se desmandos e corrupção no poder, altos juros bancários, impostos,
desemprego, aumento da pobreza... No século XVIII, discutiam-se as mesmas
questões, evidentemente com a devida atualização política, econômica e social:
desmandos e corrupção dos governantes, jugo da coroa portuguesa, impostos
escorchantes, miséria do povo... Porém faltava-me um Tiradentes, ou seja, um
jovem exaltado, entusiasta, falastrão e sem grandes posses, para quebrar a
hegemonia do grupo.
Subitamente, não sei por que cargas-d’água, alguém perguntou
se Sabará ficava dentro do Quadrilátero
Ferrífero. Um dos presentes, que se dizia historiador, aproveitou a
ocasião para nos passar informações gerais, em tom professoral. Segundo ele, o
Quadrilátero ocupa uma área de 7.000 km2, próxima a Belo Horizonte. Além de
Sabará, citou Rio Piracicaba, Congonhas, Casa Branca, Itaúna, Itabira, Nova
Lima, Santa Bárbara, Mariana, Ouro Preto, entre outras localidades. Disse
também que essa região coloca o Brasil, ainda nos dias de hoje, em posição de
destaque, no cenário mundial, na produção de ouro e ferro.
A partir daí, a conversa tomou o rumo das minas e dos veios
de ouro. Não é por acaso que o Estado tem esse nome. Durante o ciclo áureo da
extração, entre 1700 e 1820, o Brasil
foi o maior produtor mundial do “vil metal”. Metade das reservas de ouro do
Brasil ainda se encontra em Minas Gerais.
Outro senhor, que se
dizia geólogo, aproveitou a ocasião para “vender seu peixe”. Começou a explanar
sobre os três grandes conjuntos de rochas que caracterizam o Quadrilátero.
Depois, passou a citar formações rochosas. Esbanjou terminologia técnica, que a
ninguém interessava. Sua fala era por demais árida para aquele tipo de
encontro. Alguns dos presentes esboçavam bocejos. Outros se mostravam
entediados. Os mais inquietos se levantavam, davam uma volta pelo salão e
aproximavam-se das janelas para apreciar a paisagem. Ainda insatisfeito com a
demonstração de sapiência, o dono da palavra passou a descrever os tipos de
rochas propícias à mineração.
Foi então que tudo mudou. Eis que, “não mais que de
repente”, surgiu “meu” Tiradentes: um jovem exaltado, dono de uma verdade
diversa daquela, com menos diplomações, mas com muito conhecimento técnico do
assunto e “bala na agulha”. Ele tomou a palavra e desbancou o Doutor, afirmando
exatamente o contrário: aquele não era um tipo de solo peculiar à exploração de
ouro. Tal jovem, cujo nome me escapa, já meio ébrio e cansado de tanto
palavrório, fez questão de contradizer o sabichão. Ambos engataram uma
divertida discussão do tipo bate-rebate, cada um se esforçando para ganhar a
credibilidade da plateia. Em um dado momento, o mais velho, já impaciente com a
petulância do jovem, disse:
— Meu filho, eu tenho conhecimento de causa. Essa é minha
especialidade. Eu sou geólogo, com PHD em formações rochosas.
— O senhor pode ser doutor, pós-doutor, pode ser o
“escambau” mas não entende “porra” nenhuma disso.
Todos riram fragorosamente pela surpresa da réplica e pelo
inesperado vocabulário chulo. A anfitriã, para evitar maiores exaltações,
convidou delicadamente a todos para a sala de jantar. A lauta ceia transcorreu na santa paz, com suave fundo
musical e temas mais amenos, como convém a comensais civilizados. Como dizem os
franceses, “tout est bien qui finit bien”.
*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias.
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)