terça-feira, 13 de dezembro de 2016

TERTÚLIA OURO-PRETANA

 Jô Drumond
  
Em Ouro Preto há um grupo de intelectuais que se reúne mensalmente para discutir assuntos do momento, assim como para fazer elucubrações literárias, boa música, poesia e gastronomia. A seleta confraria, além do prazer da prosa, tem direito ao repasto “dos deuses”, servido ao final de cada encontro. Enquanto os amantes da culinária se esmeram, na cozinha, os demais degustam bons vinhos na sala de estar. A discussão se torna cada vez mais acalorada, segundo o aumento do teor etílico no sangue.

Ouro Preto é uma cidade surpreendente. A cada visita descobrem-se novos ângulos, novas miradas estéticas, novos amigos, novas inspirações, e, por conseguinte, novos “causos”. Na última visita a essa cidade que sempre me encantou, meu marido e eu tivemos o privilégio de ser convidados, excepcionalmente, por amigos de longa data, a participar de tal tertúlia. A anfitriã, como muitos artistas e intelectuais ali residentes, um dia foi conhecer a cidade, apaixonou-se pelos ares ouro-pretanos e por ali foi ficando até se radicar definitivamente, sem nenhuma intenção de voltar para sua terra natal.

Do alto de uma vertente, pelas janelas do espaçoso casario onde fomos recebidos, tínhamos ampla visão do barroquismo tortuoso e assimétrico do perímetro urbano, com suas ruelas e becos centenários, repletos de fantasmagorias. A visão panorâmica abarcava o bruxuleio da cerração nos campanários iluminados das diversas igrejas.

Numa ocasião como essa, na qual todos gostam de se manifestar e de expressar suas opiniões, acontece comigo o inverso. Atenho-me a observar os participantes e as réplicas de cada um, como se estivesse num teatro. Fico atenta a todos os detalhes: entonação e timbre de voz, ênfase das réplicas, gesticulação, posição corporal, expressões fisionômicas, conhecimento de causa... Enfim, observar, para mim, é mais divertido que participar.

Em um dado momento, naquela “soirée”, viajei no tempo. Senti-me como se estivesse num encontro dos Inconfidentes, no século XVIII, sem sedição, sem risco da famigerada derrama, sem ideal libertário, mas numa acalorada discussão a respeito da conturbada vida política e econômica do país. O perfil do grupo se aproximava sobremaneira do perfil dos inconfidentes: cidadãos instruídos, intelectualizados e bem informados; maioria diplomada em outras plagas, com alto poder aquisitivo e posição de destaque na sociedade.  Nas reuniões atuais, discutem-se desmandos e corrupção no poder, altos juros bancários, impostos, desemprego, aumento da pobreza... No século XVIII, discutiam-se as mesmas questões, evidentemente com a devida atualização política, econômica e social: desmandos e corrupção dos governantes, jugo da coroa portuguesa, impostos escorchantes, miséria do povo... Porém faltava-me um Tiradentes, ou seja, um jovem exaltado, entusiasta, falastrão e sem grandes posses, para quebrar a hegemonia do grupo.

Subitamente, não sei por que cargas-d’água, alguém perguntou se Sabará ficava dentro do Quadrilátero  Ferrífero. Um dos presentes, que se dizia historiador, aproveitou a ocasião para nos passar informações gerais, em tom professoral. Segundo ele, o Quadrilátero ocupa uma área de 7.000 km2, próxima a Belo Horizonte. Além de Sabará, citou Rio Piracicaba, Congonhas, Casa Branca, Itaúna, Itabira, Nova Lima, Santa Bárbara, Mariana, Ouro Preto, entre outras localidades. Disse também que essa região coloca o Brasil, ainda nos dias de hoje, em posição de destaque, no cenário mundial, na produção de ouro e ferro.

A partir daí, a conversa tomou o rumo das minas e dos veios de ouro. Não é por acaso que o Estado tem esse nome. Durante o ciclo áureo da extração,  entre 1700 e 1820, o Brasil foi o maior produtor mundial do “vil metal”. Metade das reservas de ouro do Brasil ainda se encontra em Minas Gerais.
 Outro senhor, que se dizia geólogo, aproveitou a ocasião para “vender seu peixe”. Começou a explanar sobre os três grandes conjuntos de rochas que caracterizam o Quadrilátero. Depois, passou a citar formações rochosas. Esbanjou terminologia técnica, que a ninguém interessava. Sua fala era por demais árida para aquele tipo de encontro. Alguns dos presentes esboçavam bocejos. Outros se mostravam entediados. Os mais inquietos se levantavam, davam uma volta pelo salão e aproximavam-se das janelas para apreciar a paisagem. Ainda insatisfeito com a demonstração de sapiência, o dono da palavra passou a descrever os tipos de rochas propícias à mineração.

Foi então que tudo mudou. Eis que, “não mais que de repente”, surgiu “meu” Tiradentes: um jovem exaltado, dono de uma verdade diversa daquela, com menos diplomações, mas com muito conhecimento técnico do assunto e “bala na agulha”. Ele tomou a palavra e desbancou o Doutor, afirmando exatamente o contrário: aquele não era um tipo de solo peculiar à exploração de ouro. Tal jovem, cujo nome me escapa, já meio ébrio e cansado de tanto palavrório, fez questão de contradizer o sabichão. Ambos engataram uma divertida discussão do tipo bate-rebate, cada um se esforçando para ganhar a credibilidade da plateia. Em um dado momento, o mais velho, já impaciente com a petulância do jovem, disse:
— Meu filho, eu tenho conhecimento de causa. Essa é minha especialidade. Eu sou geólogo, com PHD em formações rochosas.
— O senhor pode ser doutor, pós-doutor, pode ser o “escambau” mas não entende “porra” nenhuma disso.
Todos riram fragorosamente pela surpresa da réplica e pelo inesperado vocabulário chulo. A anfitriã, para evitar maiores exaltações, convidou delicadamente a todos para a sala de jantar. A lauta ceia  transcorreu na santa paz, com suave fundo musical e temas mais amenos, como convém a comensais civilizados. Como dizem os franceses, “tout est bien qui finit bien”.


*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias. 
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)