quinta-feira, 16 de novembro de 2017

DUPLA PERTENÇA

Meu corpo e eu somos “um”. Formamos um todo mais ou menos ambíguo, interdependente. Posso acabar com ele, mas ele também pode acabar comigo. Isso nos faz cúmplices um do outro. Se uma enfermidade nele se instala, um terceiro (o médico) intervém entre o eu-sujeito, e o eu-corpo-objeto. Torno-me simples observadora de mim mesma. De legítima dona, passo a importuna testemunha, a acompanhar o desenrolar dos fatos.
Recentemente, ao dar entrada em um centro cirúrgico, como paciente, tive a sensação de perda de integridade. Temporariamente, meu eu-sujeito deixou de existir. Era um mero corpo desnudo, tocado por mãos desconhecidas, alvo de agulhas, barbitúricos, bisturis e do que mais se fizesse necessário.  Minha vida ficou (in)voluntariamente em mãos alheias.  Ao voltar a mim, tentei não atrapalhar aqueles que cuidavam da dor do meu “corpo-objeto”, da dor que também era minha.

Meu corpo e eu somos “um”. Através dele me relaciono com o mundo circundante. Estranha dobradiça de dupla pertença. O sensível e o inteligível, distintos e interdependentes, se mesclam: relação conjuntiva de elementos disjuntos, irremediavelmente presos um ao outro.

Meu corpo e eu somos “um”. Sem mim, nada é; sem ele, nada sou. Sinto, se sente; vivo se vive. Juntos, somos um ser pensante e passante.

domingo, 24 de setembro de 2017

O DIÁLOGO DAS FORMAS EM PARIS

Considerando-se como “diálogo das formas” o contraste entre estilos artísticos de diferentes épocas dentro de um mesmo espaço, percebe-se que a interferência do moderno em contraposição ao antigo pode dar excelente resultado, ou não.
Há quem diga que a beleza não se encontra na obra de arte, mas na visão de quem a observa. Há obras consideradas lindíssimas por alguns, e sem beleza alguma por outros. O gosto estético é pessoal e intransferível. Há quem aprecie a arte acadêmica e também quem a abomine. Acontece o mesmo com a arte moderna.

Seguem abaixo algumas ponderações de cunho pessoal a respeito de alguns  contrastes arquitetônicos parisienses, (des)agradáveis aos meus olhos.

No centro histórico, muitas vezes, o visitante se surpreende com a brusca mudança do estilo arquitetônico. Por exemplo, ao chegar-se ao famoso museu do Louvre, passando pelo pequeno arco do triunfo de Constantino, perfeitamente integrado à paisagem urbana, depara-se com a Pirâmide de Cristal, que hoje se presta como principal entrada do museu.

Trata-se de um choque visual de rara beleza. Na época de sua construção, houve acirrada polêmica e debates acalorados pela televisão. Grande parte da população era radicalmente contra. Apesar da oposição, o projeto foi em frente. Hoje em dia, mesmo aqueles que eram contra apreciam o monumento. A Pirâmide de Cristal tornou-se a terceira obra mais apreciada do museu do Louvre, depois do quadro da Joconda (Monalisa) e da escultura de Vênus de Milo. Realmente, a falsa leveza (de 95 toneladas) do metal, associada à transparência do cristal, em oposição ao entorno, forma um conjunto lindo de se ver.

A PIRÂMIDE DO LOUVRE
Bem pertinho dali, no pátio interno do Palais Royal (Palácio Real), construído para residência do Cardeal Richelieu, em 1633, há uma interferência modernosa, datada de1986, que não me agrada. As 260 colunas de Büren, listradas em preto e branco, com alturas diferenciadas, não foram uma feliz ideia. Essa interferência paisagística causou também grande polêmica e quase foi destruída por diversas vezes, por ordem da prefeitura e da Secretaria de Cultura, mas conseguiu se manter.  A meu ver, um simples jardim no local daria melhor resultado. Como disse anteriormente, essa é uma opinião estritamente pessoal. Certamente há quem goste dessa interferência nos jardins do palácio.

PALAIS ROYAL                                             COLUNAS DO BUREN                 

A Ópera (ou Palácio) Garnier, em estilo eclético, foi construída por Charles Garnier no século XIX. Na década de 60 do século XX, o pintor Marc Chagall foi convidado a substituir os afrescos existentes no teto dessa Ópera. Sua obra pictórica causou escândalo na época, tendo em vista as cores fortes e o estilo do pintor, em total dissintonia com a suntuosidade do palácio. Nesse caso, faço coro com os que se escandalizaram pela discrepância. Sua obra ficaria muito bem em salas modernas, mas não na Garnier. Não discuto a importância, nem o valor do que foi pintado diretamente por ele no teto do teatro, mas, como já disse, o diálogo das formas entre estilos de diferentes épocas nem sempre é louvável. Esta é, a meu ver, uma tentativa que não deu certo. Veja a magnificência do interior da ópera.

Outra interferência moderna que desagrada a muitos pela quebra do estilo arquitetônico da Cidade Luz, no bairro  mais antigo de Paris, o Marais, foi a construção do Centro Cultural Georges Pompidou, conhecido também como Beaubourg. Trata-se de um complexo arquitetônico extremamente arrojado, do final do século XX. Ele é considerado marco do início da pós-modernidade nas artes.  

É um dos principais exemplos de arquitetura higt tech, de inegável importância devido ao inovador projeto de sustentação e também devido às tubulações aparentes. Esse Centro Cultural, apesar de ser um dos locais mais visitados de Paris, não é esteticamente agradável a meus olhos, pelo fato de ter interferido enormemente na paisagem urbana do Marais. Seu porte é desproporcional ao espaço ocupado; sua aparência não coaduna com as construções antigas do entorno. Minha filha, que é arquiteta, caiu de amores por essa geringonça. A seu ver, o Beaubourg é o mais lindo projeto arquitetônico da cidade.

Bem próximo desse centro cultural, há o atual centro comercial Les Halles, que muito me agrada, ocupando parte do grande espaço do antigo mercado de atacadistas de alimentos frescos. Realmente gosto não se explica.

A Ópera Bastille, com modernas curvas vitrificadas, construída na Praça da Bastilha, nem de longe lembra a antiga prisão da Bastilha, situada antigamente na mesma praça. Porém trata-se de uma bela construção que, apesar de não se adequar ao entorno,  é agradável de se admirar.

Uma paisagem urbana moderníssima, linda e de agradável vivência, é o bairro La Défense,  onde a presença do vidro é preponderante na leveza das construções. Arranha-céus brotam do chão, numa floresta de vidro, em contraste com o peso das construções neoclássicas, predominantes na maior parte da cidade. La Défense é a Paris moderna, de aspecto prático e futurista. Esse bairro, iniciado na década de sessenta do século passado, foi inspirado na arquitetura norte-americana. Há turistas que o amam, outros que o odeiam. 

Alguns deles se negam a visitá-lo, o que é uma pena. É um lugar amplo, belo, agradabilíssimo de percorrer, com belas construções em estruturas metálicas. Trata-se de um audacioso projeto de urbanização, que deu certo, visitado anualmente por mais de oito milhões de turistas. Ali moram vinte mil parisienses e ali trabalham duzentas mil pessoas. O Shopping Le Quatre-Temps, ao lado do Arco, é o maior centro comercial da região parisiense.
O Arco (retangular) da Défense, que se vê na foto, faz contraponto ao famoso Arco do Triunfo, construído por Napoleão na Praça da Estrela.

Esse novo arco faz eixo com os principais pontos turísticos parisienses. Partindo da direção contrária, ou seja, do museu do Louvre, estende-se o Jardin des Tuilleries, até a Place de la Concorde, onde há um antigo obelisco egípcio e onde se pode visitar o museu Orangerie,  em cujas paredes Monet pintou suas famosas ninfeias. Na sequência, entra-se na Avenida Champs Élysées, a mais famosa do mundo, com suas construções magnificentes, jardins e palácios. Do lado esquerdo veem-se o Grand-Palais e o Petit-Palais, dois palácios colossais, onde há eventos culturais, assim como exposições artísticas fixas e temporárias. 

Tal avenida termina na Praça da Estrela, na qual 12 ruas se cruzam formando uma estrela, em cujo centro se encontra o famoso Arco de Triunfo, construído por Napoleão Bonaparte. A partir dessa praça, a mesma avenida muda de nome. Passa a se chamar Av. de La Grande Armée e, que vai dar no novo bairro La Défense, exatamente na praça, em que há a réplica moderna do arco. Nas proximidades, há uma torre de vidro, arredondada, em contraponto à Torre Eiffel. A sequência dessa avenida vai até o aeroporto internacional Charles de Gaulle.

Em Paris, há muitas outras construções modernas, como a sala de concertos inaugurada recentemente, La Seine Musicale, ao lado do rio Sena, num bairro afastado, chamado Boulogne-Billancourt, ou como a Philharmonie de Paris, a maior de todas as salas de concertos da cidade, situada no Parque de la Vilette. Tais construções, de grande impacto arquitetônico,  estão fora do Centro Histórico e se integram ao entorno.

Na Cidade Luz, uma das mais cosmopolitas do mundo, o “diálogo das formas” pode impactar positivamente ou negativamente os visitantes, (des)agradando simultaneamente milhões de turistas que ali circulam, sem cessar. A diversidade de nacionalidades, de etnias e de credos pode ser pacífica, ou não, assim como a diversidade estética.

Jô Drumond




Josina Nunes Drumond

Pós doutora em Literatura Comparada, pela UFMG,Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP e Mestre em Estudos Literários, pela UFES. É Pós-graduada (latu sensu) em Arte e Cultura Barroca pela Universidade Federal de Ouro Preto e em Literatura de Língua Portuguesa, pela UFES. Tem três graduações: Letras pela UFMG, Lingua, Literatura e Civilização Francesas, pela Université de Nancy (França) e Artes Plásticas pela UFES.

Autora de vários livros, Jô Drumond tem artigos, contos, crônicas, poemas e ensaios publicados em antologias, jornais, revistas de pós graduação, anais de congressos e na internet.


É tradutora juramentada do Estado do Espírito Santo. Membro da diretoria da Academia ES de Letras e da Academia Feminina de Letras do ES. É membro também do Instituto Histórico e Geográfico do espírito Santo, da Academia Feminina Mineira de Letras, do Conselho Estadual de Cultura e do Comitê da Aliança Francesa de Vitória.

GRILHÕES


Próximo à cidade de Castelo (ES), tive a oportunidade de conhecer a antiga Fazenda Centro, construída por mão de obra escrava, em 1854, cuja senzala abrigava cerca de 600 escravos. O belíssimo casarão, em estilo colonial, com mais de mil metros quadrados, foi tombado pelo Patrimônio Histórico do ES. Além de ter sido uma fazenda muito produtiva e um grande marco para o desenvolvimento econômico da região, foi também palco de manifestações históricas e culturais, transformando-se mais tarde em seminário, e, depois, em noviciado.

Além da indiscutível beleza e imponência do imóvel, o que me atraiu a atenção foram as histórias que o envolvem desde sua construção, e que incitam a imaginação do visitante. Ao percorrer os cômodos dos dois andares, eu imaginava quantas pessoas ali tinham nascido, vivido, amado, sofrido, trabalhado e morrido. Quanta gente havia se debruçado naquelas 79 janelas para respirar o ar puro, para apreciar a paisagem, para vigiar os escravos ou para averiguar ao longe, na estrada de chão batido, se algum convidado se aproximava.

Segundo consta, o primeiro proprietário, latifundiário e escravocrata, diferentemente dos demais de sua categoria, apreciava as artes, em geral.  Destarte, teve uma iniciativa benfazeja. Criou, para seu bel-prazer e para o entretenimento dos visitantes e de todos que ali viviam, um grupo de teatro e uma banda de música, ambos compostos por escravos. Os integrantes da “troupe” e da banda se sentiam importantes pela participação e adquiriam novos aprendizados referentes à sua atuação.

Os demais escravos se vangloriavam de viver na única fazenda da região a possuir tais privilégios. Os visitantes, surpresos e encantados pela performance dos atores e músicos, se esmeravam em sentenças elogiosas. O anfitrião não cabia em si de contente pelo reconhecimento. Muitas festas eram ali organizadas, com o intuito de divulgar a inovação e a grandiosidade desse senhor de escravos que amava e difundia as artes. Poder ele já tinha de sobra.

O que almejava era a glória. Via nas festas um modo de alcançá-la. Os que por ali passavam poderiam divulgar seu grande feito Brasil afora. Ele se sentia mais liberal que os demais escravocratas; os escravos, por sua vez, sentiam menos o peso dos +grilhões. Tal inovação amenizava, de certa forma, o aspecto sombrio da escravidão: restrição da liberdade de ir e vir, desconforto das senzalas, trabalho não remunerado, má alimentação, submissão total aos patrões, punições, torturas, enfim, as péssimas condições de vida.

Considerando as devidas proporções, pode-se fazer um paralelo entre os grilhões da Fazenda Centro e os do Palácio de Versalhes. Ambos os locais serviram de cenário para o grande espetáculo da vida, mas de uma vida cativa, à mercê de dois diferentes tiranos.

Na corte mais cobiçada de todos os tempos, a de Luís XIV (França – século XVII), vivia-se com grande luxo e ostentação. O Palácio de Versalhes era invejado e copiado por outros reinos, devido à sua beleza e magnificência. No entanto esse Palácio nada mais era que uma imperceptível prisão dourada. O Rei Sol fazia questão de manter toda a aristocracia girando a sua volta. Atraiu da província para a corte os grandes e poderosos, com as respectivas famílias, e os manteve sob sua mira, numa vida festiva e luxuosa. Para o entretenimento dessa gente, investiu no mecenato artístico, atraindo para a corte os melhores e mais variados artistas, assim como grandiosos espetáculos de teatro, de dança e de música. Seu falso objetivo de entreter escondia outro menos nobre: o de reduzir o poder dessa classe e de torná-la incapaz de uma nova revolta de aristocratas, como a Fronde,  ocorrida anteriormente (1648/1653), que acarretou muitos dissabores.

Em Versalhes, era impossível sentir-se preso nos artísticos jardins a perder de vista, projetados pelo famoso arquiteto Le Nôtre, nas imensas galerias barrocas decoradas a ouro, nos maravilhosos bailes na Galeria dos Espelhos, nem nos gastronômicos banquetes regados com os melhores vinhos do reino. No entanto, para manter a soberania, o intuito absolutista do rei era justamente o de amordaçar invisivelmente seus súditos pelos sentidos (paladar, audição e visão), pelo luxo, requinte e magnificência das festas e eventos culturais.

Em todo tempo e lugar, em todas as comunidades, há grilhões sociais com grande poder de cerceamento da liberdade, alguns deles quase imperceptíveis: religião, família, casamento, trabalho, escola, hierarquias… Às vezes eles são camuflados. Por exemplo, a união matrimonial, por mais feliz que seja, carrega seu fardo opressor, sobretudo o da fidelidade. Atualmente, há escravos até mesmo das novas tecnologias. Há quem não consiga mais viver sem smartphone, sem internet, sem redes sociais… Desejamos todos que a “Liberdade abra a asas sobre nós”, mas, na realidade, estamos inexoravelmente presos às teias sociais.

Jô Drumond