*Jô Drumond
Quem não gosta de um cafuné? Nada mais relaxante que sentir a fricção, no couro cabeludo, ou o deslizamento de hábeis dedos sobre as madeixas, sobretudo com a cabeça pousada sobre o colo de uma pessoa amada. Melhor ainda se isso acontecer na malemolência da sesta. O cafuné pode ser um simples gesto de carinho, mas tem também a acepção de “catação de piolhos”. Esse hábito, raro hoje em dia, era muito comum em tempos de antanho, sobretudo no período da colonização brasileira.
Tal desfrute se fazia necessário, não pela sensação carinhosa, mas devido à avassaladora infestação de piolhos, numa época em que ainda não havia medicamentos para combatê-los. A catação de piolhos era comum em todo o mundo, de maneira mais ou menos discreta, entre quatro paredes, mas aqui, no Brasil, esse hábito era mantido a portas e janelas escancaradas, no passeio ou até mesmo em praça pública.
Tal hábito era visto mais comumente nas classes inferiores. Na aristocracia urbana era praticado longe dos olhares inoportunos, mas acontecia com ambos os sexos, em todas as idades e em todas as classes sociais. Via-se que até mesmo homens de prestígio negociavam com forasteiros enquanto se deixavam “cafunezar”. Nas festas ou solenidades da aristocracia rural, não era incomum a cena descrita por Expilly: “senhoras recostarem-se nos espaldares das cadeiras, entregando a cabeça a uma jovem escrava enquanto a conversa prossegue o seu curso”. Vejamos um texto de Charles Expilly, sobre mulheres e costumes no Brasil colônia:
À hora do grande calor, as senhoras,recolhidas ao interior dos aposentos deitam-se no colo da mucama favorita, entregando-lhe a cabeça. A mucama passa e repassa seus dedos indolentes na espessa cabeleira que se desenrola diante dela. Mexe em todos os sentidos naquela luxuriante meada de seda. Caça delicadamente a raiz dos cabelos, beliscando a pele com habilidade e fazendo ouvir, de tempos a tempos, um estalido seco, entre a unha do polegar e a do dedo médio. Esta sensação torna-se uma fonte de prazer para o sensualismo das crioulas. Um voluptuoso arrepio percorre os seus membros ao contato dos dedos acariciadores [...] algumas sucumbem à deliciosa sensação e desfalecem de prazer sobre os joelhos da mucama [...] Mesmo os homens não desdenham, durante as horas de lazer, a carícia de uns dedos ágeis, afagando as suas cabeleiras. Um delicioso arrepio corre-lhe o corpo, cada vez que sentem o ruído significativo das unhas da mucama. (EXPILLY,s/d, pg.366-9)
Em1805, Thomas Lindley afirmava, em seu livro Viagem ao Brasil, que o que era considerado vulgar na Espanha e em Portugal era aqui praticado naturalmente. Segundo ele, era quase impossível entrar em uma residência sem deparar com uma dessas cenas.
A catação de piolhos, a princípio, tinha caráter de higiene e profilaxia, como entre os animais, no combate às pulgas e a outros parasitas. No entanto sociólogos e psicanalistas relacionam esse hábito à sensualidade. Tal costume coletivo poderia ser, segundo eles, uma maneira lícita de dar vazão à libido publicamente, sem despertar a maldade alheia. A procura do piolho corresponderia, portanto, à procura do prazer. Roger Bastide, em sua obra A psicanálise do cafuné (1941), analisa e pesquisa o prazer oculto do cafuné. Segundo ele, entre jovens, seria uma masturbação simbólica.
A condição feminina do período colonial é muito bem retratada por Gilberto Freyre, em sua obra Casa grande e Senzala. As mulheres do Brasil colônia, desde jovens, se submetiam à tirania paterna e, posteriormente, à tirania do marido. A educação religiosa e a tradição moral representavam uma barreira intransponível a seus desejos libidinosos, recalcados durante toda a vida. Meninas de 12 ou 13anos tornavam-se esposas procriadoras, de senhores de 40 a 70 anos, sem direito ao prazer sexual. Tal prazer era reservado aos homens, que se deitavam e se deleitavam com todas as escravas que lhes apetecessem, mesmo contra a vontade delas.
Por essa
diferenciação exagerada (dos sexos), se justifica o chamado padrão duplo de
moralidade, dando ao homem todas as liberdades do gozo físico do amor e
limitando o da mulher a ir para a cama com o marido, toda santa noite que ele
estiver disposto a procriar (FREYRE, 1934, p.117-8)
A submissão das mulheres, a fidelidade delas exigida e a severa punição das adúlteras, em contraste com a poligamia descarada dos maridos, bolinando as serviçais a olhos vistos, mesmo dentro do lar, propiciaram às esposas uma vida reclusa entre mulheres, destinadas a bordar, a tagarelar e a fazer doces e bolos apetitosos.Tal convívio acabou gerando naturalmente, certas afinidades, certas intimidades e, por conseguinte, certas liberdades entre elas. A tentação lésbica, cada vez mais recalcada pela moral e pelos bons costumes, acabou sendo substituída pela catação de piolhos, aprovada e aceita pela sociedade. Bastide afirma que “o cafuné foi, portanto, um substitutivo dos divertimentos lésbicos. E por isso mesmo ele teve uma função útil, pois representou uma salvaguarda da moral.”
Segundo ele, tal costume desapareceu com o fim da família patriarcal e com o advento da família conjugal, ou seja, quando a relação de subordinação entre os esposos passou a ser de colaboração. O casamento por amor passou a suplantar o casamento por conveniência.
Assim, o cafuné, como instituição social, desapareceu, mesmo
antes do aparecimento dos remédios específicos contra a infestação de piolhos.
Todavia, por incrível que pareça, em pleno século XXI, os piolhos continuam a
passear sobre as cabecinhas infantis, em creches e escolas maternais, das mais
humildes às mais sofisticadas. Os pais são avisados por meio de discretos
bilhetes nos quais se usa toda sorte de eufemismos para disfarçar a indesejada
infestação, vista hoje em dia como algo vergonhoso para a instituição. O hábito
da “catação” desapareceu, mas o piolho ainda insiste em dar o ar da sua graça.
*Jô Drumond (Josina
Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto
Histórico (IHGES)
Referências
BASTIDE,Roger. Psicanálise do cafuné e estudos de sociologia
estética brasileira. São Paulo: Editora Guaíra Ltda, 1941.
EXPILLY,Charles. Mulheres e costumes no Brasil (trad. de G.
Penalva), São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1863.
LINDLEY,Thomas.Voyage au Brésil (trad. Doulès) Paris,1805.
FREYRE,Gilberto. Casa Grande e Senzala, 2.ed. Rio de
Janeiro: Schmidt, 1934.