segunda-feira, 14 de setembro de 2020

O FRUTO PROIBIDO

 


Há poucos dias, soube de uma história um tanto inverossímil, em que a pessoa envolvida passou a acreditar piamente no acontecido, após uma coincidência aleatória. Há mais de meio século, certa mãe, tendo uma criança enferma, já desenganada pelos médicos, apegou-se ao poder curativo da maçã. Disseram-lhe que essa fruta milagrosa curaria seu filho. Como ele teve uma cura inexplicada, o mito se transformou em verdade para ela. Essa história remeteu-me à infância. Lembro-me de que, quando criança, não se cultivava maçã no Brasil. Era uma fruta rara e cara, mas era de praxe levar maçã na visita a um enfermo no hospital. Por que maçã? Por que não laranja? Eu não conseguia entender. Ninguém da família sabia me explicar a razão da escolha. Tal fruta, importada, era por demais onerosa para o cardápio de famílias numerosas como a minha. Eu tinha vontade de ficar doente, de ir para o hospital, só para comer maçãs.

Não há dúvidas quanto às qualidades nutricionais1 dessa fruta. Bastam alguns cliques e o internauta terá, diante de si, um enorme leque de seus poderes curativos. O ditado inglês “uma única maçã por dia mantém o médico longe” tem respaldo científico. Pesquisas comprovam que seu consumo diário reduz o risco de diversas doenças.

Surge então uma pergunta que não quer calar: se a maçã é uma fruta tão benéfica, tão salutar, por que foi escolhida como fruto proibido, na mitologia religiosa? A tradição popular a considera fruto do pecado, embora não haja especificação do tipo do fruto da Árvore do conhecimento no Livro do Gênesis. De qualquer forma não poderia ter sido maçã, pois tal fruta inexistia na época da criação do mundo. Ela surgiu bem depois de Adão e Eva, no Cazaquistão e na Turquia. Seus frutos foram melhorados com técnicas de cultivo ao longo dos tempos. A mitologia diz que o diabo, em forma de serpente, induziu Adão e Eva a comerem do único fruto proibido. Por isso foram expulsos do paraíso. Os humoristas de plantão dizem que um pedaço de maçã ficou entalado na garganta de Adão. Por isso os homens têm uma proeminência laríngea, logo abaixo da garganta, o popular gogó, que se chama “pomo de Adão”.

O interessante é que a maçã pode simbolizar, por um lado, o mal, o pecado, a escolha errada, e, por outro lado, a escolha certa, a liberdade, a sabedoria. Ao ingerir o fruto da árvore proibida, Adão e Eva perderam as facilidades do paraíso, mas ganharam a busca do conhecimento do bem e do mal. Perderam o farto e gratuito cardápio edênico e, como castigo, tiveram que trabalhar para ganhar “o pão cotidiano”. Donde se conclui que o trabalho não é uma oração, como se ensina no catecismo: é um castigo. Conclui-se também que a serpente não prestou nenhum desserviço à humanidade. Pelo contrário, abriu-lhe os horizontes do conhecimento.

Eu sempre me perguntei por que o imaginário humano teria configurado a maçã como fruta do mal? Encontrei duas explicações plausíveis: segundo pesquisadores, os tradutores da Bíblia podem ter optado por “pomum”  (no francês pomme = maçã) talvez por influência das línguas modernas, mas poderiam ter  traduzido por pera, figo ou qualquer fruta com formato semelhante ao da maçã. Uma outra versão, teria advindo também de um problema de tradução: um quiproquó entre as palavras malus - do latim  (mal)  e malum - do grego antigo (maçã). Nunca saberemos ao certo, mas mito que se preze prescinde de comprovação.

Além de vasta simbologia,2 há diversas curiosidades a respeito dessa fruta. Vejamos algumas delas: consta, embora sem comprovação, que Newton, sentado sob uma macieira, descobriu a lei da gravidade, quando uma das maçãs lhe caiu sobre a cabeça.

Dizem que a mordida da maçã foi acrescentada no design da marca Apple para que  não fosse confundida com uma cereja. Dizem também que o nome Macintosh é inspirado no tipo de maçã McIntosk Red, variedade comum nos Estados Unidos.

A banda The Beatles escolheu a maçã como o ícone de seu selo discográfico. Muitos anos depois, um relançamento da discografia da banda foi colocado em um pen drive em forma de maçã.

Na mitologia, Hércules colhe três maçãs de ouro na Árvore da Vida, no jardim das Hespérides, após ter matado o dragão de cem cabeças que o guardava.

Na história de Robin Hood, uma pequena maçã é colocada sobre a cabeça de um amigo fiel de Robin. Com os olhos vendados, o arqueiro a divide ao meio com uma flechada.

Na obra do pintor Magritte, intitulada “O Filho do Homem”, considerada uma das obras mais importantes do surrealismo, o elemento principal é a maçã, posta na frente do rosto de um homem pintado em óleo sobre tela.

Na Literatura infantil, ela surge como fruto enfeitiçado pela bruxa, que faz com que Branca de Neve adormeça até ser despertada pelo beijo de um príncipe.

Há um romance de meu conterrâneo e contemporâneo, José Roberto Amorim,  intitulado “O vermelho da maçã”. No prólogo ele diz o seguinte: “O prazer é vermelho [... como a maçã...] mas ao cortá-lo em partes, descobrimos que, ao contrário da fruta de Adão e Eva, as metades são diferentes: uma metade é o amor e a outra é o desejo.”

Na contemporaneidade, surgiu também um livro intitulado “Minha pátria era um caroço de maçã” da romena Herta Müller, prêmio Nobel de Literatura (2009). Título deveras estranho, considerando que a autora aborda a destruição de vidas e de sonhos pela ditadura comunista romena. Ela registra lembranças dos sucessivos interrogatórios a que foi submetida, dos desaparecimentos de estudantes, dos suicídios forjados dos opositores ao regime... enfim, o caroço da maçã simbolizaria algo nefasto. Isso aguçou minha curiosidade. Por que teria ela usado, com conotação negativa, o caroço de uma fruta tão saudável e tão apreciada? Soube que as sementes dessa fruta devem ser descartadas, pois contêm cianeto e podem causar mal-estar e, em casos mais raros, até a morte por envenenamento. Em pequena quantidade não causa problema aos humanos, mas pode matar pássaros. Talvez isso explique o motivo (que desconheço) da escolha do insólito título da obra.

Como vimos, a maçã tem, em si, o dom de vida e morte, assim como a mandioca, alimento bem popular no Brasil. Apesar de ser mansa e saudável, pode se transformar em mandioca brava e matar. O fato é que o bem e o mal coexistem pacificamente (ou não), em tudo e em todos.

“Somos a vida e a morte. O tudo e também o nada [..] Maldosos ou bondosos - no tempo exato [...] O ponto de encontro está em cada um de nós. Encontrar-se é o desafio.” (Santo Agostinho)

PÉ DE PÁGINA

Qualidades nutricionais:1 Sabe-se que a maçã regula os níveis de colesterol, previne problemas cardíacos, intestinais, obesidade, reumatismo, gota, diabetes, arteriosclerose, enfermidades da pele, do sistema nervoso e possui muitos outros poderes curativos. É provado cientificamente que seu consumo reduz o risco do câncer de cólon, de próstata e de pulmão. Pouca gente sabe que a casca também deve ser ingerida, pelo fato de conter vitamina C, cálcio, fósforo, potássio, além de fibras e de ser poderoso antioxidante.

Simbologia:² A maçã simboliza a vida, o amor, a imortalidade, a fecundidade, a juventude, a sedução, a liberdade, a magia, a paz, o conhecimento, o desejo, a amizade. Seu formato esférico representa o símbolo do mundo. Para os celtas, a maçã é um símbolo da magia, da ciência, da revelação, do além e da espiritualidade. Para os gregos, a maçã representa o símbolo do amor (associada à Afrodite, deusa do amor, da beleza e da sexualidade).