Após cinquenta anos de convivência nem sempre pacífica, Gilda e Gilson Bittencourt resolveram comemorar as bodas de ouro. A família não era numerosa. Apenas dois filhos e quatro netos, mas o número de convidados superava duas centenas. Gostariam de compartilhar aquele rito de passagem com parentes, amigos e vizinhos em grande estilo.
Um de seus netos chamado Gil (homenagem aos avós), residente em outro Estado, se deslocou especialmente para o evento. Como chegou com alguns dias de antecedência, reservou o máximo de tempo para curtir a família. Gostava do “range rede” na ampla varanda da casa dos avós. Próximo à rede, ficava a cadeira de balanço onde o avô passava longas horas a ler, a esperar o passar do tempo e, sobretudo, a matutar. Gilson se dizia “um caboclo pensador”. Nunca dizia nada abertamente. Gostava de linguagem figurativa. Sempre lançava mão de paradoxos, analogias, metáforas, alegorias... tudo permeado de fina ironia.
Certo dia, estando avô e neto na varanda, engataram uma prosa sobre relacionamento amoroso e convivência familiar.
Gil perguntou a Gilson como havia conseguido conviver com a mesma pessoa durante 50 anos debaixo do mesmo teto, sendo que ele próprio já não suportava mais a convivência com sua mulher, com menos de um ano de casamento.
─ O que há de errado na relação de vocês? ─ perguntou o avô.
─ Na época do namoro, Kelly era uma. Após o casamento, é outra, bem menos interessante.
─ Meu querido neto! Você é muito jovem. Ainda há muito a aprender. Há vários tipos de amor, de diferentes intensidades.
─ Como assim?
─ No caldeirão amoroso há três ingredientes básicos e diversos condimentos. O tripé é formado pelo amor e pelos dois enamorados. Com o tempo, esses três elementos vão mudando e criando novos condimentos, novos sabores.
─ Desculpe-me vovô, não entendi muito bem.
─ Meu menino, vou lhe repetir uma frase que muito aprecio, de Riobaldo, o pensador do sertão.
─ Quem é ele?
─ O protagonista do romance Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Segundo ele, as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, Vão sempre mudando. Afinam ou desafinam.
─ Nunca ouvi falar em Riobaldo.
─ Pois não deixe de conhecê-lo. Você cavalgará com um jagunço pensador, compartilhando seus filosofemas através de dois sertões: o geográfico e o mítico.
─ Obrigado pela dica de leitura, vovô, mas isso não me interessa, no momento. Voltemos ao assunto.
─Ah! Sim, retomemos nosso caldeirão amoroso. No início, há muita efervescência, com grande dosagem de amor-paixão, hormônios em alta, muita vitalidade, mas não dura muito. Com o tempo, a fervura vai se abrandando e dá lugar ao amor-conjugal, mais sólido e duradouro. Ele envolve o compartilhamento de interesses, atividades e responsabilidades entre as partes envolvidas. Os objetivos convergem na criação dos filhos, na carreira profissional do casal, na construção do patrimônio familiar... Após algumas décadas de convivência, ele pode se transformar em amor-fraterno. À medida que a dosagem hormonal cai, surgem novos condimentos para temperar a relação.
─ Como assim?
─ O companheirismo, a camaradagem, a reciprocidade, o respeito mútuo, a amizade, a solidariedade... Quando chega a velhice, no meu caso, muitas vezes um serve de bengala ao outro. A gente vai se ajudando mutuamente até o fim da caminhada.
─ Está certo. As pessoas mudam, com o passar do tempo, mas o que me incomoda é que a pessoa com a qual compartilho meu dia a dia se transformou muito rapidamente. Ela anda apática, desleixada, impaciente, grosseira... totalmente diferente daquela exuberante garota que conheci tempos atrás, na faculdade.
─ Entendo perfeitamente, Gil. Você caiu na arapuca armada pelo próprio sentimento amoroso. É algo meio complicado. Ele se desenvolve, sobretudo por intermédio da imaginação, da idealização. A imagem vista ou criada da pessoa amada nem sempre condiz com a realidade. A meu ver, o amor não está no ser amado. Ele se encontra no ser enamorado. O objeto do desejo existe tal e qual é contemplado por aquele que o deseja. Entendeu?
─ Acho que não. O senhor quer dizer que o objeto do desejo prescinde de existência própria?
─ Mais ou menos isso, mas tudo é muito subjetivo. Não se sabe por que se ama alguém. Não há base sólida na qual se possa apoiar. Sua frustração, Gil, se explica pelo fato de que grande parte do perfil de Kelly foi traçada por você. Mas diga-me! Por que tantas perguntas? Está pensando seriamente em separação?
─ Tenho pensado nisso. Diga-me uma coisa, vovô. Considerando que as pessoas mudam e que o amor pode acabar, por que o casamento é um sacramento indissolúvel? Não é muita incoerência? Por que passar a vida toda ao lago de alguém cuja presença se torna insuportável? A bênção pode se transformar em castigo.
─ Meu neto, “lógica” não combina muito com “religião”. Veja bem! Antes, os casamentos eram arranjados pelas famílias, com ou sem consentimento dos noivos. Alianças diplomáticas eram feitas com finalidade de conquistar aliados políticos ou de criar laços econômicos. A partir do século XII, a Igreja católica normatizou alguns costumes, entre eles, a manifestação voluntária como condição para a realização do casamento.
─ Mas, vovô, o que me interessa, no momento, é a manifestação voluntária para SAIR do casamento. Essa história de que “o que Deus uniu o homem não pode separar” ainda persiste?
─ Não sei lhe dizer como isso se passa nas demais religiões. Sou católico. Infelizmente minha Igreja nem sempre acompanha o desenvolvimento social, o que acaba provocando o afastamento de muitos fiéis. Na minha opinião, o cidadão honesto, trabalhador, religioso, bom pai de família que porventura tenha um casamento infeliz, deve ter o direito de tentar nova vida, sem ter que abandonar sua Igreja. Concorda?
─ Claro! Pelo menos juridicamente o desenlace pode ser feito. Menos mal.
─ Sim, mas esteja certo de que o relacionamento amoroso não é o propalado “mar de rosas” dos romances açucarados. Ele perpassa alegrias e tristezas. Geralmente, brota do desejo ou da admiração. Na maioria das vezes, num “crescendo”, a pessoa se interessa por alguém, se encanta, se enamora, se enciúma, se apaixona, se inquieta, se angustia, e, muitas vezes, se frustra, se decepciona e sofre pela perda.
─ Cruzes! Termina sempre com a ansiedade dolorosa?
─ Estou generalizando. Desculpe-me pelo pessimismo.
─ Vou pensar seriamente em tudo o que o senhor me disse. É sempre bom ouvir a “voz da experiência”.
─ Meu neto querido, deixe-se levar pelo torvelinho da existência. Tudo isso faz parte da vida. Não pense muito. O dito popular afirma que “de pensar morreu um burro”. Lembre-se apenas de que a perda de um ser amado não corresponde à perda da capacidade de amar. Outras kellys surgirão para adoçar ou azedar sua vida. Todo recomeço brota de um fim.
COMENTÁRIOS
PENHA - MATHILDE -ES
Mais um delicioso conto. Você é demais, Jô. Interessante o diálogo do vô Gilson que soube sustentar seu relacionamento por tantas décadas com o neto Gil, já desiludido com sua parceira no primeiro ano de convivência. Identificado com a sabedoria do Riobaldo, nos fala das intensidades do amor com o passar do tempo, e que o amor encontra- se no ser enamorado.... lindo isso, Jô. Ou do contrário " cai na arapuca armada pelo próprio sentimento amoroso. Demais!!!!!
Gosto imensamente do q escreve, de seu estilo "leque aberto" de expor uma ideia, a gente viaja muito e se enriquece.
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REGINA MENEZES- VITÓRIA - ES
Muito interessante seu posicionamento com relação às facetas do amor.
Feliz abordagem.
Tranquila a leitura que nos leva a reflexões sobre a vida a dois.
Quer dizer que o perfil que faço do objeto de minha paixão, só a mim pertence? Eu idealizo uma imagem irreal da pessoa, muito além do que ela é.
Então é por isto que todo relacionamento enfrenta alegrias e tristezas, se frustra e se decepciona...
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ERNESTO – MONTANHAS FORMOSAS - ES
Jô querida, seu conto fala da realidade de um homem e de uma mulher na vida conjugal.
Bonito conto e você destaca que uma união conjugal não pode nem deve ser "soldada" a ferro e fogo, principal e unicamente quando uma das partes procedia de maneira que ocultasse a realidade pessoal. Quantas revelações depois de o padre dizer: O que o Deus uniu o homem não separa, dando à parte negligente a ideia de posse.
É um bonito, como já disse, e que merece ser divulgado, até para orientar e confortar partes prejudicadas por um ato desonesto, na maioria das vezes para se livrar de situações indesejadas, e outras para levar alguma ou algumas vantagens.
Amanhã, publico seu conto na minha página e divulgo entre meus amigos.
Obrigado pela lembrança.
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FLÁVIA MACHADO- CAMPO GRANDE - MT
Lindo! E com muita sabedoria e reflexões 🥰 Não achei o lugar para comentários. Adoro ler suas crônicas ❤️❤️❤️ continue sempre tornando nossa vida mais prazerosa com sua arte 💕
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CHICO BRANT- BELO HORIZONTE - MG
Legal, Jô! Gostei dos "filosofemas" - palavra que nunca tinha lido -, e mais da "sacada" da diferença entre o ser amado e o ser enamorado. Ela explica todos encontros e desencontros, não? Não estou certo, mas é só perguntar ao "seu" Gilson Riobaldo...
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OSCAR GAMA FILHO – VITÓRIA - ES
Bela crônica, Jô. Se o amor pelo outro residir no ser amado, nada o destruirá. Pound dizia que "aquilo que tu amas de verdade jamais te será arrancado".
Parabéns
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PEDRO DE SEVYLHA-ESPANHA
Obrigado Jô, gostei muito do artigo. Há nele grande sabedoria.
Abraço
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MARIA DO CARMO – BELO HORIZONTE – MG
Bom dia, Jô
Seu texto nos leva à reflexão, pois todos nós, quer queiramos, quer não, passamos pelas etapas do relacionamento amoroso. Concordo com você. Acho que o amor ou a paixão se encontra na pessoa que desenvolve esse sentimento e não necessariamente no objeto da paixão. Por exemplo, há os amores platônicos, os não correspondidos e impossíveis...
O prosaísmo do cotidiano, como no aso de Gil, pode ser fatal para um amor que foi idealizado antes do casamento, da convivência ou da coabitação.
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ROGÉRIO FARIAS – BELO HORIZONTE - MG
Ei, Jô!
Acabo agora de ler o seu lindo texto "O clamor do amor"
Parabéns!
Vou compartilhar com meus amigos
Com um abraço,
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LÍLIA DANTAS– VITÓRIA - ES
Jô querida simplesmente maravilhoso. Adorei!!! Vou até imprimir. Posso? Bjs saudosos. 😘
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MARCOS TAVARES – VITÓRIA - ES
Grandes lições há nesse conto dialógico. Corro já: adquirir uma bengala.
O título é ótimo
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MARIA INEZ NASCIMENTO AMORIM – LAGOA SANTA - MG
Li sua crônica, e não pude deixar de lembrar, de 3 casos recentes de pessoas conhecidas, bem novas. O marido se apaixonou por outra, assim do nada, e terminou o casamento, que estava até ali, bem afinado.
Me parece uma banalização dos relacionamentos, um total descompromisso com o outro. Enfim, novos tempos, novas eras 😫
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SÔNIA-BARRAS - PIAUÍ
Que belo texto mostrando, com experiência própria a vida real...Parabéns!
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FRANCISCA – BELO HORIZONTE - MG
Ficou ótimo, Jô! Você aborda uma questão que é ao mesmo tempo comum e muito complexa, com um rico diálogo. Parabéns!
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REGINA – GOIÂNIA- GO
Que delícia de leitura! A gente sempre aprendendo e aproveitando pra nossa vida novas mensagens
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MATTEDI -VITÓRIA - ES
Bom dia!☀
Interessante crônica. Mas queria "ouvir" tb dona Gilda, talvez ela entrando na conversa...
Mas gostei dos "aconselhamentos". Um dia li: "Qdo for buscar alguém p conviver, procure alguém com quem vc goste de conversar". Tb um bom ingrediente... rs
Abraço e bom domingo.
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ELIZAIDA – RIO DE JANEIRO - RJ
Parabéns querida Jô. Obrigada por nos enviar mais essa.
Zé Carlos ama suas crônicas e seus livros.
Gde abraço, muita luz sempre. Bom domingo, Bjnhos .
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VALCI – GUIMARÂNIA - MG
Linda crônica, bem reflexiva...pura verdade!!👍🏻👏👏
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GISLENE TEIXEIRA – PATOS DE MINAS - MG
Muito interessante, como sempre!!
Gostei muito!
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MARIA LÚCIA – VITÓRIA - ES
👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻 adorei. Parabéns querida amiga. Você é espetacular. Beijos 😗
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MARIA JOSÉ GUIMARÃES – PATOS DE MINAS - MG
Olá Jô. Sempre envolvente tudo o que vc escreve. Não dá pra parar de ler. Parabéns e sucesso sempre. 😘
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SÔNIA ROSSETO – VITÓRIA - ES
Amiga gostei, do seu escrito. Só não concordei com as duas últimas fala do vovô... a igreja católica na atualidade não exclui. O Papa Francisco está revendo muitas regras impostas na nossa igreja.
Essa sua história dá um grande debate
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CIBELE – PARIS - FR
Bom e profundo artigo. Bravo amiga capixaba!👩🎨😊🥂🍾
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JAÇANAN – VITÓRIA - ES
Gostei do seu artigo, bem elaborado. Não tinha pensado sobre o tripé, interessante ponto de vista, verdadeiro!
Um abraço e continue escrevendo sempre.
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MARLISE CONRAD – VITÓRIA - ES
Ótima reflexão! Meus Parabéns!!!!
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ANA NARIA -BELÉM DO PARÁ
Oi Jô, gosto muito de ler seus artigos, há verdades contadas com humor, muito bom!
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ACCHIAMÉ – VITÓRIA - ES
Muito bom, Jô.
A trajetória do relacionamento amoroso, na nossa época e classe social é por aí mesmo.
Parabéns e um abração.
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DENISE – VITÓRIA - ES
Excelente texto sobre a vida conjugal. É bem complicado manter um casamento. Gil reclama do desleixo da esposa. Será que ela não está desiludida com ele também? Mal ou nem amada, já não se importa em chamar a atenção. A culpa recai sobre a mulher.
Não aprovo o Gil.
Talvez a separação seja a saída para que ela encontre quem a valorize.
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